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HAPV3, QUAL3, RDOR3: entenda a crise do setor de saúde na bolsa

A ressaca da pandemia pegou em cheio as operadoras de planos de saúde, que acumulam prejuízos e dívidas. Pior: a crise veio justamente quando o segmento apostava forte em fusões e aquisições. Veja do que padecem as ações do setor de saúde, e como elas buscam a cura.

Por Bruno Carbinatto | Fotos: Studio Oz | Design: Caroline Aranha | Edição: Alexandre Versignassi
Atualizado em 12 Maio 2023, 15h08 - Publicado em 12 Maio 2023, 06h33
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o zero a zero”: foi assim que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) descreveu a performance do setor de planos de saúde em 2022. O órgão governamental responsável por regular e fiscalizar as empresas do segmento divulgou, agora em abril, que essas companhias registraram um lucro conjunto de apenas R$ 2,5 milhões no fechamento do ano.

Esse valor representa só 0,001% das receitas totais, que somaram R$ 237,6 bilhões. Ou seja, um único centavo de lucro para cada R$ 1.000 de receita – daí o “zero a zero” da ANS.

Esses resultados, por si só, já são alarmantes. Em 2021, o setor tinha lucrado R$  3,8 bilhões. O valor do ano passado, então, representa uma queda de 99%. Em 2020, com a chegada da pandemia, o lucro foi um recorde de impressionantes R$  18,7 bi. Mas, pelo menos, 2022 fechou no azul, certo? Não exatamente. Na verdade, a história é ainda pior do que parece.

O resultado no ligeiramente no verde foi em grande parte cortesia dos ganhos com aplicações financeiras das operadoras de saúde. Elas mantêm ativos como uma forma de reserva de emergência, para cobrir, por exemplo, eventuais falências de empresas que contratam seus planos. E, naturalmente, eventuais ganhos com os investimentos também entram nas contas finais da empresa. Em 2022, quando os juros chegaram aos atuais 13,75%, essas aplicações renderam R$ 9,4 bilhões para o setor.

Legal. Mas o que importa para realmente avaliar a saúde financeira das operadoras são os resultados operacionais – aqueles que medem o lucro apenas do negócio principal, que é vender planos e cobrar mensalidade.

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E aí a coisa fica feia. Em 2022, o resultado operacional conjunto dessas companhias fechou em um prejuízo de R$ 11,5 bilhões. É a pior performance do setor desde o início da série histórica da ANS, em 2001.

A crise se traduz na bolsa. No top cinco das maiores baixas do Ibovespa no ano, figuram as duas operadoras que fazem parte do índice: Hapvida, com queda de 45% até o final de abril, e a Qualicorp, com tombo de 32%. No acumulado de 12 meses, ambas desabam chocantes 70%.

O caos nos planos é apenas a ponta do iceberg; todo o setor de saúde sangra. No Ibovespa, o grupo hospitalar Rede D’Or afunda 23% no ano; fora dele, a Dasa, especializada em medicina diagnóstica, despenca 40%. O que explica essa crise?

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(Arte/VOCÊ S/A)

HAPV3, QUAL3: cenário sinistro 

É na pandemia que o tsunami começou a se formar.

Um dos indicadores mais importantes para analisar a performance de planos de saúde é a sinistralidade. Ele mostra a porcentagem da receita das empresas que é gasta para pagar as consultas, exames, cirurgias e demais procedimentos médicos de seus contratantes.

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Se a sinistralidade é de 80%, significa que a cada R$ 100 de receita, R$ 80 vão direto para pagar as contas dos beneficiários. Quanto mais alta a porcentagem, então, as margens de lucros vão ficando cada vez mais apertadas.

Quando chegou a pandemia, todos os procedimentos médicos que não eram urgentes ou absolutamente necessários foram postergados. As pessoas ficaram em casa, com medo de se infectar; ao mesmo tempo, hospitais focaram seus esforços no combate ao vírus. Daí que a sinistralidade do setor medida pela ANS caiu de 84% para 77% em 2020, o que significou mais lucro para as operadoras.

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Desde então, o índice só vem crescendo – e fechou 2022 em 89,21%. No terceiro trimestre, chegou a passar dos 90%.

Os motivos para a alta são muitos: no ano passado, a ANS aumentou o rol de procedimentos que os planos são obrigados a cobrir; os impactos da pandemia, incluindo sequelas da Covid, ainda existem; e o aumento das preocupações com saúde física e mental leva os brasileiros a se consultarem mais com nutricionistas, psicólogos e outros.

O principal, porém, é a retomada dos procedimentos eletivos que foram acumulados durante a pandemia. Todo mundo esperava uma onda de demanda represada, mas a duração e o impacto surpreenderam.

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Houve um erro de cálculo no meio do caminho. Com a sinistralidade baixa, essas empresas aproveitaram para reduzir os preços em busca de atrair clientes e ampliar o market share.  “Os planos de saúde erraram a mão: focaram muito em crescimento no começo do ano passado, com preços bastante agressivos”, diz Vinicius Figueiredo, analista de saúde do Itaú BBA. Quando perceberam o tsunami de sinistralidade chegando, já era tarde.

O resultado é que, agora, mais de 280 empresas do segmento – 43% do total acompanhado pela ANS – fecharam o ano no vermelho, mesmo considerando eventuais ganhos financeiros com os juros em alta.

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(Studio Oz/VOCÊ S/A)

Em defesa dos planos, reajustar os preços não é uma tarefa fácil. Primeiro porque os contratos são anuais, então as oportunidades para cobrar mais demoram a chegar. Segundo porque a regulação é pesada – o teto de reajuste para planos individuais ou familiares, por exemplo, é definido pela ANS (no ano passado, em meio à crise das operadoras, esse número foi recorde: 15,5%).

