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A febre das marmitas: como empreender e se destacar neste mercado

Para economizar ou se alimentar melhor, as pessoas estão consumindo comidas prontas saudáveis. Tocar um negócio nesse segmento exige mais do que bom tempero

Por Erica Martin
Atualizado em 9 jul 2020, 11h30 - Publicado em 9 jul 2020, 11h30

Matéria originalmente publicada na Revista VOCÊ S/A, edição 264, em 07 de maio de 2020. 

Os brasileiros que não têm oportunidade de cozinhar e que, ao mesmo tempo, estão em busca de pratos mais saudáveis a um preço acessível têm enxergado na compra de marmitas caseiras uma alternativa para o dia a dia. Esse mercado ganhou mais espaço nos últimos cinco anos. A explicação vem da crise econômica que deixou mais de 12 milhões de pessoas sem emprego.

“Muita gente parou de consumir refeições em restaurantes e recorreu às tradicionais marmitas, que, em geral, são mais baratas. Foi quando vimos brotar vários negócios, principalmente de microempreendedores individuais, os MEIs”, explica Karyna Muniz, consultora do Sebrae São Paulo. Dados do Ministério da Economia apontam que o número de empresários do ramo de alimentação para consumo domiciliar (o que inclui os marmiteiros) cresceu muito nos últimos anos. Em 2014, eram 102.100. Em 2020, são 247.700 — um salto de 142%.

Mais do que bom tempero

Em geral, a necessidade de uma renda imediata é o que atrai empreendedores para esse ramo. Embora à primeira vista possa parecer um segmento fácil de atuar, já que muita gente começa a preparar as refeições na cozinha de casa, há diversas normas sanitárias a serem seguidas. A resolução federal da Anvisa RDC 216, de 1999, que trata sobre as Boas Práticas para Serviços de Alimentação, é uma das mais importantes.

O documento recomenda, por exemplo, que a área onde serão produzidas as marmitas seja segregada do restante da residência — não é uma lei, mas uma sugestão para quem quer se profissionalizar no setor. “Qualquer um pode começar a empreender dentro de casa, mas, quando a gente fala de transformação de insumos que serão ingeridos por humanos, deve-se seguir mais à risca as legislações, mesmo que seja no ambiente doméstico”, diz Karyna.

É fundamental saber, especialmente, a forma correta de manusear e armazenar os alimentos. A especialista do Sebrae explica, por exemplo, que para congelar um alimento de forma segura é preciso submetê-lo a uma temperatura de, no máximo, 12 graus negativos, o que não é garantido por um freezer doméstico.

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O que aparenta ser um mero detalhe pode tornar a refeição imprópria para o consumo e, como consequência, desencadear problemas de saúde entre os clientes — e sérios prejuízos para o empreendedor. “Ele pode responder legalmente e criminalmente se algum consumidor tiver uma intoxicação alimentar”, explica.

Por isso a profissionalização do segmento é tão necessária. Para o empreendedor que tem uma verba disponível, vale a pena investir, desde já, na adequação de um espaço exclusivo para o preparo dos pratos. Será necessário desembolsar, em média, 30.000 reais.

A adequação deve incluir colocação de piso antiderrapante; bancada de inox; pia exclusiva para lavar as mãos; instalação de telas nas janelas para evitar a entrada de insetos; lixeiras com pedal; além de aparelhos eletrodomésticos que devem ser usados exclusivamente para o preparo dos pratos que serão comercializados (como freezer, fogão, geladeira e forno). “Atendendo a esses requisitos, o empresário terá mais chances de evitar a incidência de contaminação cruzada e a proliferação de bactérias”, diz Karyna.

Se não tiver verba suficiente para montar uma estrutura conforme manda a lei, o empreendedor pode recorrer às cozinhas compartilhadas, como é o caso da Oficina na Mesa e do Hub Foodservice, localizados em São Paulo e que funcionam como uma espécie de coworking voltado para o ramo de alimentação. “O usuário paga por hora para usar equipamentos industriais próprios para a produção de pratos em maior escala”, diz Karyna. Depois de escolher o local é importante definir um cardápio semanal para comprar com inteligência os ingredientes que serão usados no preparo das marmitas.

Ilustração: Guilherme Henrique ()

Caminho das pedras

Muitos se assustam com isso, mas formalizar o negócio traz vantagens. Quando se torna uma pessoa jurídica, o empreendedor tem acesso a benefícios como a possibilidade de barganhar preços menores na compra de ingredientes. “Sem CNPJ, ele vai ter de comprar insumos no varejo, que são mais caros do que os vendidos por distribuidores ou atacados, que só vendem para empresas”, diz a especialista do Sebrae.

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Para quem acabou de abrir o próprio negócio, a orientação é se cadastrar como Microempreendedor Individual no Portal do Empreendedor. A modalidade é indicada para empresas que faturam até 81.000 reais por ano e têm até um empregado. Além disso, para quem está começando, a dica é receber os pedidos com pelo menos 24 horas de antecedência e, com isso, evitar entregar as marmitas com atraso. Quanto ao armazenamento, é imprescindível que as refeições sejam colocadas em embalagens certificadas.

