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Créditos de carbono: entenda de uma vez o mercado de CO2

O mercado de mitigação de emissões é complexo, e ainda engatinha. Mas esse bebê está ganhando peso. Movimentou quase US$ 1 trilhão em 2022, e alimenta fundos de investimento pelo mundo – Brasil incluído. Entenda a mecânica dos créditos de carbono.

Por Camila Barros | Ilustração: Henrique Petrus | Design: Juliana Krauss | Edição: Alexandre Versignassi
Atualizado em 14 jul 2023, 10h42 - Publicado em 14 jul 2023, 06h16

A humanidade emite 40 bilhões de toneladas de dióxido de carbono por ano. É quase 10 bilhões a mais do que costumávamos jogar na atmosfera no início do século 21, e quatro vezes mais do que no começo do século 20. 

Para evitar uma catástrofe climática, o mundo precisa zerar suas emissões líquidas até 2050: retirar da atmosfera a mesma quantidade de carbono que emite. No jargão, essa é a economia net zero. Segundo um relatório do IPCC, painel sobre mudanças climáticas da ONU, isso significa alcançar o pico de emissões até, no máximo, 2025. Depois, entrar em queda livre, alcançando uma redução de 43% até 2030. 

Só assim será possível limitar o aquecimento global a 1,5ºC em relação aos níveis pré-industriais – uma meta assumida por 196 países no Acordo de Paris, de 2015.

Para chegar lá, todo esforço é pouco. Desde 1997, no Protocolo de Kyoto (conferência-mãe do Acordo de Paris), os governos se comprometeram a tornar a transição para o net zero economicamente viável. 

O mercado de créditos de carbono foi um dos mecanismos criados para isso. Trata-se de um sistema de compensação de emissões que, na prática, transforma o CO2 em uma commodity comercializável.

A lógica é a seguinte: já que a quantidade de carbono na atmosfera precisa diminuir no mundo inteiro, eu posso manter a minha emissão aqui e ajudar a reduzi-la em outro lugar. No papel, serve para que indústrias inerentemente poluentes (como a aviação) consigam alcançar suas metas climáticas sem deixar de existir. 

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Cada crédito, no mercado, equivale a uma tonelada de CO2 que foi retirado ou deixou de ser emitido na atmosfera. 

Também vale para outros gases-estufa, como metano, óxido nitroso e os hidrofluorcarbonetos. Para gerar um crédito, esses gases são convertidos para a métrica de carbono equivalente, tipo: o metano é 21 vezes mais poluente que o dióxido de carbono. Logo, uma tonelada de metano retirada da atmosfera dá direito a 21 créditos de carbono. 

Trata-se de um sistema complexo e cujas regras de funcionamento são discutidas ao redor do mundo até hoje. Em mercados mais maduros, na Europa e Estados Unidos, os créditos já viraram ativos financeiros – e movimentaram US$ 978 bilhões no ano passado.  Não é muito (equivale a 156 dias de negociações na B3), mas começa a ganhar corpo.

Um crédito de carbono equivale a uma tonelada de CO2 economizada.

 

Para entender seu funcionamento, é preciso dividi-lo em dois modelos: o mercado regulado, quando há intervenção governamental, e o mercado voluntário, quando a compensação acontece espontaneamente entre empresas. Vamos a eles. 

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(Henrique Petrus/VOCÊ S/A)

O mercado regulado

Quando uma empresa escolhe não investir na redução de suas emissões de carbono, o dinheiro economizado fica inteiro com ela. É um benefício privado. Já as consequências da poluição emitida são públicas – afinal, as mudanças climáticas afetam o mundo todo

Os economistas chamam esse tipo de dinâmica (benefício privado vs. malefício coletivo) de externalidade negativa, uma falha de mercado que não se corrige sozinha. Para combatê-la, é preciso uma dose de regulação governamental.

Os governos têm duas alternativas para desincentivar emissores inconsequentes. A primeira é estabelecer um imposto sobre emissões, mecanismo adotado em países como Argentina, Chile, Reino Unido, Japão e França. Nesse modelo, o Estado define uma taxa fixa sobre bens e serviços muito poluentes. O governo argentino, por exemplo, estabeleceu uma alíquota de US$ 10 para cada tonelada de CO2 gerada por combustíveis fósseis.

