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Como escrever melhor: um guia

Só nos EUA, o setor privado perde US$ 396 bilhões por ano em produtividade por causa de e-mails, manuais e relatórios mal escritos. Não à toa, 73% dos empregadores buscam candidatos bons de redação. Aqui vão os primeiros passos para se tornar um deles.

Por Bruno Vaiano | Ilustração: Taíssa Maia | Design: Caroline Aranha | Edição: Alexandre Versignassi
Atualizado em 5 set 2022, 15h35 - Publicado em 12 ago 2022, 06h35
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 (Taíssa Maia/VOCÊ S/A)
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O Grammarly é uma versão superdotada do corretor automático de celular, que não troca “estou no Rio” por “estou no cio”. O software vasculha documentos e e-mails (por enquanto, só em inglês) e sugere tanto correções ortográficas como ajustes mais sofisticados – tipo substituir palavras repetidas por sinônimos, ou regular o grau de formalidade do vocabulário conforme o contexto. É uma inteligência artificial das mais espertas, e os dados mostram quanto: 10 milhões de pessoas usam o Grammarly por dia, e o valor de mercado da empresa passou de US$ 1 bilhão em 2019 – tornando-a oficialmente um unicórnio.

O sucesso é grande porque o problema é grande: Josh Bernoff, autor do guia Writing without bullshit (“Escrevendo sem enrolação”, sem edição em português) calcula que o americano médio passe 22% de seu expediente lendo, e que as empresas dos EUA percam US$ 396 bilhões por ano em produtividade por causa de textos mal escritos – de e-mails ambíguos do chefe a instruções confusas para usar um novo software.

Uma enquete com 547 empresários revelou que 54% se incomodam com a quantidade de jargões em suas leituras cotidianas e 61% não consideram claros o suficiente os textos com que precisam lidar. Outra pesquisa, realizada pela National Association of Colleges and Employers, revelou que 73% dos empregadores procuram candidatos bons em comunicação por escrito – o que pôs a habilidade em um honroso terceiro lugar na lista de prioridades em um processo seletivo.

Não é difícil entender por quê. Textos bem escritos não servem só para impressionar, mas também tornam a comunicação interna da empresa mais eficaz – quantas vezes você já teve uma troca de e-mails mais longa que o necessário porque não entendeu o recado original? Para não falar nas situações em que o destinatário acha que entendeu uma coisa e o remetente quis dizer outra.  

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Um defeito na ignição do Cobalt capaz de desligar o carro em movimento e desativar seus airbags matou pelo menos 97 pessoas nos EUA e era conhecido por alguns engenheiros da GM desde 2003. Mas ele passou uma década sem chamar a atenção porque aparecia nas planilhas da empresa sob um eufemismo indecifrável: “problema de conveniência para o consumidor”. Em 2014, quando finalmente rolou o recall, o problema já afetava 2,6 milhões de carros, e gerou US$ 1,7 bilhão de prejuízo. É o preço da escrita ruim.

Seus e-mails de trabalho provavelmente precisam de remendos, mas isso não é sua culpa: ninguém nos diz, na escola, que escrever textos compreensíveis exige prática e dedicação. De fato, a expressão “aprender a escrever” geralmente é usada como sinônimo de alfabetização – como se saber desenhar cada letra no papel (de preferência com uma caligrafia suntuosa) encerrasse o assunto. Nem o curso de graduação em jornalismo da USP oferece aulas de estilo.

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Isso não é exclusividade do Brasil, nem do século 21, nem de quem estudou em um colégio fraco. Em 1788, James Hutton – escocês ricaço e pai da geologia moderna – escreveu um livro de mil páginas todinho nessa pegada aqui: ​​“O mundo que habitamos é composto de materiais, não da terra que foi a predecessora imediata da atual, mas da terra que, ao ascender do presente, consideramos a terceira, e que precedeu o solo que estava acima da superfície do mar, enquanto o nosso solo atual ainda estava sob a água do oceano”. Não entendeu? Nem eu.

Na faculdade, nos deparamos com textos assim diariamente e nos sentimos estúpidos diante deles – como se fôssemos culpados por não compreendê-los. Não somos: o problema é dos autores, que não conseguem expor suas ideias em uma sequência de palavras esclarecedora. Em geral, quanto mais anos de estudo, mais erros gramaticais um falante comete. Em uma pesquisa, o linguista William Labov encontrou a maior porcentagem de deslizes na fala de acadêmicos, com a classe média em segundo lugar e pessoas de baixa renda em terceiro.

