A tirania da positividade

Ela é tema de discussão da psicologia desde os anos 1970, e ganhou proporções estratosféricas em 2020. Mas, ardilosa como é, encontrou raízes no dia a dia e na linguagem do mundo corporativo (alô, LinkedIn). Saiba de onde vem esse comportamento tóxico, como vive, onde come – e como combatê-lo de uma vez por todas.

Por Sofia Kercher
1 out 2024, 08h00
Ilustração de pessoas tristes segurando mascaras com expressões felizes.
 (Denis Novikov/Getty Images)
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o finalzinho dos anos 1970, o psicólogo americano Neil Weinstein decidiu fazer um experimento despretensioso. O pesquisador pediu a 200 estudantes da Universidade de Rutgers, instituição em que lecionava, para estimar o quanto eles tinham chance de vivenciar 42 eventos apocalípticos quando comparados aos seus colegas de classe.

Assim: equiparado às pessoas em volta, qual a chance de você se divorciar, ser demitido, roubado, diagnosticado com uma doença grave? Os estudantes poderiam responder em uma escala que ia de “risco acima da média” a “risco abaixo da média”. Weinstein inseriu manualmente as respostas, perfuradas em cartõezinhos amarelos.

Risco mais, risco menos, a conclusão geral não deixava dúvidas: os estudantes acreditavam que tais eventos negativos tinham muito menos probabilidade de acontecer com eles do que com os outros. Weinstein descobria ali um conceito que cunhou como unrealistic optimism (otimismo utópico, em tradução livre).

O pesquisador entendeu que os seres humanos têm uma espécie de viés para o otimismo. Nós superestimamos as chances de atingir aquilo que desejamos, e subestimamos as chances, bom… da desgraça. A explicação cognitiva da coisa era que isso nos protege mentalmente das incertezas e angústia constante em relação ao futuro. Ele também via um fator motivacional: o otimismo também seria manifestação de um desejo. Para conseguir o que se quer, é necessário agir de acordo. 

“O sucesso aconteceria com as pessoas boas, e o fracasso seria consequência não de condições estruturais, mas de uma atitude ruim”, resume o pesquisador no artigo (guarde essas aspas – trataremos dela adiante).

Ao longo dos próximos anos, estudiosos se debruçaram no assunto. Mas foi só em 2011 que um pesquisador americano decidiu trazer à luz outro problema, parente do otimismo utópico. 

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Em seu livro A Arte Queer do Fracasso, Jack Halberstam, professor de estudos de gênero da Universidade de Columbia, defendia o fracasso enquanto uma ferramenta útil para a população LGBTQIA+ (aqui, no sentido de ir contra o que lhe é esperado, pessoal e profissionalmente). 

Segundo o pesquisador, era por meio dele que surgiriam formas mais criativas, cooperativas e surpreendentes de estar no mundo contemporâneo. Acima de tudo, formas que combateriam a chamada positividade tóxica. Ali, num livro sobre teoria de gênero, um dos males do milênio – e do mundo corporativo – ganhava nome. 

Destrinchando o termo

A positividade tóxica pode estar entrando na adolescência hoje, mas só virou um cataclismo virtual você bem sabe quando. No auge da pandemia, em 2020, as discussões sobre o tema ganharam uma atenção impressionante: de acordo com o Google Trends, as buscas pelo termo subiram 138% no ano. De lá para cá, o volume de interesse arrefeceu em 20%. 

O curioso é que, teoricamente, esse conceito… não existe. Não há nenhum efeito negativo comprovado da positividade no nosso corpo. As pesquisas são infinitas: ela ajuda nosso sistema imunológico, fortalece nosso coração, aumenta nossa longevidade, reduz nossos níveis de estresse e ansiedade. Henrique Bueno, professor e especialista em felicidade corporativa, esclarece: “o que é tóxico não é a positividade em si, e sim o fingimento”.

Trocando em miúdos, uma positividade se transforma em tóxica quando, para senti-la, uma pessoa rejeita emoções negativas. Mais que isso: quando ela demanda ou usa essa positividade de jeitos que fazem com que outra pessoa se sinta culpada, reprimida ou desconsiderada por não estar se sentindo daquela forma.

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“A positividade tóxica ocorre quando se espera que declarações encorajadoras minimizem ou eliminem emoções dolorosas, criando pressão para ser otimista de forma irreal, sem considerar as circunstâncias da situação.” Essa é a definição oficial da Associação Americana de Ansiedade e Depressão (ADAA).

Isso explica, claro, o interesse pelo tema em 2020. Em meio à perda de entes queridos, índices estratosféricos de desemprego e inflação, isolamento social e caos generalizado, discursos que defendiam uma mentalidade positiva a todo custo (“tudo acontece por uma razão”, “vai ficar tudo bem” e por aí vai…) foram propagados aos quatro ventos virtuais.

