O ruído que exclui líderes negros
Entenda a diferença entre ruído e viés. E como a inconsistência na avaliação e na tomada de decisão sustenta a desigualdade racial.
Já era o quinto médico especialista com o qual eu me consultava por conta de uma dor forte que estava sentindo na região da virilha. A dor aguda se espalhava pela perna direita e algumas vezes chegava ao meu quadril e coluna. A minha esperança era que o diagnóstico dado pelo médico número 5 fosse igual a algum dos outros quatro anteriores, mas, para o meu desespero, mais um diagnóstico diferente foi dado: para o mesmo paciente, cinco médicos diferentes ofereceram cinco diagnósticos diferentes.
E isso tem nome. Esse é um fenômeno que Daniel Kahneman, prêmio Nobel de economia pelos seus estudos sobre comportamento e tomada de decisão, chama de RUÍDO. Explico…
A maioria de nós conhece ou já ouviu falar dos erros de julgamento, os famosos vieses. Mas vieses e ruídos são diferentes. Viés, por exemplo, aconteceria se todos os diagnósticos dos cinco médicos tivessem errado e, ao investigar, nós descobríssemos que usam a mesma marca de um equipamento; ou seja, o exame estaria enviesado por todos usarem o mesmo instrumento de má qualidade. Como o próprio Kahneman explica, a consistência do viés admite uma previsão: se um sexto médico com o mesmo equipamento fizesse o diagnóstico, podemos apostar que daria o mesmo resultado. A consistência do viés também pede uma explicação causal: O equipamento da mesma marca é de má qualidade.
Já no meu caso, chamamos o resultado dos cinco médicos que me atenderam de ruído porque seus diagnósticos estão amplamente dispersos: cinco diagnósticos diferentes. Não há um viés óbvio. Se o sexto médico fosse consultado, não teríamos certeza do resultado.
Mudando dos meus diagnósticos para o mundo corporativo
Mas, Emerson, o que eu tenho a ver com as suas dores? Você deve estar se perguntando. Minha resposta é: minhas dores, não… nossas dores!
Minha saga médica é um retrato fiel de como o julgamento humano falha. Se essa grande variação de opiniões, esse ruído, existe na medicina, imagine nas decisões corporativas. Cada avaliação de desempenho, entrevista ou promoção é um “diagnóstico” sobre o potencial de um profissional, que deveria ser consistente, mas raramente é.
Entendeu, agora, o porquê de uma conversa sobre nossas dores?
E, por falar em dor, a pergunta que deixo para os profissionais de Recursos Humanos, Pessoas ou qualquer outra nomenclatura que exista para essa área é: se cinco gestores diferentes avaliassem o mesmo profissional negro, teríamos um consenso ou cinco “diagnósticos” diferentes? Unindo Kahneman com os meus 25 anos de mundo corporativo, sendo 15 deles como alto executivo, a resposta previsível é que, sim, irá existir uma dispersão de opiniões, uma nuvem de inconsistência.
Nos últimos anos, as organizações focaram em combater o viés, o erro sistemático que empurra todos para a mesma direção equivocada. Investimos em treinamentos e comitês, mas isso é metade da história. Ignoramos o outro lado da moeda: o ruído, a variabilidade aleatória nos julgamentos.
Como já comentei, o ruído é o que acontece quando diferentes profissionais, com os mesmos fatos, chegam a conclusões radicalmente diferentes. Ele é sorrateiro porque sua natureza o torna imperceptível. Um viés é um padrão identificável; o ruído é caótico e um verdadeiro camaleão se camuflando de outros problemas. A injustiça se traveste de “é apenas uma questão de opinião” ou “falta de fit cultural” ou “não chegou a hora ainda”.
Mesmo que eliminássemos todos os vieses, e assim o preconceito individual, um sistema ruidoso continuaria a produzir resultados arbitrários. Por isso, um dos meus pontos é que a luta pela equidade no mundo corporativo não é apenas para mudar mentes, a famosa conscientização. Precisamos ser práticos e avançarmos para construir sistemas de decisão confiáveis.
