Dólar Coldplay, blue, Netflix? Entenda de uma vez os diferentes câmbios da Argentina
As várias cotações da moeda americana no país vizinho são algo mais simples do que parecem: alguns não passam de subsídios; outros, sinais de que o governo não tem condições de manter controle sobre o preço do dólar em suas terras. Entenda a raiz do problema.
Passar uma temporada na Argentina tem um ar de viagem no tempo. E não são só os palacetes da Calle Alvear, as meninas de saia plissada saindo da escola ou os senhores e senhoras lendo o jornal em cafés centenários. É a inflação descontrolada também. Esse fantasma que há quase 30 anos deixou de fazer parte do cotidiano brasileiro assombra o país vizinho de forma intensa.
Em março, a inflação anualizada da Argentina chegou a 104,3%, a maior desde 1991. Em um único mês, os preços subiram 7,7% – bem mais do que a nossa taxa anual. Trata-se de uma situação equivalente à que o Brasil vivia em 1983. É também a maior inflação entre as nações do G20 – a Turquia ocupa o segundo lugar, com 50%. E a quarta entre todos os países do mundo. Só Líbano (190%), Venezuela (156%) e Síria (139%) vêm à frente.
O crescimento por lá também decepciona: só 1% ao ano, em média, nestas últimas quatro décadas. O PIB per capita é o mesmo de 2010, um pouco acima dos US$ 10 mil. Por outro lado, isso não se reflete totalmente no bem-estar geral dos argentinos. Esses US$ 10 mil bastam para colocar o país na categoria de “renda média-alta”, de acordo com o Banco Mundial, e o IDH argentino é de 0,842 (quanto mais perto de 1, melhor), o que deixa os hermanos na 65ª posição no ranking composto por 190 países.
O Índice de Desenvolvimento Humano coloca a Argentina entre as “economias altamente desenvolvidas” pela definição da ONU, que é quem calcula o dado. Já o PIB per capita brasileiro é de US$ 7,5 mil e nosso IDH, 0,754, o que nos deixa mais de 20 casas atrás do nosso vizinho, na 87ª posição.
Parte do melhor IDH argentino vem dos fortes subsídios que o governo banca. O Estado custeou 79% da energia elétrica e 71% do gás na Argentina em 2022. 82% do déficit fiscal do país vem apenas dos subsídios públicos. Uma passagem de metrô em Buenos Aires custa 42 pesos (menos de R$ 1). Em São Paulo, são R$ 4,40. O subsídio ao transporte chega também à gasolina, 50% mais barata que a nossa.
Não existe almoço grátis, porém. O mau cuidado com as contas públicas, uma tradição Argentina, fez com que o país desse calote em sua dívida externa nove vezes ao longo de sua história. Os últimos três chapéus foram neste século: 2001, 2014 e 2020.
A Argentina é o maior devedor do FMI. São US$ 42 bilhões a pagar. O segundo colocado, para dar uma ideia, é o Egito, com seu mirrado PIB per capita de US$ 3,7 mil e a 97ª posição IDH. E o país africano deve bem menos: US$ 17 bilhões. No total, a dívida Argentina em dólar atingiu US$ 226,034 bilhões no final de 2022. Enquanto isso, suas reservas internacionais somavam apenas US$ 2 bilhões. No Brasil, só para traçar um paralelo, são US$ 335 bilhões.
O histórico de calotes e a penúria das reservas transformaram a Argentina num pária do mercado global de crédito. Basicamente, não existe mais demanda para novas dívidas argentinas. Com isso, a cotação da moeda local ante o dólar desaba paulatinamente.
A cotação no mercado paralelo (mais sobre isso adiante) era de 78 pesos por dólar em janeiro de 2020. Em abril de 2023, chegou a 500 pesos. Para comparar: é como se o dólar por aqui, cotado a R$ 4,20 três anos atrás, tivesse chegado agora a R$ 27.
Não é só isso. A Argentina também maltrata a própria moeda. Em 2002, para tentar conter a crise da época, o país lançou uma forma bizarra de título público: as Lebacs (Letras do Banco Central).
