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Cris Kerr

Por VOCÊ S/A
Cris Kerr é CEO da CKZ Diversidade, consultoria especializada em Inclusão & Diversidade, professora da Fundação Dom Cabral, Mestra em Sustentabilidade e idealizadora do Super Fórum Diversidade & Inclusão.
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A influência da cultura corporativa no burnout vai além do excesso de horas trabalhadas

Valores como foco nos clientes, ética e desafio ao status quo são frequentemente exaltados pelas empresas. Contudo, o bem-estar e a saúde mental das equipes raramente figuram entre as prioridades valorizadas na cultura corporativa.

Por Cris Kerr
31 jan 2024, 15h29

Recentemente uma amiga estava tão exausta com seu trabalho que sofreu um acidente após desmaiar dirigindo o seu carro na volta para casa. Na UTI, recebeu o diagnóstico de burnout e soube que precisaria colocar duas placas e dez parafusos. Esse episódio retrata um caso extremo, mas o burnout, como chamamos o esgotamento mental, também acontece por outros motivos além do excesso de trabalho e está​ finalmente recebendo mais atenção das empresas.

O burnout é um mecanismo de defesa do nosso corpo. É quando o nosso cérebro, que é uma máquina, desliga antes que algo pior aconteça. Agora que o tema está mais em voga, a ponto de ser até romantizado por algumas pessoas, é importante entender que as causas podem ir muito além do grande volume de horas trabalhadas sob pressão.

Elas estão intimamente ligadas a quadros de ansiedade e depressão, duas das doenças mais comuns. Como escrevi no meu livro mais recente, “Cultura organizacional livre de assédio”, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 12 bilhões de dias de trabalho são perdidos anualmente devido à depressão e à ansiedade, custando à economia global quase US$ 1 trilhão.

Mais que isso, diversas pesquisas alertam que as ocorrências de distúrbios psicológicos ligados ao ambiente de trabalho não são problemas individuais, e sim organizacionais. Tem a ver com um desencontro entre o que as empresas oferecem e o que as pessoas precisam para o seu bem-estar e para trabalhar em alto nível.

Um artigo recente da Harvard Business Review mostra que outras causas de burnout podem incluir um ambiente de trabalho tóxico ou uma cultura corporativa que não se alinha aos valores da pessoa, ou ainda questões relacionadas a diferenças entre a descrição do cargo e o que é exigido na prática. A sensação de não ter reconhecimento, de não pertencer, ou de ver os próprios talentos subaproveitados também pode contribuir para a deterioração da saúde mental.

Também há uma dimensão cultural importante em jogo: o culto ao êxito, a obrigatoriedade de ser melhor o tempo todo, a ideia de que não há recompensa sem sacrifício e a noção de que “a roda não pode parar de girar”. A glamourização do burnout faz com que as pessoas admitam o problema com facilidade, desde que faça referência ao excesso de trabalho, mas tenham vergonha de admitir quadros de depressão e ansiedade.

No Brasil, o burnout já é endêmico. De acordo com uma pesquisa da ISMA-BR (International Stress Management Association), 30% das pessoas trabalhadoras brasileiras sofrem da síndrome. Ao menos parte desses casos tem sido diagnosticada. Segundo o Ministério da Previdência Social, em 2023 foram concedidos 38% mais benefícios por incapacidade devido a transtornos mentais do que em relação a 2022.

O tema tem circulado mais e isso pode ser um dos poucos legados positivos da pandemia de covid-19. Se antes a saúde nas empresas era sinônimo de ginástica laboral e check-ups periódicos, hoje a saúde mental e a felicidade entraram também para a pauta. Um estudo da ADP Research Institute realizado em 17 países apontou que, no Brasil, 63% das 1.412 pessoas escutadas sentem poder ter conversas sinceras sobre esse tema no trabalho sem risco de julgamento.

Mas certamente há uma discrepância de gênero. Recentemente, fiz uma sessão de coaching para um grupo de uma empresa e depois conversei individualmente com cada pessoa. A reação dos homens me chamou a atenção. Eles estavam inseguros, com medo de dar os próximos passos na carreira e resistentes a falar sobre isso em público. Já as mulheres expuseram mais a própria vulnerabilidade e conversaram mais sobre o tema nas sessões.

Temos rejeitado emoções dolorosas como medo, inveja, raiva e frustração. Ou resistido a aceitar que esses sentimentos estão lá. Porém, nem sempre há um ambiente de segurança psicológica para que essa vulnerabilidade possa surgir. E quando não nos damos permissão para nos sentirmos seres humanos, ou quando não há espaço para isso, o caminho está aberto para o burnout, ansiedade e depressão.

Mulheres têm mais propensão a rejeitar a raiva porque aprendem que não podem expressá-la. Devem ser cuidadoras. Mas, se não descobrem como lidar com esse sentimento natural, podem adoecer. Já os homens tendem a rejeitar mais o medo e a ansiedade porque foram ensinados a serem “corajosos” e imunes a tudo isso.

Do lado das empresas, também há muito a ser feito. Segundo uma pesquisa realizada pela corretora de benefícios Pipo Saúde, apenas 36,2% das companhias com até 500 pessoas ofereciam benefícios de saúde mental. Além disso, a maioria não treinava sua liderança para acolher pessoas com essas questões em seus times, apesar da pauta ser frequentemente considerada prioridade entre CEOs.

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Recentemente, ao me preparar para dar um treinamento, decidi ler os valores da empresa que visitaria. Muitas questões importantes estavam listadas, como foco nos clientes, ética e desafio ao status quo. Apesar disso, o cuidado com as pessoas do time aparecia em último na lista – era quase inexistente. Está na hora de rever a importância do bem-estar e da saúde mental para a cultura corporativa.

Quando faço treinamentos, é comum escutar de muitas pessoas participantes que elas estão felizes. No entanto, a verdade aparece quando realizamos um censo interno e sigiloso. Esses levantamentos mostram quais são as áreas, grupos e pessoas que se sentem mais ou menos incluídas, pertencentes, escutadas e valorizadas. E sabemos a importância disso para a saúde mental das pessoas.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, cada dólar investido na saúde mental das pessoas de uma empresa pode gerar um retorno de até 4 dólares. Da mesma maneira que muitas companhias têm os EPI (Equipamento de Proteção Individual), entre os quais os capacetes e botas, precisamos criar os chamados EPIs emocionais. São capacitações e programas para acolher quem não está se sentindo bem e para garantir o bem-estar dos times.

As empresas precisam entender que estão se relacionando com seres humanos. Promover espaços seguros para momentos de crise e buscar ativamente entender como as pessoas estão se sentindo são vias de mão dupla. Só somos capazes de entregar o nosso melhor quando estamos bem, nos sentimos valorizados e recebemos ajuda para lidar com os momentos agudos de sofrimento psicológico.

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