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A volta do dragão: entenda os impactos da reabertura chinesa

A China compra dois terços de toda a soja, a carne e o minério de ferro que o Brasil exporta. E agora, com o gigante asiático de volta à normalidade após três anos de lockdown, o comércio entre os dois países tem tudo para crescer ainda mais. Mesmo assim, o otimismo é limitado por uma crise imobiliária persistente. Veja o que está em jogo.

Por Bruno Carbinatto | Design: Brenna Oriá | Edição: Alexandre Versignassi
Atualizado em 14 abr 2023, 08h24 - Publicado em 14 abr 2023, 06h02

Foram três anos intensos. De 2020 até o final de 2022, a China viveu sob a política “Covid-zero”, na qual o governo tentava eliminar praticamente todos os casos da doença, custasse o que custasse. Foi o único país do mundo a optar por esse caminho no longo prazo.

As medidas do Partido Comunista incluíram testagem em massa frequente, controle duro das fronteiras e, é claro, os draconianos lockdowns – que afetavam cidades ou províncias inteiras por períodos indeterminados. Comércios eram fechados; pessoas só podiam sair de casa com autorização; infectados ou quem tivesse tido contato com um tinham de passar por longos períodos de isolamento.

Foi assim por muito tempo. Mas, no final de 2022, aconteceu algo raro: a população chinesa se revoltou. Protestos ganharam força massiva em pouco tempo, a ponto de vencer a censura e a repressão do governo ditatorial. A pressão foi tanta que, em dezembro, o Partido Comunista tomou uma decisão rápida: abandonar a política de Covid zero e retornar à normalidade. Assim, a China já entrou em 2023 com uma mudança radical nos planos.

A notícia chacoalhou as previsões econômicas do mundo todo para o ano. Uma China reaberta, afinal, é sinônimo de uma economia aquecida – na contramão dos países ocidentais, que sofrem com inflação e juros altos. Seria o gigante asiático a salvação? A verdade é um pouco mais complexa. 

Explodiu

Ninguém esperava que a China fosse manter sua política super restritiva para sempre. Afinal, ela estrangulou o crescimento do país. Em 2022, a economia chinesa cresceu só 3%, pior resultado desde 1976 – e muito aquém da meta de 5,5% estabelecida pelas autoridades no início do ano. A última vez que a China tinha falhado em cumprir a missão foi em 1998, quando o crescimento ficou 0,2% abaixo do esperado por Pequim.  

Daí que o fim dos lockdowns já estava no radar de todo mundo para 2023. “Dado o posicionamento do governo chinês, nossa opinião era de que a reabertura iria ficar mais para o segundo trimestre”, diz Arthur Mota, economista do BTG Pactual. 

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Mais do que o adiantamento do seu início, o que surpreendeu foi a velocidade da reabertura: entre novembro e janeiro o país abandonou a maior parte das suas rígidas diretrizes, sem ter muito bem um período de transição. Não fosse a revolta da população, o processo provavelmente seria gradual, ao longo de todo o ano.

No começo, muitos no Ocidente foram céticos quanto a essa reabertura “turbo”. Mas ela já ocorre.

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(Brenna Oriá/Fotos: Getty Images/VOCÊ S/A)

Dá para usar a cidade de Xangai como termômetro. Com seus 26 milhões de habitantes, a metrópole é o principal centro financeiro do país e também a que mais sofreu com os lockdowns em 2022 – foram quase três meses ininterruptos fechada. Não à toa, a economia da cidade retraiu 0,2% no ano, apesar de a China como um todo ter crescido 3%.

Mas a normalidade parece ter finalmente voltado: em fevereiro deste ano, o nível de uso do metrô na cidade, por exemplo, já estava no mesmo patamar pré-pandemia. Os voos domésticos nos aeroportos de Xangai também se recuperaram. Os postos de testagem espalhados pelas  =ruas desapareceram. 

Enquanto confinados, os chineses pouparam muito dinheiro. Antes da pandemia, as famílias guardavam 17% do que recebiam por mês; no lockdown, esse número subiu para 33%, segundo a Bloomberg. O resultado foi de US$ 827 bilhões “extras” esperando para serem gastos, ao menos parcialmente, na reabertura do país. 

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A volta dos cidadãos às ruas após um longo período de poupança, então, tem levado a uma recuperação econômica dos setores que mais tinham sido afetados pela Covid-zero: varejo, turismo e serviços. Ajudou que a reabertura aconteceu logo antes do Ano Novo Chinês, o mais importante feriado do país, em que centenas de milhões viajam e vão às compras. As vendas no varejo no primeiro bimestre subiram 3,5% na comparação anual –  revertendo uma queda de 1,8% em dezembro. Naturalmente, o segmento de restaurantes e refeições foi o que mais surfou na onda, com um salto de 9,2% na comparação anual. 

