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Brasil Kamikaze: entenda o impacto das eleições no mercado financeiro

Bolsonaro abriu o cofre às vésperas das eleições e colocou em risco a sustentabilidade das contas públicas. Pior: a gastança pode se tornar permanente, seja qual for o vencedor do pleito. Entenda como esse desbalanço, mais as ameaças de golpe, travam o PIB, bagunçam o mercado financeiro e põem em xeque o futuro do país.

Por Tássia Kastner | Ilustração: João Montanaro | Design: Juliana Krauss
Atualizado em 24 ago 2022, 12h04 - Publicado em 12 ago 2022, 06h27

Quando Shinzo Abe, o mais importante líder político da história recente do Japão, foi assassinado, no dia 8 de julho, ele fazia campanha às vésperas das eleições para o Senado em seu país. Naquela sexta, a bolsa de Tóquio seguiu seu curso normal, e fechou em alta. Na véspera, Boris Johnson renunciou ao posto de primeiro-ministro do Reino Unido – e o FTSE continuou na mesmíssima toada, acompanhando as demais bolsas europeias. Para o mercado financeiro, era mais um dia qualquer.

Faz sentido. Investidores compram e vendem ações, dólares, títulos públicos e toda a sorte de ativos de acordo com as expectativas que eles têm sobre o que acontecerá com a economia no futuro. A troca de primeiro-ministro não muda a direção da economia britânica (que patina desde o Brexit, por sinal), assim como o atentado político contra o ex-premiê japonês tinha baixíssima chance de alterar o destino do país asiático.

Corta para o Brasil. A cada quatro anos, pesquisas de intenção de votos se transformam em “indicador econômico” tal qual índice de inflação e taxa de desemprego. E elas são usadas para justificar vertiginosas altas e baixas do Ibovespa, mudanças bruscas no câmbio e nas taxas de juros. Elas são o dado mais palpável para aquilo que o mercado financeiro gosta de chamar de “incerteza eleitoral”.

Dá para dizer que, no curso de três anos de cada ciclo político, investidores sabem mais ou menos o que esperar do ocupante do Palácio do Planalto, independentemente de suas inclinações ideológicas. E aí tomam suas decisões com base nisso. A coisa muda no ano quatro, quando começa a nova campanha eleitoral e é preciso adivinhar 1) quem ganhará o pleito e 2) quais projetos sairão vencedores.

É da natureza dos países de regime presidencialista. Durante a última eleição americana, as bolsas de Nova York brincaram de Ibovespa. Caíam sob o aumento de chances de vitória de Joe Biden, e subiam se Donald Trump dava sinais de que poderia ser reeleito. Investidores diziam que Biden faria um governo mais gastão, enquanto Trump vinha cortando impostos, música para os ouvidos de Wall Street. Biden levou, e o mercado financeiro voltou mais ou menos aos trilhos, mesmo com o derrotado nas urnas questionando o resultado das eleições.

Que Trump tentava minar a democracia americana estava claro, mas havia também uma confiança sólida nos sistemas de proteção da democracia. O auge da tentativa de contestar o resultado das urnas foi o ataque ao Capitólio – invasão que segue sob julgamento nos EUA.

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Já o Brasil, como diria a sua mãe, não é todo mundo. Aqui, o presidente Jair Bolsonaro está há quase quatro anos questionando as urnas eletrônicas e fustigando ministros do Supremo Tribunal Federal, enquanto entrega o controle do Orçamento ao Congresso para barrar investigações de corrupção em seu governo.

A empreitada golpista é um projeto. Elio Gaspari, um dos jornalistas mais respeitados do país e que mais estudou a ditadura militar, informou que há um plano nos esgotos de Brasília para tentar adiar as eleições de outubro. Antes disso, no dia 7 de Setembro, Bolsonaro quer usar o bicentenário da Independência do Brasil como ato eleitoral, numa tentativa de demonstrar que tem o apoio das Forças Armadas.