Outra orientação refere-se ao cadastro em aplicativos de entrega. O empreendedor que, logo de cara, opta pelo app para comercializar os pratos, pode acabar se enrolando com a demanda. “Não dá para saber a quantidade de pedidos que serão feitos, e ele poderá não dar conta. O ideal, portanto, é migrar para as plataformas só depois de ter uma produção estruturada”, acrescenta Karyna. No começo, a orientação é usar o próprio carro para fazer a entrega ou oferecer ao cliente a opção de retirar o pedido no local.

Como se destacar

Nelson Andreatta, fundador da Eats For You: plataforma conecta cozinheiros a clientes | Foto: Filipe Redondo ()

Quem quer empreender no ramo de marmitas deve encontrar um diferencial competitivo — só assim o negócio irá parar de pé. Para isso, é fundamental entender que existem dois grandes guarda-chuvas nesse mercado. O primeiro deles inclui a produção de pratos tradicionais. “Nesse caso, o principal apelo é oferecer uma refeição que tenha preço acessível e que contenha elementos de comfort food, ou seja, com gosto de comida de casa, como a mãe da gente fazia”, explica Sérgio Molinari, sócio da Food Consulting, consultoria especializada em alimentação.

Foi justamente pensando em atender às necessidades dessas pessoas que o publicitário Nelson Andreatta, de 39 anos, fundou, em 2018, a Eats For You, plataforma que conecta pessoas que gostam de cozinhar a consumidores que estão à procura de uma refeição caseira para almoçar. A ideia surgiu em 2016 quando o empreendedor, que ainda administrava sua agência de publicidade e propaganda em Cuiabá, em Mato Grosso, se cansou das opções de refeições oferecidas ao redor do escritório. “Um dia tivemos uma reunião que terminou próximo ao horário do almoço e meu sócio perguntou onde iríamos comer. Me lembrei de todos os restaurantes da redondeza e não tive vontade de ir a nenhum deles. O que eu queria era uma comida caseira”, diz Nelson.

Ao olhar pela janela do escritório, imaginou quantas pessoas estavam em casa, naquele momento, preparando o próprio almoço. Assim, vislumbrou a oportunidade de lançar sua startup. O empreendedor e sua sócia, Ester Scheffer, investiram 150.000 ­reais de capital próprio para desenvolver a plataforma, que demorou cerca de um ano para ficar pronta.

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“O objetivo era formar uma rede de conexão de cozinheiros e cozinheiras, levando a produção de refeições a uma escala industrial, mas de forma artesanal, além de proporcionar geração de renda para essas pessoas”, explica Nelson. Porém, em vez de Cuiabá, o destino escolhido para operar o negócio foi São Paulo. “Quando chegamos à conclusão de que a ideia era original, precisávamos marcar território e ir para um grande mercado.”

Mas para driblar o atraso na entrega na hora do almoço, que é comum — seja pelo excesso de pedidos, seja pelo trânsito intenso dos centros urbanos —, o empresário optou por um novo modelo. Em vez do tradicional delivery, estabeleceu pontos para o cliente retirar pessoalmente sua comida: foodbikes que armazenam as refeições. Ao todo, são 17 espalhadas por bairros localizados nas cidades de São Paulo, Barueri (SP), e Curitiba (PR). Funciona assim: o consumidor compra as refeições por meio do aplicativo e retira seu pedido no ponto mais próximo. “Como as pessoas têm 1 hora de intervalo, se o motoboy atrasa, o cliente pode ficar sem tempo para fazer a refeição”, diz Nelson.

Mas esse modelo teve de ser revisto durante a pandemia de coronavírus, que fez com que as cidades implementassem o isolamento social e as empresas adotassem o home office. Sem os pontos de retirada, as vendas da Eats For You chegaram a zero, e a alternativa foi aderir ao delivery — algo que deve ser mantido quando a crise passar.

A startup também está incentivando clientes e empresas a doar marmitas para instituições que atendem moradores de rua — mais uma forma de manter a renda dos cozinheiros da plataforma. “Muita gente depende do nosso trabalho. Era um compromisso moral manter a engrenagem funcionando”, diz Nelson. A empresa não quis revelar o faturamento, mas cresceu 205% em 2019 e emprega, atual­mente, 20 funcionários diretos.

Em 2019, a Eats For You anunciou uma rodada de investimentos no valor de 767.500 reais, com a participação dos fundos Bossa Nova Investimentos — que já havia investido na plataforma anteriormente — e GVAngels, grupo de investidores-anjo formado por ex-alunos da Fundação Getulio Vargas (FGV). A rodada de investimentos segue aberta e, até o fim do primeiro trimestre de 2020, a startup recebeu 1,5 milhão de reais.

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A busca por um nicho

Além das comidas caseiras, outro nicho de atuação é o de pratos especializados, que se fortalece pela vontade dos clientes de consumir opções orgânicas e saudáveis. Nesse caso, de acordo com Sérgio, da Food Consulting, o chamariz é o benefício proporcionado pela comida. Em geral, o cliente que opta por esse tipo de cardápio está disposto a pagar mais.

