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Entenda por que a decisão da Samsung de ampliar a semana de trabalho para 6 dias pode ser uma furada

Executivos sul-coreanos foram orientados a sabadar (ou domingar) numa tentativa radical de reerguer os resultados financeiros. Saiba como a medida tende a ser nociva à companhia e aos seus funcionários – e gerar justamente o efeito contrário.

Por Sofia Kercher
Atualizado em 8 Maio 2024, 16h32 - Publicado em 8 Maio 2024, 16h27

Em março do ano passado, o governo da Coreia do Sul trouxe a público um plano… inusitado. O país anunciou que estava estudando a possibilidade de aumentar a carga horária semanal de trabalho para 69 horas – quase 14 horas por dia, se contarmos os tradicionais cinco dias de trampo que conhecemos.

A ideia partiu de grupos empresariais sul-coreanos. Segundo os coletinhos de Myeongdong (o equivalente à Faria Lima deles), o teto de 52 horas semanais, ou cerca de 10,5 horas por dia, era insuficiente para que os funcionários conseguissem cumprir e bater as metas estabelecidas pelas empresas.

Vale dizer que, em 2023, os sul-coreanos trabalharam, em média, 1.915 horas. Isso é mais do que a média de todos os países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, que é quem levantou os dados). Para referência: no mesmo ano, a nação que menos trabalhou foi a Alemanha: 1.349 horas. São 566 horas de diferença entre os expedientes.

Críticas à proposta apontaram o quanto ela estava em descompasso com outras grandes economias. Nessas outras, já prevalecia a discussão sobre a flexibilização e diminuição da jornada de trabalho desde 2020 – quando um vírus apareceu pelo caminho (mas mais sobre isso em instantes). 

Além disso, é seguro dizer que a ideia não bateu muito bem com os sul-coreanos mais novos, que estão cada vez mais preocupados com o equilíbrio entre trabalho x vida pessoal. O bafafá foi tamanho que o presidente do país, Yoon Suk-yeol, ordenou às agências governamentais que reconsiderassem a medida e “se comunicassem melhor com o público, especialmente com a GenZ e os millennials“.

O engavetamento da proposta foi uma vitória para os trabalhadores sul-coreanos, sem dúvida. Mas um novo anúncio da Samsung mostra que a mentalidade dos empresários ainda vai no contrafluxo da juventude do país – e da discussão sobre jornadas de trabalho menores. Vamos entendê-la.

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Sabadou (ou domingou)

No finalzinho do mês passado, a Samsung determinou que executivos terão que trabalhar seis dias na semana na Coreia do Sul. A medida foi divulgada pelo jornal The Korea Economic Daily (KED), e começou a valer a partir da segunda semana de abril. 

Com a mudança, o alto escalão da companhia terá de escolher qual dia da semana trabalhar – sábado ou domingo – além de segunda a sexta. O restante dos funcionários continuará trabalhando cinco dias. E só se aplica à Coreia do Sul — no Brasil, a decisão não se aplica.

Motivo? Uma queda no lucro operacional e na receita da companhia. No terceiro trimestre de 2023, a queda foi de 35%, para US$ 2,1 bi. As estimativas de analistas previam 24% a mais. Quando olhamos para o ano todo, a Samsung relatou seu menor lucro operacional em 15 anos.

Segundo o jornal, a desvalorização do won, o aumento dos preços do petróleo e as incertezas globais causadas por dois grandes conflitos (na Ucrânia e no Oriente Médio) culminaram em uma demanda mais fraca de smartphones e tablets. 

“Considerando que o desempenho de nossas principais unidades, incluindo a Samsung Electronics, ficou aquém das expectativas em 2023, estamos introduzindo a semana de trabalho de seis dias para os executivos injetarem uma sensação de crise e fazerem todos os esforços para superá-la”, disse um executivo do grupo ao KED.

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A chave para entender a estratégia da empresa está justamente na fala do executivo: “Injetar uma sensação de crise”. A.k.a: medo. Tanto nos executivos quanto nos funcionários deles.

O alto escalão da companhia terá de escolher qual dia da semana trabalhar – sábado ou domingo – além de segunda a sexta.

Pressionados pelos resultados negativos, a solução da empresa vai nesta linha: aumentar a carga de trabalho, aumentar a pressão, aumentar o controle sobre os funcionários (famoso microgerenciamento) e, consequentemente, aumentar a produtividade. Será?

Paradoxo da Produtividade

Ao longo da década de 1980, o mundo corporativo dos Estados Unidos foi bombardeado com uma série de ferramentas novas. As pré-históricas cartas, ligações e fax foram substituídas por emails e telefones celulares. Rolou um salto considerável na agilidade das comunicações e tarefas – na esperança de que isso também aumentasse a produtividade dos funcionários. 