A escalada golpista foi tal que gerou um manifesto da sociedade em defesa do Estado Democrático de Direito. O documento, que cruzou o um milhão de assinaturas em agosto, foi encabeçado por ex-alunos da Faculdade de Direito da USP, e deslanchou depois que ganhou o endosso de banqueiros ligados ao Itaú. Depois da carta da USP, a Fiesp anunciou sua própria carta em defesa da democracia – e arrebanhou apoio de outras entidades empresariais, como Febraban e FecomercioSP.

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Naquela semana, Bolsonaro tinha 29% das intenções de voto, no segundo lugar atrás do ex-presidente Lula, que contava com 49% na preferência dos eleitores, segundo o Datafolha¹. O instituto de pesquisa mostrava que, se a eleição fosse naquele momento, Lula venceria no primeiro turno. Desde que a reeleição foi adotada no país, garantindo um segundo mandato a Fernando Henrique Cardoso em 1998, nunca um presidente em exercício de mandato começou a campanha eleitoral atrás nas pesquisas. E tampouco perdeu uma eleição.

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A vantagem persistiu mesmo após Bolsonaro emplacar um pacote de R$ 41,25 bilhões em transferência de renda durante o período eleitoral, uma medida que foi aprovada a toque de caixa e derrubou pilares criados para evitar o uso político do Estado em uma campanha à reeleição. Também minou a sustentabilidade das contas públicas em longo prazo.

Foi aí que as eleições passaram a influenciar diretamente o sobe e desce da bolsa e do câmbio nesta temporada.

Kamikaze

Eleição é tipo festa de criança: cada ano tem um tema. Em 2018, o que pegou era “a nova política”. Neste ano, o que manda é a economia. E não é só por causa da Faria Lima.

Com a inflação cavalgando solta na casa dos dois dígitos e os preços dos combustíveis na lua, é inevitável que brasileiros gastem mais tempo fazendo contas para fazer o salário pagar as despesas do mês do que se perguntando se tem alguém pedindo propina. E o mínimo que eles esperam é que o governo faça alguma coisa para aliviar a situação.

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Normal, então, que o governo tente agir para ganhar votos. Só que fazer alguma coisa é diferente de fazer qualquer coisa. Com a interferência direta do governo Bolsonaro, o Congresso aprovou a PEC Kamikaze, uma proposta de emenda à constituição que liberou o governo a emitir R$ 42,5 bilhões em dívidas para pagar benefícios sociais durante o período eleitoral.

A partir deste mês de agosto, caminhoneiros e taxistas receberão R$ 1 mil de auxílio por mês, com validade até o fim do ano. Serão R$ 6 mil por pessoa. Beneficiários do Auxílio Brasil, que já haviam ganhado um aumento para R$ 400 por mês, terão R$ 600 creditados na conta, isso sem falar no vale-gás inflado a cada dois meses – tudo até dezembro. E há ainda nesses R$ 42 bilhões orçamento para a compra e doação de cestas básicas.

A lei eleitoral proíbe que o governo federal distribua dinheiro ou produtos (como cestas básicas) em ano de eleição, a não ser que os benefícios tenham sido previstos no Orçamento no ano anterior. Não foram.

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Existe, porém, uma exceção a essa lei: se for decretado estado de calamidade pública. É aí que entra a PEC Kamikaze. O texto decretou tal estado até o fim do ano em consequência da alta dos preços dos combustíveis. A justificativa é que a alta está associada à guerra na Ucrânia, iniciada em fevereiro.

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Foi assim que o governo conseguiu aval para abrir os cofres públicos e tentar reduzir a distância entre Bolsonaro e Lula nas pesquisas de intenção de voto. Pois “estado de calamidade pública”, ou “de emergência nacional”, como tem sido mais chamado, não há: quando a PEC foi aprovada, o preço do barril do petróleo estava ao redor de US$ 100, num patamar mais próximo do período pré-guerra do que o pico de US$ 127 atingido duas semanas depois do conflito.

Não foi apenas um drible na lei eleitoral. A medida também terminou de dinamitar o teto de gastos do país. O instrumento foi criado durante o governo Temer para limitar o crescimento das despesas públicas. A cada novo ano, o governo só poderia gastar o mesmo valor do ano anterior corrigido pela inflação, isso mesmo que houvesse um aumento de receita com impostos. A ideia era garantir que um eventual ganho de arrecadação servisse para diminuir a dívida pública. Os R$ 42 bilhões estão fora do teto de gastos.