Na contracultura da tropa gratiluz, o termo de Halberstam ganhou um novo gás. Ele explodiu na mídia e na internet, tornou-se assunto de podcasts, tema de livros, estudos e publicações em redes sociais, estampas de camisetas e ecobags. Saturada à máxima de suas capacidades, a discussão ad infinitum sobre a positividade tóxica pode ter dado a sensação de que encontramos para ela uma cura. E bem a tempo da vacina.

De acordo com o Google Trends, as buscas pelo termo “positividade tóxica” subiram 138% em 2020. De lá para cá, o volume de interesse arrefeceu em 20%. 

De fato, os tempos de convivência assídua com o vírus ficaram para trás. Mas não dá para dizer o mesmo da felicidade performática. Longe de ser erradicada, ela encontrou um lugar perfeito para ficar de vez – o universo corporativo. É para lá que vamos a seguir.

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Das 9h às 18h

No ano passado, a Gallup divulgou um relatório que buscava entender o estado psicológico dos ambientes de trabalho mundo afora. Os números são impressionantes: dos mais de 122 mil participantes (um Maracanã e meio de CLTs), 67% se sentiam desengajados no trabalho. Leia-se: tanto pessoas que estavam operando em produtividade mínima, psicologicamente desconectados de seus empregadores, quanto aqueles que estavam ativamente procurando prejudicar a empresa (uma parcela bem mais modesta, diga-se, mas ainda existente). 

Em relação ao estado emocional dos participantes, mais uma bomba: 44% dos entrevistados se sentem estressados diariamente no trabalho. Outros 21% disseram sentir raiva todos os dias no ambiente da empresa.

E essa brincadeira não sai barato para as organizações: a Gallup estimou que o baixo engajamento dos funcionários custa US$ 8,9 trilhões à economia global. 

Agora, pare de ler esta reportagem. Abra uma nova aba em seu telefone, computador, tablet, enfim… e entre no LinkedIn. Mais do que o conteúdo, observe o tom que ele assume: de 100 publicações, 67 delas mostra esse desencorajamento dos funcionários? 44 delas emanam esse estresse diário? 21 são suco de raiva pura? 

“A dinâmica do LinkedIn constrói-se dentro de um sistema em que somos avaliados a cada momento; submetidos a um imperativo de performance. Afinal, todos ali estão interessados em sua vida profissional, não em sua vida subjetiva”, analisa Daniel Kupermann, psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP.

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Claro, não é só de telas que depende a performance. Não é preciso logar na rede azulzinha para saber que emoções negativas não tem espaço nem quórum quando o horário comercial começa. 

A especialista em carreira Andréa Krug explica que todo escritório tem normas sociais não ditas sobre como os trabalhadores devem se sentir em determinadas situações, e como as emoções podem ou não ser demonstradas. Emoções essas que, diga-se, são mais e menos toleradas a depender da cor da sua pele e de seu gênero: pesquisas comprovam que pessoas não brancas e mulheres têm suas demonstrações de sentimento mais mal interpretadas e, consequentemente, penalizadas no ambiente de trabalho.

A Gallup estimou que o baixo engajamento dos funcionários custa US$ 8,9 trilhões à economia global. 

E afinal, de onde raios vem essa obsessão com felicidade no mundo corporativo? A raíz é outro substantivo feminino bem conhecido: a produtividade. Claro, a ligação já foi comprovada pela ciência: um estudo extenso de 2019 conduzido por pesquisadores de Oxford e do MIT descobriu que trabalhadores são 13% mais produtivos quando estão felizes. Quando o estado de espírito do funcionário era positivo, ele simplesmente trabalhava mais e melhor quando comparado aos colegas descontentes.

Em seu livro, The Happiness Advantage, Shawn Achor calculou que a positividade no trampo (aquela baseada na gratidão e apreço por ele) pode levar a três vezes mais criatividade, 23% menos sintomas de fadiga e, bingo: 37% mais vendas.

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“Não à toa, os RHs de empresas hoje estão obcecados por ‘motivar’ os funcionários”, analisa Krug. 

É uma bola de neve: colaboradores desengajados causam prejuízo às empresas. As lideranças empurram uma agenda motivacional para tentar reverter o quadro, o que gera ainda mais frustração e desengajamento… e pronto. Está instaurada a dança macabra da positividade tóxica e improdutividade crônica. Uma performance na qual todo mundo está infeliz, e todo mundo sai perdendo. 

Burnout e Cia.

Ok. E qual o resultado disso para o colaborador? O que acontece quando somos obrigados a esconder nossas emoções no ambiente de trabalho?

Em 2020, pesquisadores da Universidade do Arizona tentaram medir o impacto desse comportamento. Foram analisados funcionários de diferentes setores, incluindo educação, indústria, engenharia e finanças.