A ideia é fazer com que a poluição pese no bolso das empresas – e, portanto, se torne menos vantajosa competitivamente. 

A segunda alternativa parte do mesmo princípio, só que de um jeito market friendly. Chama-se cap-and-trade, um sistema de emissão e negociação de créditos de carbono. 

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Funciona assim: anualmente, o governo emite certificados que determinam quanto as empresas podem poluir em 12 meses. A quantidade varia de indústria para indústria, e não engloba todos os setores da economia.

Créditos do mercado regulado são negociados em bolsas mercantis e de futuros no exterior. Em 2022, eles movimentaram US$ 978 bilhões.

Uma vez emitidos, esses certificados (ou créditos) podem ser comercializados entre instituições. Quando uma empresa ultrapassar seu limite, ela deve comprar créditos extras de outras companhias que permaneceram dentro da meta – de forma que o limite total de emissões do país ou região não seja ultrapassado. 

A Tesla, por exemplo, já fez disso um negócio: em 2022, arrecadou US$ 1,78 bilhão com a venda de créditos de carbono para outras montadoras. Isso respondeu por 11% de seu lucro total no ano, de US$ 12,6 bilhões. 

O valor de um crédito varia de acordo com a oferta e a demanda – quando muitas empresas querem comprar e poucas podem vender, ele encarece. Mais: a ideia é que, periodicamente, os governos reduzam a quantidade de créditos disponibilizados ao mercado. Assim, torna-se progressivamente mais caro poluir.

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O valor também costuma variar ao longo dos meses, dependendo das expectativas do mercado sobre o desempenho da economia. Quanto melhores as projeções, mais requisitados são os créditos. 

No European Union’s Emissions Trading System (EU ETS), mercado de carbono mais tradicional do mundo,  um crédito estava cotado a € 92 ao fim de junho. Em outubro de 2022, quando os temores de recessão global eram maiores, a cotação era de apenas € 65. 

Em 2022, o sistema europeu emitiu 1,13 bilhão de certificados, divididos entre os setores de energia, aviação e indústria. O plano é reduzir esse total em 272 milhões entre 2023 e 2024. Já o California Cap and Trade Program, outro mercado bem consolidado, emitiu 362 milhões de certificados em 2022, distribuídos entre os setores de energia, indústria, gás natural e combustíveis fósseis. 

Juntos, os dois fazem parte do ICE Carbon Futures Index Family e do IHS Global Carbon Index, índices que englobam mais dois sistemas: o Regional Greenhouse Gas Initiative (RGGI), de estados do nordeste dos EUA, e o UK Emissions Trading Scheme (UK ETS), do Reino Unido. Ambos os índices operam com dados fornecidos pela Intercontinental Exchange, uma bolsa americana que comercializa contratos futuros. 

Em qualquer mercado futuro duas partes negociam no presente a venda de um produto para alguma data lá na frente. No mercado futuro de carbono, então, empresas negociam hoje créditos que só vão passar de mãos, digamos, ao fim do ano.

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A cotação de um crédito na Europa em junho era € 92. Em 2022, eram € 65.

Como todo bem negociável, os créditos também servem para quem quer lucrar com a oscilação de preços desses ativos, seja no mercado à vista, seja no mercado futuro (que tende a variar mais, pois o amanhã é sempre imprevisível). 

 

A especulação com créditos de carbono faz parte da classe dos “investimentos alternativos”, aqueles menos usuais que ações e títulos de dívida. E o risco é alto: além de volátil, esse mercado tem uma liquidez relativamente baixa. Ou seja, não é tão fácil encontrar interessados nos créditos que você comprou.

Investir em créditos de carbono

No Brasil, já existem alguns fundos de investimento que replicam o desempenho dos índices de carbono gringos. É o caso do Trend Carbono Zero, da XP, o Vitreo Carbono, do BTG, e o BB Multimercado Carbono, do Banco do Brasil. 