Ou seja: a reabertura engatou. Nisso, o mundo todo deve ser afetado pela demanda crescente dos chineses. Mas o Brasil, especialmente, tem motivos para comemorar.

Made in Brazil

Desde 2009, a China é o nosso maior parceiro comercial: em 2022, 26,8% de tudo o que exportamos foi para lá; os EUA vêm num distante segundo lugar, com 11,2%. Vendemos principalmente commodities e importamos produtos de maior valor agregado; nessa dinâmica, a balança comercial é positiva em US$ 30 bilhões para o nosso lado. 

O timing da reabertura chinesa coincidiu com os avanços de um acordo bilateral para que o comércio e os investimentos entre Brasil e China sejam feitos diretamente em real e yuan. Isso elimina necessidade do dólar como moeda intermediária nas transações, reduzindo os custos de câmbio. É uma opção (mas não obrigação) que pode ampliar ainda mais as relações comerciais entre os dois países.

O anúncio ocorreu no Simpósio de Negócios China-Brasil, que rolou em Pequim no mês de março. O evento reuniu mais de 500 empresários de ambos os países, bem como autoridades nacionais – com exceção do presidente Lula, que iria, mas precisou ficar por conta de uma pneumonia e só visitou o país no dia 11/04, quando as negociações continuaram. Esses eventos marca o interesse chinês pela participação brasileira nessa retomada econômica. 

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O destaque fica em grande parte para o agronegócio. 73% da carne bovina exportada pelo Brasil tem como destino a China; 70% da soja também. O grão, aliás, é o mais importante produto dessa relação: em dólares, correspondeu a 36% de tudo que vendemos para os chineses em 2022. Com 1,4 bilhão de cidadãos prontos para gastar mais em alimentação e restaurantes, a demanda pela oleaginosa, usada principalmente como ração animal, dispara.

As previsões mais otimistas compiladas pela Bloomberg mostram que as importações de soja no gigante asiático podem pular para um recorde de mais de 100 milhões de toneladas em 2023, contra 90 milhões em 2022. Atualmente, a China já compra quase dois terços de toda soja vendida no mercado internacional.

Logo depois da soja vem o minério de ferro, como segundo personagem mais importante dessa relação. Ele também surfa na onda da reabertura, mas com ressalvas.

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(Brenna Oriá/Fotos: Getty Images/VOCÊ S/A)

Fome de minério

A China é a maior produtora de aço do mundo, com 1,01 bilhão de toneladas anuais – mais da metade de tudo o que o mundo consome. Logo, seu apetite por minério de ferro é voraz: sozinha, ela responde por 60% do mercado mundial dessa commodity, a matéria-prima do aço. Por isso, faz todo sentido que a reabertura dê um boom na sua cotação, e isso de fato aconteceu.

Desde que os primeiros sinais apontaram para o fim da política de Covid-zero, a cotação do minério saltou da casa dos US$ 86, no começo de novembro, para rondar os atuais US$ 130 – uma alta de mais de 50%. 

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Também é uma ótima notícia para o Brasil. Somos o segundo maior produtor global de minério de ferro (410 milhões de toneladas em 2022). À nossa frente, temos só a Austrália (880 milhões). Nosso maior cliente nesse mercado é, naturalmente, a nação asiática. 20% do valor de tudo que exportamos vem dessa commodity, que perde apenas para a soja. A China compra 65% do minério que o Brasil exporta. 

Ao mesmo tempo, a commodity esconde uma história mais conturbada, e menos otimista, nesse cenário de reabertura. Os US$ 130 atuais ainda estão distantes do patamar de mais de US$ 200, atingido em meados de 2021. Na época, o mercado esperava que os países desenvolvidos fossem pisar o pé no acelerador dos investimentos em infraestrutura para tirar suas economias do buraco pandêmico.

O governo chinês não gostou da valorização. Sob justificativa de evitar especulações no mercado, o Partido Comunista mandou as siderúrgicas baixarem sua produção de aço na marra. Era uma estratégia de Pequim para reduzir a cotação do minério. Mas esse foi apenas o comecinho da trajetória de queda; o que realmente derrubou os preços foi a crise imobiliária do país.