E essa não foi a única intervenção para tentar içar na marra a popularidade do atual presidente.

Antes, Brasília havia aprovado um teto de 17% para a cobrança de ICMS sobre combustíveis, contas de luz e telefone, um jeito de fazer a conta do consumidor cair sem colocar a mão no próprio bolso – o rombo ficou no caixa dos governadores. Essa mudança é permanente.

Já as benesses na forma de pagamentos em dinheiro valem até 31 de dezembro. A partir de 1º de janeiro, tudo volta ao normal. Caminhoneiros e taxistas perdem o benefício emergencial e o Auxílio Brasil retorna aos R$ 400.

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Bem. Antes fosse simples assim.

Longo prazo

Milton Friedman, Nobel de economia e pai dos “chicago boys”, deu a letra. “Não existe nada mais permanente do que um programa governamental temporário”, repetia ele.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, cuja formação foi na Universidade de Chicago, talvez estivesse pensando nisso quando chamou de Kamikaze a PEC dos auxílios. Pegou mal em Brasília, aí ele voltou atrás e disse que o programa era a “PEC virtuosa das bondades”. Pode chamar como quiser. O fato é que o caráter suicida para as contas públicas segue intacto.

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“Sem entrar no mérito se o conjunto de medidas seriam ou não justificáveis no contexto atual [de calamidade pública], o que causou apreensão no mercado é a possibilidade de algumas dessas medidas se tornarem permanentes. A redução do ICMS é uma medida permanente que pode retirar mais de R$ 80 bilhões de arrecadação dos estados por ano. O aumento do Auxílio Brasil, se transformado em uma transferência permanente, significa uma despesa nova obrigatória de 0,5% do PIB, elevando o custo total deste programa de 0,9% do PIB para 1,4% do PIB no próximo ano”, escreveu Mansueto Almeida, ex-secretário do Tesouro e hoje economista-chefe do BTG Pactual.

Friedman estava certo. Mansueto também. A PEC Kamikaze criou auxílios temporários, mas Lula já disse que manterá o aumento do Auxílio Brasil em 2023 se for eleito. E aí Bolsonaro rebateu afirmando que o bônus que ele mesmo aprovou como temporário também seria mantido num segundo mandato. Se existe dúvida de que há um consenso em prol da gastança entre situação e oposição, basta olhar o resultado da votação da PEC: na Câmara, 469 deputados votaram a favor e apenas 17 foram contrários.

No Senado, houve apenas um voto contra, de José Serra (PSDB).

Foi o que fez o mercado financeiro perder o rebolado em julho. O dólar escalou a R$ 5,50, patamar que não era visto desde janeiro. Os juros subiram de tal maneira que os títulos públicos passaram a ter rentabilidades que não eram registradas nos últimos sete anos. E a bolsa foi mergulhando para abaixo dos 100 mil pontos.

Dá para dizer que foi a primeira manifestação de “natureza eleitoral” da temporada. Tratava-se da demonstração imediata dos danos de longo prazo causados por algo pensado com razões exclusivamente eleitoreiras. E não é só porque a Faria Lima não gosta de Brasília.

Direito de gastar

Existe um motivo para impedir que governos se endividem desenfreadamente para produzir auxílios: a inflação. Se você gasta mais do que ganha, entra no cheque especial e fica devendo para o banco. Os governos não têm esse problema. A princípio, eles podem criar dinheiro ao infinito.

Esse dinheiro é alimento de dragão. A grana vai para a economia e aumenta a demanda por produtos e serviços. Sem aumento na oferta, os preços sobem. Se há limitação de oferta (como é o caso do mundo pós-pandemia), então, nem se fala. Daí dá para entender por que a inflação brasileira subiu para o maior patamar desde 2003, rompendo até o pico do governo Dilma (10,70% em 12 meses, em janeiro de 2016). E só começou a ceder por medidas artificiais, como o corte de impostos sobre combustíveis.