O especialista orienta o pequeno empreendedor a se abrigar nesse espaço e fugir da guerra de preços — uma vez que o mercado mais acessível já foi conquistado por grandes empresas, que conseguem produzir em larga escala e, portanto, reduzir o valor para o consumidor final. “Com o passar do tempo, se o pequeno empreendedor não tiver nenhum diferencial além do preço, como um produto bacana, uma embalagem bem tratada ou uma entrega especial, ele será esmagado por forças maiores”, explica. Por isso, a dica do especialista é ficar de olho em nichos para atuar.

Foi justamente o que fez a nutricionista Fernanda Cassullo Amparo, de 38 anos, que vende marmitas saudáveis para empresas e hospitais. A paulista, que é diabética, sempre levou para o hospital em que trabalhava a própria refeição, preparada pela mãe, Maria Margherita do Amparo. O cheiro da comida caseira aguçava a vontade dos colegas, o que fez Fernanda enxergar uma oportunidade.

Como ela não queria abandonar o emprego estável, convenceu a mãe (até então dona de casa) a preparar refeições para ser vendidas aos colegas do hospital. Em 2016, nasceu a Naturale Marmitaria. “Ao ver meus pais envelhecendo, comecei a pensar em ter uma empresa familiar para complementar a renda, pois uma hora eles iriam depender somente de aposentadoria”, diz Fernanda.

Paralelamente ao trabalho no hospital, Fernanda se inscreveu como MEI e foi estudar finanças e marketing para aprender mais sobre a jornada empreendedora. Com o boca a boca e a distribuição de panfletos em estabelecimentos comerciais, as vendas se intensificaram. Um ano e meio depois, a cozinha da casa dos pais não era mais suficiente para atender aos pedidos.

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Em 2018, Fernanda usou parte do dinheiro da venda de um apartamento para reformar o salão de festas no fundo da residência e montou uma nova cozinha. A reforma, que custou cerca de 20.000 reais, incluiu a troca de pisos e azulejos, além da compra de utensílios como freezer, fogão industrial e coifa. Foi nessa época que Fernanda — que até então atuava com a venda de marmitas para pessoas físicas — decidiu ampliar seu foco de atuação. Além de atender o público em geral, a Naturale passou a oferecer refeições para o segmento corporativo.

A estratégia ajudou a enfrentar a alta concorrência que o segmento ganhou nos últimos anos. O faturamento mensal saltou de 25.000 (em 2018) para 80.000 reais. Com seu negócio a pleno vapor, Fernanda pediu, em abril de 2019, um afastamento não remunerado do hospital em que era concursada. “Os últimos dois anos foram de crise, e muita gente começou a trabalhar com marmita. Foi quando decidimos nos reinventar e atender esse nicho de pessoas jurídicas.”

A Naturale, que tem atualmente dez funcionários, vende, em média, 8.000 marmitas por mês. O preço varia de 16 a 23 reais. E a empresa tem contrato assinado com sete companhias, com prazos de prestação de serviço que variam entre um e três anos. Com a covid-19, que colocou muitos funcionários em home office, Fernanda inovou: disponibilizou vouchers para que os funcionários de seus clientes pudessem pedir as refeições de casa.

Ilustração: Guilherme Henrique ()

Pequenos produtores

A Liv Up, startup que vende pratos congelados, saladas, snacks e sucos, tenta se diferenciar pelo uso dos ingredientes: as matérias-primas das marmitinhas são orgânicas e fornecidas por pequenos produtores rurais. A plataforma, lançada em 2016, surgiu de uma insatisfação dos sócios Victor Santos e Henrique Castellani, ambos com 31 anos, que tinham dificuldade para encontrar alimentos saudáveis, práticos e com preços acessíveis no dia a dia de trabalho.

Os dois atuavam no mercado financeiro e não tinham relação nenhuma com o universo da gastronomia. Porém, o fato de Henrique ser de uma família de pequenos produtores ajudou a dupla a dar o pontapé inicial no negócio. “Começamos a pesquisar sobre tecnologias que poderiam auxiliar a garantir essa entrega de comidas práticas, saudáveis e saborosas, até que conhecemos a técnica de ultracongelamento com a qual trabalhamos e que é um de nossos diferenciais hoje”, reitera Victor.

Do planejamento à abertura das portas foram quatro meses. O investimento inicial no projeto foi de aproximadamente 1 milhão de reais (300.000 reais em economias próprias e o restante formado por aportes feitos por amigos e parentes). Atualmente, 25 produtores familiares de São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Santa Catarina abastecem a Liv Up com alimentos orgânicos. “Os diferentes locais nos ajudam a contornar questões como sazonalidade e clima.”

A empresa, que opera em 40 cidades e tem mais de 500 funcionários, chega a vender cerca de 300.000 refeições por mês. Embora não divulgue o faturamento, a startup estima triplicar de tamanho até o fim de 2020. O resultado deve ser impulsionado, principalmente, pelas novas unidades de negócios inauguradas no início do ano: o Liv Up station, para atender o mercado corporativo, e a cloud kitchen, um serviço de delivery especializado em saladas.


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