Nas economias normais, como a nossa, quem emite títulos públicos é o Tesouro Nacional, o órgão do Estado que maneja as contas públicas. E o governo paga as dívidas que os títulos geram fazendo novas dívidas – ou com parte do dinheiro que arrecada nos impostos, quando rola superávit primário.
Com as Lebacs era diferente. O emissor era Banco Central, o braço do Estado que cria moeda. Logo, bastava à autarquia imprimir dinheiro para pagar a dívida interna – algo que é proibido no Brasil. Por aqui, a emissão de dinheiro novo, do nada, só é liberada para fins de política monetária. O BC só produz dinheiro quando deseja baixar os juros básicos da economia (emprestando essa grana nova aos bancos a taxas menores).
Se o BC daqui imprimisse dinheiro para pagar dívida pública, criaria uma inflação descomunal. Daí a proibição. Na Argentina, não há essa regra. Para pagar as dívidas em pesos geradas pelas Lebacs, então, imprimiram trilhões de pesos. “Faz anos que digo que as Lebacs não deveriam existir”, disse o economista Eduardo Levy Yeyati, um dos criadores do mecanismo. Elas deixaram de ser emitidas em 2018, mas ajudaram a plantar as sementes para a inflação atual.
Pior. A Argentina mantém as impressoras de dinheiro a toda. Hoje existem as Leliqs (Letras de Liquidez do Banco Central). A diferença é que elas são vetadas a pessoas físicas e empresas. Só bancos podem comprar. Mas é dinheiro novo do Banco Central na veia da economia de qualquer jeito, jogando mais gasolina na fogueira da inflação.
Só tem um detalhe. Como o peso não vale mais nada no mercado internacional, o país precisa de moeda americana para bancar suas importações, já que nação alguma no mundo é autossuficiente. E o BC da Argentina, naturalmente, não conta com uma impressora de dólares.
O maior desafio deles hoje, então, é reter dólares e engordar as reservas, de modo a honrar pagamentos urgentes. E agora?
Tango cambial
Vale notar que a realidade por lá é diferente do Brasil em outro quesito. O governo controla o câmbio – algo que não existe por aqui desde 1998. Significa que o Estado dita aos cidadãos quanto vale cada dólar, na medida do possível.
Lembra os US$ 2 bilhões que o BC argentino tem em reservas? Então. Ele pode vendê-los a pessoas físicas e jurídicas pelo preço que quiser. Como o objetivo é segurar os dólares, o ideal seria cobrar uma tonelada de pesos para cada unidade de moeda americana. Mas isso geraria um problema. Se uma empresa do país tiver de comprar dólares para importar maquinário, por exemplo, exigir pesos demais em troca poderia quebrá-la. Então o governo tenta dar um jeito de manter a moeda americana artificialmente barata.
Mas ele não tem poderes mágicos. Com a quantidade de dólares das reservas caindo sem parar, o governo passou a agir de forma esquizofrênica: mantém um câmbio oficial camarada, mas regula severamente o acesso aos dólares que ainda tem nos cofres. São poucas as empresas autorizadas a comprar pelo preço oficial (já já mostraremos o quanto ele é irreal). Ah, pessoas físicas só podem adquirir US$ 200 por mês por essa via – até 2019, o teto era mais generoso: US$ 10 mil.
Mas os dólares do Banco Central são só uma parte do total de moeda americana que existe de fato na Argentina. Pessoas e empresas têm dólares em espécie guardados, e comercializam a moeda entre si sem intermediação do governo. É o dólar paralelo – apelidado de “blue” por lá.
“Paralelo” nem é uma boa palavra. A cotação do blue simplesmente reflete a oferta e demanda por dólares. É o preço de mercado da coisa. A cotação real. A do governo é a de mentira. E o que tínhamos no final de abril era: cotação de mentira do dólar, 220 pesos. Cotação de verdade, a do blue: 500 pesos.