O primeiro acompanha o desempenho do KraneShares Global Carbon, um ETF americano que replica o índice de carbono da IHS. A distribuição dos ativos é a seguinte: 71,4% acompanham os contratos futuros do EU ETS, o mercado europeu; 15,74% ficam com o mercado californiano; e os outros 12,9% se dividem entre os mercados do Reino Unido e do nordeste americano. 

Criado em junho de 2021, o Trend Carbono Zero oferece proteção cambial – ou seja, não fica exposto às variações do dólar – e tem taxa de administração de 0,50% ao ano. Seus retornos variam com força, como é típico desse tipo de fundo: +6,87% em junho, contra -6,88% em maio e -1,57% em abril. No ano, o retorno até agora é positivo: 7,26%. Em 2022, o acumulado foi de -8,39%, e em 2021, alta de 42,78%. 

Já o Vitreo Carbono acompanha apenas os futuros de carbono europeus, a partir do índice do ICE. Aqui a taxa de administração é de 0,90% ao ano – além de uma taxa de performance de 5% mais 10% sobre o que exceder a variação do euro (já que a cotação da moeda europeia influencia a performance do fundo).  

Os retornos foram de 5,67% em junho, -8,81% em maio e -5,75% em abril. Ao final do primeiro semestre, o fundo do BTG acumulava uma queda de -1,91% no ano. Em 2022, a alta foi de 46,10%; em 2021, -11,83%. 

O fundo multimercado do BB, criado há um ano e com taxa de 1%, é o que trouxe melhor rendimento no primeiro semestre: 10,92% – sendo 8,66% em junho, -6,12% em maio e -3,62% em abril.

As diferenças de performance acontecem porque a composição dos fundos varia. A CVM não permite que fundos abertos ao público geral invistam mais de 20% de seu dinheiro no exterior (e crédito de carbono é investimento no exterior). Os 80% restantes ficam em vários ativos de renda fixa nacionais, e a composição da carteira de cada um afeta o rendimento, claro. 

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(Arte/VOCÊ S/A)

Mas e o mercado brasileiro?

Os mercados regulados são sistemas fechados. Ou seja: as regras variam de região em região, e as transações costumam ocorrer localmente – uma empresa francesa não compra cotas de emissão de uma companhia dos EUA, por exemplo, já que os dois mercados fazem parte de sistemas diferentes. 

De qualquer forma, o mercado como um todo segue crescendo: há uma década, só 7% das emissões de gases do efeito estufa eram cobertas por impostos ou sistemas de comércio de carbono. Agora, são 23%, administrados por 73 sistemas ao redor do mundo. 

Mas o Brasil segue de fora. Ainda não temos uma legislação que estabeleça tetos de emissão para a indústria nacional. Mas a discussão caminha. No ano passado, o governo federal publicou um decreto que cria as bases para uma regulação, apontando quais setores devem entrar no limite – entre eles indústria química, mineração, energia elétrica e construção civil. 

O Ministério da Fazenda planeja enviar ao Congresso um pacote de propostas que aprofundem as regras e coloquem, efetivamente, um limite para as emissões. Mas, mesmo se for votado e aprovado ainda em 2023, o projeto de lei só deve entrar em vigor nos próximos anos. 

O mercado voluntário

Enquanto aguarda por regulação, o país avança em seu mercado voluntário de créditos de carbono. Esqueça dos limites de emissão, transações entre empresas e mercado futuros – o funcionamento deste sistema é bem diferente. 

Nesse modelo, as empresas compensam suas emissões por iniciativa própria. Normalmente por uma questão de imagem: sinalizar a clientes e investidores que seus compromissos ambientais estão caminhando. No papel, a ideia é que essas companhias implementem políticas internas para reduzir as próprias emissões – e usem os créditos para compensar o que faltou. 

Cada crédito de carbono equivale a uma tonelada de CO2 economizada ou retirada do meio ambiente a partir do financiamento de um projeto socioambiental. Ao contrário do mercado regulado, esse funciona globalmente: uma empresa brasileira pode pagar por créditos gerados aqui ou em qualquer outro lugar do planeta. 