Não se engane: a mensagem “nóis vamo colá no rolê cedão, tio” não está errada só porque o falante usa um boné de aba reta. A gramática da frase está impecável: sujeito (“nóis”), verbo (“colá”), advérbio (“cedão”) e vocativo (“tio”) estão todos nos lugares certos. E o vocabulário e a ortografia estão adequados ao contexto: uma festa organizada via Whats por amigos que partilham do mesmo language code.  

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(Arte/Ilustração: Taíssa Maia/VOCÊ S/A)

Por outro lado, a frase “carrinho de mercado deve ser utilizado elevador de serviço” – um exemplo real, no elevador de um prédio de classe média – tem erros de gramática objetivos. Precisa de uma vírgula e uma preposição (“para”), no mínimo, além de dois artigos definidos (“o”): “para o carrinho de mercado, deve ser utilizado o elevador de serviço”. Bom mesmo seriam alguns retoques estilísticos: “utilize o elevador de serviço para subir com o carrinho de mercado”.

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Estudar muito não é sinônimo de usar bem a língua, mas se aprofundar em redação e estilo pode ajudar todo mundo – de Hutton ao síndico – a se comunicar melhor. Um jeito bom de começar é seguir algumas regras objetivas, que servem como balizas. A seção central deste texto fornece algumas delas; uma lista de problemas comuns, com sugestões para corrigi-los.

Esse é só o começo: escrever não é uma ciência exata; há bons motivos e ocasiões para quebrar qualquer norma da listinha (nas palavras de Pablo Picasso, “aprenda as regras como um profissional, para que você possa quebrá-las como um artista”). Por isso, em longo prazo, o melhor jeito de se aperfeiçoar não é aumentar seu livro de regras, e sim usar estratégias mais subjetivas, que explicamos mais para o final deste texto.

Antes de começar, duas orientações gerais: 1. Acostume-se com a ideia de que textos bons não nascem prontos. Cada parágrafo desta revista foi reescrito duas ou três vezes até alcançar a forma final. 2. Toda vez que reescrever algo, leia o resultado em voz alta (se tiver tempo, faça isso na manhã do dia seguinte, de cabeça limpa). Você ficará surpreso com o número de pontas soltas – é hora de amarrá-las. Dito isso, vamos nessa:

Adjetivos e advérbios

As palavras se dividem em categorias. Um primeiro passo é reconhecer pelo menos quatro delas: os substantivos dão nome às coisas (carro, cachorro), os adjetivos informam suas características (azul, bonito), os verbos dizem o que essas coisas estão fazendo (andar, comer) e os advérbios informam como, quando ou onde a ação ocorre (lentamente, cedo).

Tome cuidado com adjetivos e advérbios que só repetem uma informação já subentendida. Você não precisa avisar o leitor que uma banana é amarela, ele só precisa saber a cor se for azul. Tampouco diga que seu amigo “bateu a porta estrepitosamente ao sair” – se ele bateu, em vez de fechar, já sabermos que a porta não passa bem. O exemplo na ilustração aqui embaixo é real: a administração do prédio achou necessário informar que o desgaste nas roldanas do portão era contumaz. Não se preocupe: o grau de desgaste não interessa a quem trabalha no edifício. Basta dizer quando o conserto fica pronto.

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Exemplo real, editado apenas para diminuir o comprimento. (Taíssa Maia/VOCÊ S/A)

E corte. Corte, corte, corte. A maior parte das palavras de um primeiro rascunho são inúteis: você pode e deve reescrevê-lo até obter algo mais curto e conciso. Bons textos não desperdiçam palavras – o leitor deve ser capaz de dizer exatamente qual informação nova obteve em cada bloco.

Textos de carne e osso

Evite explicações abstratas, que usem um vocabulário como “processos”, “sistemas” e “governança”  – é melhor apelar para uma metáfora ou comparação, que criam uma imagem palpável no teatro mental do leitor. Compare estes dois exemplos: “o executivo segurava a caneta horizontalmente entre os dentes” (fraco) com “o executivo mordia a caneta como um cachorro morde o osso” (bem melhor).