A construção civil é um gigante da economia chinesa – chega a corresponder a um quarto do seu gigantesco PIB. O porquê disso tem a ver com a própria história recente de desenvolvimento do país, que levou a um enorme êxodo rural. A população urbana cresceu em mais de 500 milhões nos últimos 30 anos, e a porcentagem das pessoas com casa própria passou dos 50% para mais de 80%.

A urbanização turbo gerou um enorme e aquecido mercado de construtoras, regado a incentivos do governo para dar conta do recado. Mas uma hora a conta chegou, e mostrou que o setor estava inflado demais. O estopim foi a derrocada da Evergrande, a segunda maior incorporadora do país. Com US$ 300 bilhões em dívidas, a empresa ameaçou quebrar de vez no ano passado e não entregar as obras em andamento, o que poderia criar um efeito dominó infernal no monstruoso mercado imobiliário chinês – e em toda economia mundial.

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Pequim aproveitou para mudar sua postura de décadas. Em vez de salvar o setor com injeção imediata de liquidez (dinheiro), o Partido Comunista apertou sua mão de ferro sobre o setor, retirando estímulos e aumentando as regulações para evitar uma nova bolha, eventualmente pior, lá na frente. “Foi um aviso bem claro do governo para o setor de construção, de que agora ele vai perder força na economia e desalavancar”, diz Laura Pitta, economista do Itaú BBA. O governo até agiu para evitar uma crise sistêmica, mas de forma pontual e direcionada, sem jorrar grana aos montes em todo o setor.

Resultado: o investimento em imóveis em 2022 caiu 10% em relação a 2021. E as vendas de propriedades desabaram 26,8% no ano, em meio a um mar de construções inacabadas por falta de dinheiro.

No fim, a Evergrande não chegou a quebrar e hoje apresenta plano de reestruturação de dívida, sob forte intervenção do Estado. Mas todo o setor imobiliário ainda sofre com o fantasma da crise, e sua recuperação está bem mais longe do que a de outros segmentos da economia. Com menos prédios levantando, a demanda por aço cai, e a cotação do minério fica com o freio de mão puxado.  

No primeiro bimestre deste ano, as vendas de residências cresceram pela primeira vez em vinte meses, o que marca o início da recuperação. Mas a crise segue. Recentemente, até o FMI alertou publicamente que a situação é preocupante. “Os problemas das construtoras que enfrentam graves dificuldades financeiras ainda não foram resolvidos. E a questão da grande quantidade de moradias inacabadas também não”, disse o órgão.

Esse otimismo mais comedido em relação ao mercado imobiliário chinês explica o comportamento das ações da Vale, a nossa gigante do setor de minério. Os papéis da maior empresa do Ibovespa surfaram na onda inicial da reabertura chinesa e subiram da casa dos R$ 70 em novembro para rondar os R$ 95 no final de janeiro.

Desde então, porém, acumulam queda de 15%, de volta ao patamar de R$ 80 – justamente porque o mercado imobiliário chinês ainda tem muito chão para se recuperar.

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(Arte/VOCÊ S/A)

Soneca?

A desconfiança com a crise imobiliária não é a única incerteza que limita o otimismo com a reabertura da China. Um dado que levantou preocupações entre alguns analistas foi a meta de crescimento estabelecida pelo Partido Comunista para este ano: 5% – a menor em três décadas. Isso, vale lembrar, depois de o país crescer só em 3% em 2022 ante uma meta de 5,5%.

Os mais pessimistas leram o dado do ponto de vista do copo meio vazio. Uma meta conservadora para os padrões chineses pode indicar que o governo não está confiante numa recuperação turbo – nem disposto a estimular a economia para atingi-la.

Outros destacam o lado meio cheio do copo. “A China vem convergindo para um ritmo de crescimento mais parecido com o dos EUA e da Europa. Aqueles 10% a que estávamos acostumados ficaram para trás”, diz Laura Pitta, do Itaú. Segundo ela, a sinalização do governo de que não haverá estímulos exagerados é uma boa postura para o médio e longo prazo, pois evita o surgimento de novas bolhas.

Arthur Mota, do BTG, argumenta que o conservadorismo também tem uma face estratégica. “É uma forma de deixar uma barra relativamente baixa e fácil de ser atingida para recuperar a confiança da população de que o governo consegue bater suas metas”, diz. De fato, a maior parte das projeções colocam o crescimento do país rondando confortavelmente os 5,5% neste ano.

De qualquer forma, os dados não mentem: a recuperação chinesa é sólida, e já está acontecendo. Mas talvez não seja uma expansão titânica, e quem esperava um milagre chinês para salvar o mundo da desaceleração econômica pode quebrar a cara.  

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