Medidas como o teto de gastos existem para racionar o combustível da inflação. Antes do teto, o que valia mesmo era a lei de responsabilidade fiscal. A contabilidade criativa do governo Dilma Rousseff acabou com a credibilidade do instrumento de controle. Agora, o governo Bolsonaro implodiu o teto recém-criado.

Os efeitos explosivos são semelhantes sobre a economia. Se o governo pede mais dinheiro emprestado para gastar, em algum momento investidores cobram juros mais elevados para topar negócio. É o medo de que, em algum momento, essa bola de neve seja impagável.

 

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Por isso que os títulos públicos tipo Tesouro IPCA+ passaram a ser vendidos na faixa de 6,30% em julho. Rendimento tão generoso não se via desde 2016. Aí você pode até tentar garantir a aposentadoria. Só que isso também significa que ninguém – nem os bancos – fará muita coisa com o dinheiro a não ser emprestar para o governo.

O Banco Central havia prometido encerrar o ciclo de alta da Selic em 13,75%, na reunião da primeira semana de agosto. Desde a PEC Kamikaze, investidores passaram a achar que 14% é pouco. O Santander e o Credit Suisse passaram a prever que a Selic iria para 14,25%, cravando o teto dos anos Dilma.

Tudo por causa da decisão do governo de gastar mais de olho em alguns votos e dinamitar o que existia de confiança na economia do país. Não à toa, economistas têm repetido que o próximo governo, seja ele qual for, precisará de um “novo teto de gastos”. Não seria nos moldes atuais, mas com o mesmo princípio. A ideia é que exista algum instrumento para impedir o aumento desenfreado de gastos e fazer com que investidores voltem a financiar o governo por juros mais amigáveis. Sem uma nova bola de ferro capaz de segurar os gastos do governo, cavaleiros do apocalipse preveem juros na casa dos 20%.

Só que esta eleição não é qualquer uma. A disputa é tão atípica, quase um plebiscito entre apoiar ou não a sanha golpista de Bolsonaro, que nenhum dos dois lados está realmente interessado em anunciar medidas econômicas. Estrategicamente, faz sentido.

Ainda assim, existem efeitos colaterais. Quando os juros vão para a lua, ninguém investe. E a falta de investimentos é um problema crônico no Brasil.

Segundo dados compilados pelo Observatório Fiscal da FGV, o governo federal investiu 0,29% do PIB entre 2015 e 2020, uma queda brutal na comparação com os 0,64% de 2009 a 2014 – que já não era grande coisa. Ou seja, se prorrogado em 2023, o Auxílio Brasil turbo levará cinco vezes mais dinheiro que o separado para investimentos.

Quando, por anos a fio, uma economia não consegue melhorar sua infraestrutura e desenvolver novas tecnologias, o resultado é queda de produtividade e falta de criação de empregos. E isso está encravado na história recente do país: o PIB não cresce. Na década encerrada em 2020, o PIB per capita encolheu 0,6%, um tombo comparável ao dos anos 1980, até então a década perdida do país. Todo ano nasce mais gente e a população cresce. Se o PIB per capita não vai na mesma velocidade, as pessoas ficam mais pobres.

E ganham menos com seus salários. A taxa de desemprego do país cedeu para 9,3%, uma boa notícia depois do pico de 14,7% de desocupação, há cerca de um ano. Só que os salários não acompanham. Na média, as pessoas estão ganhando 5% menos do que há um ano, isso já descontada a inflação.

Virar esse jogo depende de investimentos pesados. Sem dinheiro do Estado, o investidor privado precisa entrar no jogo, só que ele não fará isso se puder emprestar para o governo em troca de juros vultosos, tipo 6% acima da inflação. Exemplo: a concessão do aeroporto de Congonhas, marcada para 18 de agosto, arriscava subir no telhado com o cenário nebuloso.

Não é só uma questão de dinheiro. A facilidade com que se mudam as regras do jogo não colabora para atrair estrangeiros.

Entre fevereiro e julho deste ano, o Congresso aprovou 11 Propostas de Emenda à Constituição, as PECs. Seis delas mudam regras de Orçamento. Sob Bolsonaro, já são 26 alterações na Constituição – recorde que supera as 19 mudanças de Fernando Henrique Cardoso (em oito anos de governo, não em quatro).

