Quando a meritocracia passou a ser tóxica, e como isso aconteceu?
Professor de Harvard debate em livro por que a crença de que o esforço individual é o grande motor do sucesso só amplia o abismo social.
Professor de filosofia política na Universidade Harvard, Michael Sandel é um dos grandes pensadores atuais sobre democracia, ética e justiça. Este último tema, aliás, é esmiuçado pelo americano em um dos cursos mais procurados de Harvard.
As 24 aulas estão disponíveis gratuitamente no site da universidade e no YouTube e renderam o livro Justiça: O Que É Fazer a Coisa Certa? (Civilização Brasileira, 59,90 reais). Em setembro, o filósofo lança uma nova obra na qual discute um assunto polêmico: a meritocracia.
Em A Tirania do Mérito, Michael debate por que a crença de que o esforço individual é o grande motor do sucesso só amplia o abismo social, estimula a polarização e impede que as sociedades sejam mais solidárias. No trecho a seguir, publicado com exclusividade por VOCÊ S/A, o filósofo explica como o conceito do mérito foi construído pela humanidade.
Trecho do livro
Capítulo 2 — “Grandioso porque é bom”: uma breve história moral do mérito
Não há nada de errado em contratar pessoas com base no mérito. Aliás, em geral, é a coisa certa a se fazer. Se preciso de um bombeiro hidráulico para consertar meu vaso sanitário ou de um dentista para restaurar meu dente, tento encontrar a melhor pessoa para a tarefa. Bem, talvez não a melhor; eu não faço uma pesquisa global. Mas é certo que eu quero alguém bem qualificado.
No preenchimento de vagas de emprego, mérito conta, por pelo menos dois motivos. Um é eficiência. Para mim será melhor se meu bombeiro hidráulico ou meu dentista for eficiente, em vez de incompetente. O outro é justiça. Seria errado discriminar o candidato mais qualificado com base em preconceito de raça, religião ou sexo e contratar uma pessoa menos qualificada no lugar dele. Ainda que, a fim de satisfazer meu preconceito, eu estivesse disposto a aceitar um conserto hidráulico ou um tratamento de canal de má qualidade, a discriminação seria injusta. Candidatos mais bem preparados poderiam com razão queixar-se de terem sido vítimas de injustiça.
Se contratar com base em mérito é uma prática boa e sensata, o que poderia estar errado com a meritocracia? Como pode um princípio tão benigno quanto o mérito alimentar uma quantidade torrencial de ressentimento com tanta potência para transformar a política de sociedades democráticas ao redor do mundo? Quando exatamente mérito passou a ser tóxico, e como isso aconteceu?
Por que mérito importa
A ideia de que a sociedade deveria alocar recompensas econômicas e cargos de responsabilidade conforme o mérito é atraente por várias razões. Duas em três razões são versões generalizadas do caso de contratação por mérito — eficiência e justiça. Um sistema econômico que recompensa o esforço, a iniciativa e o talento tem a probabilidade de ser mais produtivo do que um que paga a todas as pessoas a mesma quantidade, independentemente da contribuição, ou que distribui posições sociais desejáveis com base em favoritismo. Recompensar pessoas estritamente pelo mérito também tem a virtude da justiça; não pratica qualquer discriminação além da discriminação por conquista.
Uma sociedade que recompensa mérito é também atraente por motivos relacionados aos anseios. Ela não somente promove eficiência e renuncia à discriminação como também afirma certa ideia de liberdade. Ou seja, a ideia de que nosso destino está em nossas mãos, que nosso sucesso não depende de forças além de nosso controle, que depende de nós. Não somos vítimas da circunstância, mas mestres de nossa sorte, livres para ascender até onde nossos esforços, talentos e sonhos nos levarem.
Isso é uma visão emocionante da agência humana e está lado a lado com uma conclusão moralmente confortante: recebemos o que merecemos. Se meu sucesso é resultado de minhas próprias ações, algo que eu conquistei por meio de talento e trabalho árduo, posso me orgulhar disso, certo de que mereço as recompensas resultantes de minhas conquistas. Uma sociedade meritocrática, portanto, é duplamente inspiradora: ela afirma uma noção potente de liberdade e dá às pessoas o que elas conquistaram por conta própria e, logo, merecem.
Apesar de inspirador, o princípio do mérito pode tomar caminhos tiranos, não somente quando as sociedades não conseguem ser fiéis a ele mas também — na verdade, sobretudo — quando conseguem. O lado negativo do ideal meritocrático está embutido em sua promessa mais sedutora, a de domínio e a de vencer pelo próprio esforço. Essa promessa vem com um fardo difícil de carregar.
O ideal meritocrático coloca um peso grande na concepção de responsabilidade pessoal. Responsabilizar as pessoas pelas coisas que elas fazem é bom, até certo ponto. Respeita a capacidade delas de pensar e agir por elas mesmas, como agentes morais e cidadãos. Mas uma coisa é responsabilizar as pessoas por agirem de acordo com a moral; outra coisa é pressupor que somos, cada um de nós, totalmente responsáveis por nossa sina.