A frase fraca tem dois problemas. O primeiro é que o verbo é inconclusivo. Há jeitos e jeitos de segurar algo – você só descobre que é uma mordida lá no fim da frase, quando a palavra “dentes” aparece.

O segundo problema é que dá uma trabalheira interpretar o advérbio: “horizontal” força o leitor a pensar em uma linha deitada versus uma linha em pé, e sua intenção não é entediá-lo com ponderações geométricas. Outro risco é remeter ao horizonte no sentido literal da coisa. Uma paisagem litorânea, por exemplo. Aí ferrou: no teatro mental do leitor, o escritório do executivo foi parar na praia e a música do Charlie Brown Jr começou a tocar.

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A comparação com o cão e o osso resolve esses problemas. A imagem é universal, explica a posição da caneta e combina com o personagem: um homem com cara de bravo não é tão diferente assim de um cachorro de cara achatada (Churchill não é ilustrado como um buldogue à toa). Em suma: prefira palavras concretas e pé no chão às abstratas e pomposas.

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(Arte/Ilustração: Taíssa Maia/VOCÊ S/A)

Pompa e circunstância

Uma crise de ostentação desnecessária atinge os substantivos: é comum enfileirar um montão deles em vez de resolver o problema com um verbo. Nas palavras de William Zinsser: “Não chove mais; temos atividades de precipitação ou um caso de probabilidade de tempestade”. (Zinsser é autor de Como Escrever Bem, um dos melhores manuais de escrita disponíveis em português. Parada obrigatória para quem quer se aprofundar.)

Em um e-mail aos gestores, a frase “planejamento de capacidade adiciona objetividade ao processo de tomada de decisão” fica bem melhor como “tenha consciência de quanto trabalho cada funcionário seu aguenta fazer por dia antes de distribuir as tarefas”. Escreva pensando no que você quer que aconteça na prática, não no que parece bonito no papel. Uma dica é pensar em como você daria a mesma instrução para uma criança de dez anos.

Quem faz o quê

“A mulher comeu peixe” tem um sujeito que realiza a ação (a mulher) e um objeto que sofre a ação (o peixe). Quando construímos uma frase na ordem tradicional – com o sujeito antes e o objeto depois –, a atenção fica na mulher, e o peixe sobra em segundo plano, no final da frase. Essa ordem típica é o que os gramáticos chamam de voz ativa. O contrário da voz ativa é a voz passiva, que evidencia o objeto: “o peixe foi comido pela mulher”.

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De modo geral, a voz passiva deixa as frases mais longas e confusas: compare “eu lembro com carinho da minha primeira visita à praia” com “minha primeira visita à praia é lembrada por mim com carinho”. Lixo puro.

Na vida corporativa: em vez de dizer que “foram descobertas três imperfeições nos processos logísticos”  – por medo da reação do gestor –, afirme com segurança: “encontrei três problemas no modo como colocamos as caixas nos caminhões”.

A voz passiva só funciona para valer quando o autor da ação é irrelevante, como em “o celular foi roubado”. Pense na escolha entre voz ativa e passiva como um holofote, que o escritor escolhe apontar para o sujeito ou para o objeto. Em geral, é melhor apontá-lo para o sujeito. Na dúvida, faça como ensinou George Orwell (1903-1950), escritor britânico que sabia tudo do riscado: “Não use a voz passiva quando der para usar a ativa”.

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Exemplo usado por Steven Pinker no livro Guia de Escrita (Editora Contexto). (Taíssa Maia/VOCÊ S/A)

A maldição do conhecimento

O psicólogo e linguista Steven Pinker – autor de um manual publicado no Brasil com o título Guia de Escrita, outra leitura essencial – explica problemas de escrita baseando-se num fenômeno denominado maldição do conhecimento. Nas palavras dele, “uma dificuldade em imaginar como é, para outra pessoa, não saber uma coisa que você sabe”.

Humanos são, por default, péssimos em se colocar no lugar de outros humanos. Uma pessoa destreinada demonstra nervosismo ao tentar vender um produto com defeito, porque ela sabe que há um defeito e não é capaz de se colocar na posição de um comprador que não sabe. O mesmo problema ocorre em um texto quando você diz uma coisa sem dar o contexto necessário para entendê-la.