Eles mapearam duas formas de regular as emoções: atuação de superfície e atuação profunda. A primeira seria fingir aquilo que você está demonstrando aos outros. Por dentro, você pode estar chateado ou frustrado; por fora, está se esforçando para ser agradável ou positivo. A atuação profunda, por sua vez, seria quando tentamos alinhar o que sentimos com a forma como estamos interagindo com os outros. 

Os pesquisadores identificaram que os profissionais que tinham altos níveis de ambas as atuações tinham índices altos de exaustão emocional. “Talvez colocar um sorriso no rosto só para fugir de uma interação seja uma saída mais rápida, mas, a longo prazo, isso abala os esforços para melhorar a sua saúde e seus relacionamentos de trabalho”, escreve Allison Gabriel, professora responsável por coordenar o estudo.

Colaboradores desengajados causam prejuízo às empresas. As lideranças empurram uma agenda motivacional para tentar reverter o quadro, o que gera ainda mais frustração e desengajamento… e pronto. Está instaurada a dança macabra da positividade tóxica e improdutividade crônica. Uma performance na qual todo mundo está infeliz, e todo mundo sai perdendo.

Claro, isso não vale só na firma – e não para por aí. Quando você nega as emoções que sente, acaba demorando mais tempo e tendo mais dificuldade para ter uma autopercepção do que está te fazendo mal. A não ser que a miríade de nossas emoções seja regularmente identificada e sentida de modo adequado, é provável que seremos vítimas de uma série de problemas psicológicos.

“Tudo que não pode ser colocado para fora vai para dentro”, resume Kupermann. Resultado: a incorporação daquele problema pode gerar uma baixa autoestima, auto-ódio, até dúvida nas próprias percepções. Isso culmina em manifestações do sintoma depressivo – vulgo burnout. No Brasil, aproximadamente 30% dos trabalhadores sofrem, em algum nível, da síndrome (que foi destrinchada na matéria de capa da VCSA de março de 2022, que você pode ler aqui).

Dominando os divertidamentes

Não, as publicações do LinkedIn não vão melhorar de um dia para o outro. Seu chefe, muito menos. A verdade é que a positividade tóxica continuará reinando escritórios afora, porque ela faz parte de um sistema que valoriza produtividade, desempenho e disciplina em detrimento de todo resto. Inclusive da saúde mental de seus colaboradores, como você reparou pela pá de dados citados nesta reportagem. 

Mas isso não quer dizer que tudo está perdido. Existem formas de você lidar com ela no trabalho – especialmente vinda dos seus superiores – sem se complicar. Nosso último tópico de discussão. 

Henrique Bueno enaltece a importância de encontrar redes de apoio dentro do escritório. Amigos, mesmo. Encontrar colegas de trabalho em que você possa confiar, que entendem a cultura da empresa, é fundamental para que consiga identificar corretamente as emoções que sente e não cair nas garras da positividade falsa. “Nessas horas, o ideal é alavancar suas conexões sociais”, defende o psicólogo.

Trabalhadores se divertindo no escritório enquanto um homem fica sério no meio da roda.
Quando você nega as emoções que sente, acaba demorando mais tempo e tendo mais dificuldade para ter uma autopercepção do que está te fazendo mal. (Allison Michael Orenstein/Getty Images)

Além disso, os especialistas também concordam que a manifestação da autenticidade é importante – mas existem espaços em que ela pode aflorar sem queimar sua imagem dentro e fora da empresa, para possíveis recrutadores. Por isso, aproveite os canais oficiais de conversa, e use sabiamente os momentos de feedback oferecidos para falar sobre os problemas e questões que surgirem. 

“Qualquer sociedade tem seus ritos e suas regras. Para sobreviver nela, é necessário saber jogar o jogo”, argumenta Andréa Krug. Vide: nada de reclamações no LinkedIn. Infelizmente, ela continuará sendo a rede das boas novas e eufemismos. Mas tudo bem: todas as redes sociais são uma curadoria. Não esquecendo isso, tá valendo.

No mais, só resta entender que nossos divertidamentes são amorais. Não existem emoções boas e ruins, certas e erradas, adequadas ou não. A realidade é contrária àquela que Neil Weinstein pontuou lá em cima: sentimentos desagradáveis não são indicativos de que você seja uma pessoa ruim, fracassada ou incapaz. Muito pelo contrário: só te comprovam que você é humano. Ainda bem.

Inclusive, o verdadeiro sucesso só pode ser alcançado quando aprendermos que, para sermos pessoas genuinamente felizes, precisamos endereçar, entender e lidar com as emoções conforme elas vêm, sejam elas quais forem. Assim, podemos sair das situações difíceis com perspectivas novas e mais maduras sobre o trabalho – e sobre a vida. Aí que mora a verdadeira positividade.

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