Até mesmo a expressão “nossa sina” utiliza um vocabulário moral que sugere certos limites para uma responsabilidade irrestrita. Falar sobre a “sina” de uma pessoa sugere a determinação de sinas, um resultado determinado por destino, sorte ou providência divina, não nosso esforço. Indica, para além de mérito e escolha, o âmbito da sorte e do acaso ou, em alguns casos, da graça. Isso nos faz lembrar que os primeiros debates mais significativos sobre mérito não eram sobre renda nem emprego, mas sobre graça divina: isso é algo que conquistamos ou que recebemos como dádiva?
Uma meritocracia cósmica
A noção de que nosso destino reflete nosso mérito está arraigada nas intuições morais da cultura ocidental. A teologia bíblica ensina que eventos naturais acontecem por um motivo. Clima favorável e colheita abundante são recompensas divinas por bom comportamento; seca e pragas são punição por pecado. Quando um navio depara com mares tormentosos, as pessoas perguntam quem da tripulação irritou Deus.
Distante de nossa era científica, esse modo de pensar pode parecer inocente, até mesmo pueril. Mas não está tão distante como parece à primeira vista. De fato, essa perspectiva é a origem do pensamento meritocrático. Reflete a crença de que o universo moral está organizado de uma forma que relaciona prosperidade e mérito, sofrimento e comportamento impróprio. Isso não está distante da visão contemporânea familiar de que riqueza significa talento e trabalho árduo, e pobreza significa apatia.
Duas características da perspectiva bíblica sugerem o que é a meritocracia contemporânea. Uma delas é a ênfase em agência humana; a outra é seu rigor direcionado a pessoas que sofrem de má sorte. Pode parecer que a meritocracia contemporânea enfatiza agência e arbítrio humanos, enquanto a versão bíblica atribui todo o poder a Deus. Afinal, ele é quem distribui castigos e recompensas: enchentes, secas, chuvas que salvam a safra.
Mas, de fato, esse é um quadro altamente antropocêntrico, no qual Deus passa a maior parte do tempo respondendo a solicitações de seres humanos — recompensando sua bondade, castigando seus pecados. Deus fica paradoxalmente em dívida conosco, compelido, na medida em que é justo, a nos dar o tratamento que conquistamos. Apesar de Deus ser quem concede recompensas e castigos, ele o faz conforme o mérito das pessoas, não de forma arbitrária. Portanto, mesmo na presença de Deus, entende-se que seres humanos conquistam e, portanto, merecem seu destino.
Segundo, esse modo meritocrático de pensar dá origem a comportamentos rigorosos em relação a pessoas que sofrem de má sorte. Quanto maior for o sofrimento, maior será a suspeita de que a vítima atraiu isso para ela. Lembre-se do Livro de Jó. Homem justo e honrado, Jó é sujeitado a dor e sofrimento indescritíveis, inclusive a morte de seus filhos e filhas em uma tempestade. Sempre fiel a Deus, Jó não consegue compreender a razão de receber esse sofrimento como castigo. (Ele não se dá conta de que é vítima de uma aposta cósmica através da qual Deus tenta provar para Satã que a fé de Jó não irá vacilar, seja qual for a dificuldade que ele encontrar.)
Enquanto Jó está em luto pela perda de sua família, seus amigos (se é que se pode chamá-los de amigos) insistem que ele deve ter cometido algum pecado egrégio e pressionam Jó a imaginar qual seria esse pecado. Esse é um dos primeiros exemplos de tirania do mérito. Munidos do pressuposto de que sofrimento significa pecado, os amigos de Jó pioram sua dor ao afirmarem que, em virtude de uma ou outra transgressão, Jó deve ser culpado pela morte de seus filhos e filhas. Apesar de saber que é inocente, Jó compartilha da teologia do mérito de seus companheiros e então clama a Deus, perguntando por que ele, um homem honrado, está sofrendo.
Quando Deus finalmente conversa com Jó, ele rejeita a lógica cruel que culpa a vítima. Ele o faz ao renunciar o pressuposto meritocrático de que Jó e seus companheiros compartilham. Nem tudo o que acontece é recompensa ou castigo para o comportamento humano, Deus proclama dentro de um remoinho. Nem toda chuva tem finalidade de molhar a plantação de pessoas honradas, nem toda seca tem finalidade de castigar quem é perverso. Afinal, chove em lugares onde ninguém vive — em regiões selvagens, que não têm vida humana. A criação não é apenas pelo bem dos seres humanos. O cosmos é maior; e os caminhos de Deus, mais misteriosos do que a imagem antropomórfica sugere.
Deus confirma a honra de Jó, mas o castiga por pressupor que compreendeu a lógica moral dos seus preceitos. Isso representa um distanciamento radical da teologia do mérito construída em Gênesis e Êxodo. Ao renunciar à ideia de que ele tem autoridade sobre uma meritocracia cósmica, Deus afirma seu poder ilimitado e ensina a Jó uma lição de humildade. Fé em Deus significa aceitar a grandiosidade e o mistério da criação, não esperando que Deus dispense recompensas e castigos com base no mérito e merecimento de cada pessoa.