Isso gera outro problema. Se um exportador argentino levantar 1 milhão de dólares vendendo vinho, uma hora ele terá de trocar por pesos para pagar os funcionários da vinícola. Via Banco Central, ele vai receber 220 milhões de pesos. Pelo blue, 500 milhões de pesos. Qual ele vai preferir? Pois é. Isso só serve para duas coisas: 1) estimular a troca à margem da lei; 2) desestimular a exportação para quem pretende agir dentro dos conformes. Das duas formas, o governo argentino acaba com menos dólares em seus cofres.
No caso do turismo, vale o mesmo. Em vez de trocar dólares por poucos pesos nas casas de câmbio oficiais, aquelas de bancos e aeroportos, o pessoal vai às casas informais do ramo, facilmente encontráveis, e troca pelo dobro de pesos. Aí o governo, de novo, não vê a cor da moeda forte.
Um jeito de resolver isso seria acabar com o controle do câmbio, deixando a cotação ao sabor do mercado. Mas a Casa Rosada decidiu complicar. Partiu em 2022 para uma artimanha trágica e inusitada, como os acordes de um tango: um catálogo de novos câmbios oficiais.
O maior produto de exportação da Argentina é a soja (US$ 3,47 bilhões em 2021). Para evitar que os exportadores do grão partam para o mercado paralelo de dólares ou deixem de exportar, o governo passou a oferecer a eles um câmbio mais vantajoso: o “dólar soja”. Ele tem uma cotação próxima à do blue.
Esse câmbio acabou estendido para exportadores de outras commodities agrícolas, mas não para os de vinho. Agora eles lutam para obter o seu. Caso role, a imprensa argentina já tem um apelido pronto: “dólar Malbec”.
Com a mesma filosofia em mente, criaram o “dólar tarjeta” na virada de 2022 para 2023. Até então, o dinheiro que os turistas gastavam no cartão (tarjeta) de crédito era convertido pelo câmbio oficial. Se você, turista, passasse o seu lá para pagar por uma refeição, pagaria o dobro do que se tivesse levado dólares ou reais e trocado na rua por pesos pelo câmbio blue.
Para evitar esse dissabor, turistas passaram a abrir contas na Western Union. A empresa de transferências internacionais de dinheiro usa o câmbio blue (o que dá uma ideia do quão normal é o dólar paralelo por lá). Para um brasileiro, então, basta enviar reais via Pix para sua conta na Western, estando lá na Argentina mesmo, e sacar na boca do caixa o dobro de pesos.
Agora, com o dólar tarjeta, as despesas em pesos são convertidas pelo BC argentino junto à operadora do cartão num câmbio próximo ao blue. Nota: caso você vá para a Argentina, é importante consultar a operadora do seu cartão, pois o câmbio varia entre elas.
Já se você for um argentino e viajar para o exterior, está lascado. Para evitar a saída de dólares, a conversão em pesos para quem gasta no cartão fora do país também é igual à do blue. É o “dólar Qatar”. Na compra de itens caros, como joias, é o blue mais pelo menos 25% – o chamado “dólar luxo”.
Até o momento, são 16 taxas de câmbio regulamentadas pelo governo – 17 contando o blue. E nem todas servem para o BC local sugar dólares. Produtores de eventos internacionais não tinham acesso ao dólar oficial, o baratinho. E a alta no blue começava a inviabilizar a realização de shows gringos na Argentina. Como parte de uma política de pão e circo, então, o governo liberou aos promotores o dólar oficial, com uma leve sobretaxa de módicos 30%, para o pagamento dos artistas gringos. A modalidade ganhou o apelido de “dólar Coldplay”, em homenagem à série de shows que a banda de Chris Martin fez na Argentina no ano passado.
Como o governo vai definindo as cotações? “Não há critérios objetivos”, afirma o economista Livio Ribeiro, pesquisador associado do FGV Ibre. “As taxas de câmbio múltiplas começaram com poucas e agora vão se proliferando.” Na prática, tudo se resume a uma oficialização progressiva do dólar blue, em paralelo à criação de novos subsídios. Buena suerte.