De fato, assim foi. Ao menos por um tempo. No finalzinho da década, apesar de novas mudanças e atualizações terem acontecido, as tecnologias introduzidas nos escritórios eram apenas versões mais rápidas de ferramentas que todos já tinham se acostumado a usar. Resultado: uma estagnação do crescimento econômico e da produtividade americana nos anos seguintes.

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Esse platô foi observado pelo economista Robert Solow. Em 1987, ele escreveu um artigo mostrando como o aumento de tecnologias não afetou o modo como os trabalhadores operavam – muito pelo contrário. Disse ele: “Podemos ver a era do computador em todo o lado, menos nas estatísticas de produtividade”.

Assim nasce o Paradoxo da Produtividade, ou Paradoxo de Solow. Ele mostra como o aumento de táticas de produtividade não tende a aumentá-la: na realidade, quanto mais estratégias nesse sentido, menos produção. 

Não é preciso ir tão longe no tempo-espaço para entender do que o especialista está falando. Pense assim: você tem um texto para entregar (do trabalho, da faculdade, da pós-graduação… fica ao gosto da imaginação do freguês). O prazo dado é de um mês, mas o texto é relativamente simples: quatro páginas sobre um assunto que você já mata no peito. As chances são de que, na noite anterior à entrega, você estará se desdobrando para terminá-lo no prazo. 

Agora, digamos que o texto seja uma prova, e você ganhou seis horas para fazê-lo. No final do prazo estabelecido – muito mais curto do que o anterior –, não há dúvida de que você conseguirá terminar a tarefa. O mesmíssimo raciocínio se aplica à decisão da Samsung.

Microgerenciamento & outros monstros

“No longo prazo, esses líderes vão tomar decisões piores, o que pode gerar mais ineficiência. Além disso, o medo vai inibir dessa liderança a capacidade analítica, e a criatividade para buscar soluções à crise”, explica Patricia Ansarah, psicóloga organizacional do Instituto Internacional de Segurança Psicológica. “No longo prazo, certamente, essa decisão é insustentável”, complementa.

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A abordagem da Samsung é muito diferente da japonesa Microsoft, por exemplo, que habita o mesmo segmento. Depois de perceber um aumento de quase 40% em sua produtividade após um teste de semanas mais curtas em 2019, o quintou foi adotado de vez pela empresa. No final de 2023, a companhia anunciou lucro recorde, de US$ 21,9 bilhões

A Microsoft é só um exemplo de um modo de trabalhar mais inteligente que, diga-se, tem embasamento científico. Até agora, o maior estudo do Four Day Week aconteceu no Reino Unido, onde 2.900 funcionários de 61 empresas participaram entre junho e dezembro de 2022. Foi um sucesso: 43% dos colaboradores relataram melhora na sua saúde mental, e 55% foi o aumento na produtividade. 90% afirmaram que querem continuar no modelo, e 15% chegaram a dizer que não voltariam para a semana de cinco dias nem por um salário maior. O turnover despencou 57%.

Para as empresas, os resultados foram igualmente bons. Numa pesquisa de avaliação, uma nota de 8,5/10 para a experiência. E impressionantes 92% decidiram prolongar o teste com a semana de quatro dias, sendo que 18 das 61 companhias já bateram o martelo: vão adotar o modelo de vez.

E a Microsoft não é exceção de resultado financeiro: as receitas das empresas cresceram, em média, 1,4% durante o experimento (entenda mais aqui).

No longo prazo, esses líderes vão tomar decisões piores, o que pode gerar mais ineficiência.

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“Não à toa, não trabalhamos nesse modelo de seis dias há mais de cem anos”, enaltece Renata Rivetti, diretora da Reconnect Happiness at Work, companhia voltada ao bem-estar corporativo.

Como, então, a empresa poderia resolver seu aperto financeiro? Quer dizer que a semana de quatro dias milagrosamente estancará o sangramento? Longe disso. 

“Para que a empresa consiga resolver os problemas, é necessário fazer perguntas que ela nunca pensou em fazer”, afirma Patricia. “Os desafios serão cada vez mais complexos devido à macroeconomia e outras questões de liderança moderna. As soluções virão de pessoas que nunca esperaríamos”. 

De fato: uma pesquisa da Gallup feita com 3 milhões de funcionários ao redor do globo descobriu que apenas três a cada dez profissionais sentem que suas ideias são valorizadas. Investigar dentro da própria empresa, ampliar escopos de conversa e entender os motivos por trás da queda de produtividade podem ser ferramentas muito mais efetivas para aumentar os números da companhia do que o medo e o microgerenciamento.

“Está na hora de aprender com outros segmentos, outros sistemas, outros países; e ter coragem de desafiar essa mentalidade ultrapassada”, finaliza Patrícia. Fica a dica, Samsung 😉

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