Créditos voluntários servem para facilitar o financiamento de projetos socioambientais.

A maioria das iniciativas está localizada no “sul global” (os países em desenvolvimento), enquanto o financiamento vem principalmente de instituições europeias. Segundo a consultoria ambiental Climate Focus, entre 2002 e 2022, foram realizados 903 projetos assim no sul da Ásia (em especial na Índia), 707 na África e 633 no leste asiático (em especial na China). Na Europa, onde o mercado regulado é maduro, só 59. 

A aprovação desses projetos fica a cargo de organizações internacionais que avaliam a integridade de cada iniciativa. A Verra e a Gold Standard são as duas maiores entidades desse tipo, responsáveis por mais de 80% das validações de créditos de carbono voluntários ao redor do mundo – sem validação, afinal, aproveitadores emitiriam créditos “sem lastro”. 

Os projetos englobam vários setores: implementação de energia limpa, reflorestamento, proteção de áreas ameaçadas. Na prática, os créditos de carbono voluntários são uma ferramenta para facilitar o financiamento de projetos socioambientais. De acordo com um levantamento da consultoria suíça South Pole, esse mercado cresceu 250% em 5 anos, e gerou US$ 1,3 bilhão em investimentos em 2022 – ajudando a conter 161 milhões de toneladas de gases do efeito estufa. 

Foram feitos 3.844 projetos no mercado voluntário global em 20 anos.

Outro fator importante é a “adicionalidade” da iniciativa. No mercado de carbono, trata-se de um jargão que significa o seguinte: financiar atividades que mitiguem emissões, mas não dão lucro.  

Tipo: décadas atrás, a implementação de fontes renováveis não atraía economicamente, já que era cara e gerava pouco retorno quando comparada às fontes tradicionais, como carvão e gás natural. Por isso, projetos ambientais que financiassem a construção de usinas solares ou turbinas eólicas eram bem-vindos. Na época, essas iniciativas começaram a gerar créditos. 

Só que, hoje, investir em energias limpas já é um negócio lucrativo. Desde 2010, o custo de implementação diminuiu até 85%. Painéis solares e turbinas eólicas não precisam mais de iniciativas ambientais para existir. Por isso, créditos advindos de projetos de energia renovável atualmente são desvalorizados no mercado – e é raro que novas iniciativas desse tipo sejam aprovadas. 

Ou seja: no mercado voluntário, a Tesla não poderia gerar créditos de carbono, já que os veículos elétricos dão lucro para a empresa. Eles existiriam mesmo sem o mecanismo de créditos. Não tem o fator adicionalidade aqui. 

Um exemplo de iniciativa com adicionalidade são os projetos REDD+, de redução de desmatamentos florestais – já que manter a floresta de pé reduz emissões, mas não dá dinheiro. 

A Carbonext é uma startup brasileira que atua no ramo. Ela monitora áreas com alto risco de desmatamento a partir do histórico de imagens de satélite, então estimam quanto CO2 a mata da região é capaz de capturar. Caso identifique que a área está sob ameaça, a empresa inicia, junto ao proprietário da área, um plano para manter a floresta em pé. 

Então a empresa acompanha  o terreno (via câmeras, fiscais e imagens de satélite) por um ano. Caso a mata esteja lá depois de 12 meses, o dono do terreno ganha o direito de comercializar a quantidade de créditos de carbono que suas árvores capturam da atmosfera – e a empresa fica com uma parcela dessas vendas.

Ou seja: os créditos de carbono movimentam tanto o mercado financeiro como o empreendedorismo. Ótimo que seja assim. O caminho mais curto para a redução de emissões é torná-la uma atividade econômica capaz de dar lucro aos envolvidos. O dinheiro, afinal, sempre fez o mundo girar. E agora, ele parte para uma nova missão: preservar esse mundo. 

Agradecimento Talita Pinto, pesquisadora do Observatório de Conhecimento e Inovação em Bioeconomia da EESP-FGV.

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(Henrique Petrus/VOCÊ S/A)
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