Como o ruído sistêmico penaliza o talento negro
Para um profissional negro, navegar no mundo corporativo muitas vezes se assemelha a participar de uma loteria. O sucesso pode depender menos do mérito e mais da sorte de quem é o seu gestor. Essa aleatoriedade é o resultado direto do ruído sistêmico. Enquanto meu artigo anterior analisava a falta de acesso e de horas de prática, agora me aprofundarei na avaliação inconsistente do desempenho quando a oportunidade é concedida.
Ruído de nível, padrão e ocasião: as faces da injustiça
O Ruído de Nível ocorre quando diferentes avaliadores têm padrões distintos: alguns são rigorosos; outros, moderados. Imagine duas profissionais negras, Ana e Beatriz, com desempenho idêntico. Ana tem um gestor que dá notas altas a todos; Beatriz, um chefe “carrasco”. No ciclo de avaliação, Ana é vista como “alto potencial” e Beatriz como “mediana”. A diferença não está no desempenho, mas na pura sorte de quem as avalia. Para profissionais que já enfrentam ceticismo sobre sua competência, essa roleta-russa de gestão pode frear carreiras promissoras.
Mais complexo é o Ruído de Padrão, que ocorre quando avaliadores reagem de maneira diferente a combinações específicas de características. É aqui que o racismo sistêmico opera em nível micro. As definições de “liderança” ou “presença executiva” são moldadas pela cultura dominante, historicamente branca. Um líder branco assertivo é visto como “decidido”, enquanto um líder negro com o mesmo comportamento corre o risco de ser julgado como “agressivo” por um gestor, mas talvez “apaixonado” por outro. Uma profissional negra que promove suas conquistas pode ser rotulada como “arrogante”, enquanto sua colega branca (insisto: com o mesmo comportamento) é elogiada por sua “visibilidade executiva”. As regras do que constitui “potencial” mudam dependendo de quem está olhando.
Finalmente, há o Ruído de Ocasião, a variabilidade no julgamento de uma mesma pessoa em momentos diferentes, influenciado por fatores irrelevantes como humor, cansaço ou até o clima. A mesma apresentação de projeto pode ser celebrada em uma sexta-feira ensolarada ou criticada em uma segunda-feira após a derrota do time de futebol do gestor. Estudos mostram que juízes são mais moderados com réus que fazem aniversário no dia do julgamento e que o clima afeta avaliadores de admissão em universidades. Para um profissional negro, com menor capital social e margem de erro, esse evento aleatório pode ser interpretado como prova de “incapacidade”, validando vieses preexistentes (leia-se racismo) e impactando sua trajetória de forma desproporcional.
Quando o ruído amplifica o viés
É um erro pensar em ruído e viés como problemas separados. Na realidade, o ruído é o terreno fértil onde o viés floresce, e esse viés, no contexto corporativo, é uma manifestação direta do racismo estrutural que discutimos em artigos anteriores. O racismo estrutural não se manifesta apenas em atos explícitos, mas na perpetuação de sistemas que favorecem um grupo em detrimento de outro. Em um sistema de avaliação com critérios vagos e decisões a portas fechadas, ou seja, com alto ruído, o cérebro recorre a atalhos mentais para preencher as lacunas. E esses atalhos são os vieses, moldados pela estrutura social.
O viés de afinidade, que nos faz preferir quem se parece conosco, e o de confirmação, que nos leva a validar nossas crenças iniciais, encontram no ruído o ambiente perfeito para operar. Quando um profissional negro é preterido, o gestor sempre terá uma justificativa subjetiva: “faltou maturidade”, “não tem o perfil”. Como os critérios nunca foram claros ou consistentes, é impossível provar que a decisão foi contaminada por um viés racial. O ruído cria uma névoa que esconde o padrão sistemático da discriminação, permitindo que o racismo estrutural se perpetue sob o disfarce da subjetividade.
É por isso que tantas iniciativas de diversidade falham: tentam consertar a mentalidade das pessoas sem consertar os processos de decisão ruidosos. Kahneman propõe uma fórmula para o erro total: Erro Total = Viés² + Ruído². Não se preocupe com a matemática, eu explico.