Na lista estão coisas que foram importantes para o país, como a reforma da Previdência. E outras que minam a credibilidade tanto quanto a PEC Kamikaze, caso da PEC dos Precatórios, que autorizou o governo a adiar pagamentos até então inadiáveis. Precatórios são dívidas que a União tem com a população, a Justiça mandou pagar e não é mais possível questionar. Adiar os pagamentos dessas dívidas é uma espécie de calote, e foi o que o governo fez para “arrumar dinheiro” e turbinar o Bolsa Família sob o nome de Auxílio Brasil.

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Ilusão de ótica

Mesmo com a demolição do teto de gastos, a arrecadação de impostos começou a subir de tal maneira que foi capaz de fazer ceder a dívida pública do país em relação ao PIB. O gráfico desta página mostra a queda, tão surpreendente que fez a agência de classificação de risco Fitch revisar a perspectiva da nota brasileira de negativa para estável. É a primeira vez que uma agência de rating melhora a avaliação sobre o país desde a era Lula, quando o Brasil ganhou o selo de bom pagador.

Quem olha o copo meio cheio das finanças nacionais afirma que esse é um bom sinal – e chama de exagerado o mercado como um todo pela reação histriônica ao libera-geral eleitoreiro.

Os dados mostram o seguinte: de janeiro a junho o governo arrecadou ​​R$ 1,089 trilhão em impostos, salto de 11% na comparação com o primeiro trimestre de 2021, já descontada a inflação.

O milagre tem três santos: alta das commodities e retomada do setor de serviços e, sim, a inflação. Com a disparada nos preços de petróleo e minério de ferro no primeiro semestre do ano, Vale, Petrobras e cia faturaram como nunca, impulsionando a arrecadação de impostos das empresas.

O segundo santo, o setor de serviços, foi o último a sair do buraco da pandemia e também impulsiona a arrecadação – ele também é considerado o responsável pela melhora nos indicadores de emprego.

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Isso é bom, claro. Significa que a economia brasileira está reencontrando seu rumo. Só que parte do milagre tem prazo de validade. A maré dos preços do petróleo e do minério já virou, reflexo dos sinais de desaceleração global. O produto da Vale chegou a ser negociado a mais de US$ 200 a tonelada, hoje sai por volta de US$ 100. Idem para o petróleo, que caiu 20% desde o pico, e pode ceder mais caso o conflito na Ucrânia se resolva e/ou a economia global contraia.

Lá fora, os preços das commodities começaram a ceder por medo de que o mundo entre em recessão após as medidas de combate à inflação fora de controle, que afeta todo o Ocidente. E a manutenção da alta nos juros por aqui tende a ter o mesmo efeito sobre o setor de serviços.

E há ainda o terceiro santo, a inflação. Seu salário conta como ela ajuda o governo a arrecadar mais. Via de regra, os brasileiros conseguem anualmente reajustar seus salários para que eles mantenham o poder de compra ante a alta da inflação. Normal.

Salário maior significa pagar mais imposto de renda. É que o governo não reajusta a tabela de IR pela inflação desde 2015. Isso significa que automaticamente mais gente fica “mais rica” aos olhos da receita todos os anos, ainda que a renda real delas (a que desconta a inflação) fique estagnada ou caia. Desde lá, quem ganha mais de R$ 1.903 socializa uma parte da renda com o governo.

Com a correção do salário mínimo em 2023, que subirá para R$ 1.294, trabalhadores que recebam um salário mínimo e meio passarão a ser tributados. A distorção é tão grande que 36 milhões de brasileiros declararam imposto de renda em 2022, 2 milhões acima do que a própria Receita Federal esperava.

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Uma das promessas eleitorais de Bolsonaro era reajustar a tabela do IR, para aliviar o bolso da camada de renda média e baixa da população. O projeto não vingou. Bolsonaro também tinha uma proposta de reforma tributária, liderada por Paulo Guedes.