Bons escritores superam essa maldição e começam a explicação de onde o leitor precisa partir para entender tudo, ainda que isso envolva revisitar um montão de coisas que eles já estão carecas de saber. Um artigo de ciência para leigos sobre DNA precisa dizer o que é uma molécula – abrir falando em éxons e íntrons tornará a leitura incompreensível e decepcionante. Diga isso para o pessoal da TI da próxima vez que eles vierem com ASCII, AWS e B2B: cortar siglas e jargões – e substituí-los por um didatismo paciente – é a melhor forma de atender outros setores.

Pinker explica que a maldição desperdiça tempo até nos cantinhos mais inesperados do dia a dia. Por exemplo: quando um grupo de funcionários vai mandar relatórios individuais para seus gestores Rafael e Letícia, eles tendem a nomeá-los como “relatório_Rafael.pdf” e “relatório_Letícia.pdf”. Resultado: os dois vão acabar com uma pasta lotada de arquivos de nome idêntico, sem saber quem fez o quê.

Ao devolver os documentos corrigidos, é provável que Rafael e Letícia cometam o erro ao contrário – e ponham só o nome dos funcionários no título do arquivo, de modo que os subordinados não terão como saber qual relatório veio de qual gestor.

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(Arte/Ilustração: Taíssa Maia/VOCÊ S/A)

Leia (e entenda) antes de escrever

Um texto é uma forma de registrar pensamentos no papel. Se os seus estiverem bagunçados, o texto ficará uma salada por tabela. Um truque clássico de editor de jornal – ao se deparar com um trecho como “filósofos da mente não sabem como é o quale da ecolocalização nos morcegos” – é perguntar ao repórter: o que você quis dizer aqui?

Se a explicação estiver clara na cabeça dele, a resposta vai vir algo como: “Os morcegos enxergam no escuro emitindo um som e vendo quanto tempo ele demora para voltar. Como a gente não tem esse sexto sentido, não consegue imaginar como é ser um morcego”. Sinal de que o jornalista entendeu, mas se deixou levar pela tentação do vocabulário pomposo. Aí é fácil: basta trocar a explicação original pela falada.

Por outro lado, se a explicação falada vier toda enrolada, é sinal de que o repórter escreveu termos como “quale” e “ecolocalização” só porque algum entrevistado falou isso, sem entender os reais significados. É hora de pesquisar mais. Numa empresa, quando você se descobre incapaz de explicar o passo a passo de um procedimento para um novo estagiário, é sinal de que o procedimento está nebuloso na sua própria cabeça. É uma boa revisar.

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(Taíssa Maia/VOCÊ S/A)

Tudo que falamos nas últimas páginas só vai funcionar, claro, se você dominar os rudimentos do português. Um livrão do Pasquale funciona sozinho? Não. Decorar regras em gramáticas escolares é um tédio. Você precisa ler. Leia o máximo que puder, sobre o assunto que preferir: se seu hobby é construir aquários, encontre um bom site sobre aquários. Não gostou de Machado de Assis? Tudo bem: Harry Potter é muito bem escrito.

Lendo, você acumula repertório, e as regras se tornam intuição: você passa a saber quando certas vírgulas são necessárias ou desnecessárias, ainda que não seja capaz de enunciar a explicação exata para cada uma delas – do mesmo jeito que um músico autodidata deduz o próximo acorde porque já ouviu e tocou centenas de outras músicas com uma sequência similar, mesmo sem conhecer sétimas menores ou subdominantes (jargão detectado, perdão pelo deslize).

Quando estiver lendo, divirta-se onde o texto correr sem percalços. Mas, quando empacar em um trecho, pause por um segundo e avalie se a culpa é sua ou do autor. Se for do autor, anote o que está errado, e não repita na sua própria escrita. Nas palavras de Stephen King, a nona pessoa mais traduzida do mundo: “Cada livro que se pega para ler tem uma ou várias lições, e geralmente os livros ruins têm mais a ensinar do que os bons”.

Boa sorte, leitor: arme-se de livros, dos manuais de escrita citados aqui no texto e até de um app como o Grammarly. Escrever bem, afinal, é essencial para todos – não só para os escritores. 

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