A implicação é chocante: mesmo com viés zero, o ruído ainda levaria a erros massivos e injustiças. Isso nos traz uma conclusão desconfortável: a “meritocracia”, como praticada, é uma ilusão. Se a ferramenta de medição, o julgamento humano, não é confiável, ela não pode medir o mérito de forma acurada/precisa. Profissionais negros, aconselhados a “trabalhar o dobro”, percebem que o “mérito” recompensado é, na maioria das vezes, um reflexo do erro aleatório do sistema, o que corrói a confiança e leva à perda de talentos.
Silenciando o ruído
Diagnosticar o ruído é o primeiro passo. A cura está na implementação de um conjunto de procedimentos preventivos que Kahneman chama de “Higiene da Decisão”. Assim como lavar as mãos previne doenças, a higiene da decisão consiste em práticas que reduzem o erro (ruído e viés) antes que ele ocorra. O foco muda de consertar a psicologia dos decisores para redesenhar a arquitetura das decisões.
Princípio 1: Estruturar o julgamento, não a intuição. A intuição humana é ruidosa. A ação mais eficaz é implementar entrevistas e avaliações de desempenho altamente estruturadas. Isso significa definir previamente as competências essenciais, desenvolver perguntas específicas para cada uma e criar uma escala de pontuação clara. A intuição só deve entrar no final do processo, após a coleta estruturada de dados, forçando todos a usarem a mesma régua, reduzindo o ruído.
Princípio 2: Alavancar a sabedoria coletiva (de forma independente). A média de muitos julgamentos independentes é mais precisa que um único julgamento. Para decisões críticas, como promoções, as empresas devem usar um painel de avaliadores. O ponto principal é o procedimento: cada membro deve registrar suas pontuações de forma independente e antes de qualquer discussão. Este processo simples cancela os erros aleatórios (ruído) e impede que a opinião da pessoa mais sênior contamine o julgamento do grupo.
Princípio 3: Decompor o julgamento e atrasar a intuição. Nossa mente tende a formar uma impressão geral rápida (o “efeito halo”) que contamina a avaliação de atributos específicos. Para combater isso, as empresas podem adotar o “Protocolo de Avaliações Mediadoras”. Em vez de um julgamento holístico, os gestores devem primeiro avaliar separadamente os componentes da performance (entrega técnica, colaboração etc.). A avaliação geral só é feita após a análise fria e independente das partes, tornando o preconceito mais visível e menos defensável.
Para além da oportunidade, a justiça no julgamento
A mensagem para o RH e para as lideranças é clara. Começamos com cinco diagnósticos para uma única dor e vimos como essa mesma dispersão de julgamentos define as carreiras de incontáveis profissionais negros. A variabilidade indesejada das decisões, é uma força que gera iniquidade.
No meu último artigo, discuti a importância de dar acesso para que talentos negros acumulem suas “10 mil horas”. Mas isso é metade da batalha. De que adianta lutar para entrar em campo se o árbitro julga cada jogada com uma regra diferente? A luta pela equidade racial não é apenas para abrir portas; é para garantir que, uma vez lá dentro, o julgamento seja justo. Reduzir o ruído é um imperativo moral e estratégico. É trocar a loteria da subjetividade pela disciplina da justiça, construindo uma organização onde o talento, de fato, fale mais alto. Silenciar o ruído é, finalmente, permitir que a voz da liderança negra seja ouvida com a clareza e a consistência que ela merece.
E, para os profissionais negros que aspiram à liderança, a compreensão da existência do ruído oferece uma nova lente para a estratégia de carreira. Saber que o sistema de avaliação é inerentemente instável e sujeito a fatores aleatórios é, paradoxalmente, um poder. Significa que um feedback negativo isolado ou uma avaliação de desempenho desfavorável não é necessariamente um veredito sobre sua competência, mas pode ser apenas um ponto de dados ruidoso.
A estratégia, então, é trabalhar de forma mais inteligente para navegar nessas inconsistências. Documente suas realizações de forma objetiva. Construa uma rede de aliados e mentores que possam oferecer múltiplas perspectivas sobre seu desempenho, criando sua própria ‘sabedoria coletiva’ para calibrar seu desenvolvimento. Ao apresentar seus resultados, ancore a conversa em dados e fatos, forçando uma avaliação menos subjetiva. Entender o ruído não elimina a injustiça, mas nos equipa com as ferramentas para não sermos definidos por ela, transformando a aleatoriedade do sistema em um campo que, com estratégia, também pode ser navegado.
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