O texto tinha pontos positivos, como a aguardada tributação de dividendos, mas trazia como maior simbolismo a recriação da CPMF, o velho “imposto do cheque” que passaria a ser cobrado em todas as transações eletrônicas. Nenhum país desenvolvido tem esse tipo de tributação, que pune os mais pobres. E pouquíssimos não cobram nada sobre dividendos, medida que só ajuda os mais ricos. Apenas Singapura, Hong Kong, Estônia, Letônia e Brasil fazem esse afago financeiro para o topo da pirâmide.  

Em suma, há uma bomba armada para as contas públicas. A arrecadação com commodities depende dos ciclos econômicos, o setor de serviços tende a perder fôlego com a alta de juros no país e, se o BC conseguir controlar a inflação, o número de brasileiros pagando mais imposto de renda também vai desacelerar.

Neste ano, a economia deve crescer 2%. Para o 2023, a previsão é de crescimento zero.

O próximo governo chegará sem a confiança do mercado financeiro, com a economia brasileira em uma situação novamente mais frágil e uma bomba fiscal armada. Mais uma vez, o país brincando de ser kamikaze.

E ainda tem o exterior.

Ajuste de velas

O Brasil sofre de um karma persistente: combinar eleições com mudanças na dinâmica da economia mundial. Na eleição de 2018, o Fed subia os juros dos EUA pela primeira vez desde a crise de 2008. Em 2014, as commodities afundavam com o fim do superciclo das matérias-primas – e acabavam com a balança comercial brasileira. Não é só a decisão do governo de balançar a democracia brasileira e elevar os gastos públicos que tem estragado os ânimos dos investidores. Parte do problema está lá fora.

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A economia global viveu dois tsunamis em sequência. Primeiro a Covid; depois, a guerra da Ucrânia. Um combo tão inimaginável que era realmente difícil prever que o globo estaria enfrentando uma onda inflacionária e que o remédio para isso seria içar os juros, que andavam na lona há anos.

O Banco Central americano finalmente decidiu a elevar a “Selic” deles, isso depois que a inflação de lá se consolidou acima de 8%, o maior patamar em quatro décadas.

Só que isso muda completamente a dinâmica de forças da economia mundial. Ter dólares na mão equivale a ter ouro. É a moeda que, em caso de apocalipse zumbi, todo mundo vai chamar de dinheiro. E se dá para colocar os dólares no cofre do Fed e ganhar uma grana mais generosa por isso, melhor ainda.

É o que está acontecendo. Investidores debandaram de economias emergentes, retroalimentando as crises. Na Argentina, a moeda colapsou e tombou mais de 30%, para o menor patamar da história ante o dólar. No Chile, considerado o “país rico” da América Latina, o peso chegou a acumular queda de 25% neste ano. E nem o euro tem conseguido passar ileso: chegou a ser negociado valendo um dólar, algo que não ocorria desde 2002.

O real acabou se segurando porque tinha a ajuda das commodities e da alta brutal da Selic. Mesmo que o Fed tenha um colo mais quentinho, a diferença de mais de 10 pontos percentuais entre a rentabilidade dos juros nos EUA e no Brasil segura estrangeiros por aqui. A venda de matérias-primas em dólar traz mais verdinhas para o mercado nacional.

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No repique causado pela PEC Kamikaze, o dólar foi a R$ 5,50. Mesmo assim, ainda estava abaixo dos R$ 5,57 do fim do ano passado. É uma boa notícia. Significa que, mesmo derrubando o teto, as bases da economia brasileira continuam relativamente estáveis. Para que continue assim, é preciso manutenção. É necessário que o próximo governo faça um uso mais eficiente dos recursos públicos, garantindo que o Brasil tenha um futuro mais próspero daqui para frente, e que qualquer coisa semelhante a tentativa de golpe volte a ser assunto apenas de livros de história. Sem isso, o Brasil pode, sim, virar uma Argentina – ou uma Venezuela. Esse seria o Brasil Kamikaze.

¹ O Datafolha ouviu 2.556 eleitores em 183 cidades. A pesquisa está registrada no Tribunal Superior Eleitoral sob o número BR-01192/2022. A margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou para menos.

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