Nos planos coletivos e empresariais (que representam mais de 80% deste mercado), as operadoras ficam livres. Mas ainda assim é difícil: se o aumento for pesado, há sempre o risco de perder o cliente. Escolha de Sofia.

De fato, um outro motivo para crise é a dificuldade de conquistar mais contratantes. O número de pessoas com planos privados de saúde fechou em 50,5 milhões, o maior desde 2014. Ótimo. O problema é que, com a alta no custo de vida, a contratação de novos serviços se concentrou nas ofertas de menor valor, que trazem margens mais minguadas.

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Além disso, não faltaram pessoas e empresas trocando seus planos por outros mais baratos para aliviar o bolso. Isso aumentou o desequilíbrio nas contas das operadoras.

Agora os planos começam a cobrar mais caro para remediar a situação. Nos contratos que venceram nos primeiros meses do ano, o reajuste médio já foi de 11%, versus um IPCA anual abaixo de 5%. Analistas dizem que, em algum momento, a estratégia deve funcionar, e a sinistralidade voltará a cair.

A incerteza sobre quanto tempo isso vai levar, porém, é alta – todos concordam que o primeiro semestre seguirá feio. Nisso, muitos investidores decidiram se livrar dos papéis do setor nos últimos meses.

A Qualicorp é um exemplo desse cenário. A administradora de planos de saúde fechou 2022 com um portfólio total de 2,4 milhões de vidas, perda de 7,3%, com clientes fugindo dos reajustes salgados. Com isso, registrou um prejuízo líquido de R$ 79,9 milhões no quarto trimestre, revertendo o lucro líquido de R$ 50,6 milhões apresentado no mesmo período de 2021. No acumulado do ano passado, o lucro líquido recuou 74,6%, para R$ 92,8 milhões. Os números foram bem piores do que os esperados pelo mercado.

HAPV3: no contrapé

O cenário turbulento já seria o bastante para criar um inferno astral nas ações. Mas é pior: existe também uma questão de timing. Em 2020, com as margens mais folgadas e os juros baixos, o setor partiu para projetos de expansão, com grandes fusões e aquisições.

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Isso, é claro, aumentou o endividamento dos grandes players. E agora, com juros altos sobre essas dívidas mais a crise de sinistralidade, eles precisam lidar com as consequências.

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(Studio Oz/VOCÊ S/A)

“As empresas foram pegas no contrapé”, analisa Harold Takahashi, sócio da Fortezza Partners, assessoria especializada em fusões e aquisições. “Todas saíram investindo bastante, inclusive com essas aquisições transformacionais, a fim de terem suas companhias bem posicionadas para o futuro. E esse cenário de euforia cobrou seu preço.”

A Hapvida é o melhor exemplo desse infortúnio do destino. No início de 2022, sua fusão com a NotreDame Intermédica, outra gigante do setor, foi aprovada, dando início a uma titã da saúde: cada uma valia, na época, cerca de R$ 55 bilhões.

No anúncio, o mercado celebrou e muito a ideia. A sinergia dos negócios era óbvia: enquanto a Hapvida era forte no Nordeste, a Intermédica atuava no Sudeste. Ambas eram empresas verticalizadas – ou seja, não vendiam só planos de saúde, mas também operavam hospitais e clínicas para atender seus próprios clientes, ficando menos expostas aos preços de mercado.

Nos últimos anos, aliás, as duas também tinham investido em aquisições de pequenas empresas para fortalecer suas cadeias verticais. O casamento, enfim, tinha potencial para também cortar custos – eliminando áreas duplicadas, por exemplo.

Lindo. Mas a transição não ocorreu tão suavemente na prática. Ficou óbvio que havia um problema de gestão na lua de mel. A Hapvida era uma empresa de controle familiar, dirigida pela família Pinheiro, que ficou no comando da nova gigante; a gestão da Intermédica ficava por conta de executivos vindos do mercado financeiro. Até novembro de 2022, a operação seguiu com dois CEOs separados, o que o mercado estranhou.

Como resumiu o Bank of America em relatório no começo deste ano, a integração com a Intermédica “é mais difícil do que parecia no Excel”.

Não seria apocalíptico, caso essa necessidade de adaptação não coincidisse justamente com o inferno astral do setor. Quando os dois desafios se juntaram no balanço do quarto trimestre de 2022, a bomba detonou.

A atual Hapvida NotreDame Intermédica anunciou um prejuízo de R$ 316,7 milhões no 4T22, revertendo o lucro de R$ 35 milhões no 3T22 e de R$ 200 milhões no 4T21, quando a fusão com a Intermédica ainda não estava formalizada. A dívida líquida da companhia está em R$ 7,09 bilhões. Dá 2,45 vezes o Ebitda – acima daquilo que o mercado considera saudável (2x).

Mais: todos os analistas esperavam uma melhora na performance trimestral, incluindo na sinistralidade, que não só não veio como se revelou uma forte piora.

A recepção foi tão negativa que os papéis da operadora derreteram impressionantes 33% no pregão após o balanço – desabamento anormal para empresas que não foram pegas em esquemas de fraude ou coisa que valha. Do gigante de R$ 110 bilhões, a Hapvida-Intermédica agora só valia R$ 20 bi.

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(Arte/VOCÊ S/A)

A família Pinheiro não ficou testemunhando o naufrágio dos papéis de braços cruzados. Em março, a empresa anunciou uma operação de sales e leaseback que lhe rendeu R$ 1,25 bilhão de caixa. Basicamente, a Hapvida vendeu dez hospitais que eram dela e, automaticamente, os alugou. Os compradores foram a própria família Pinheiro. Ou seja: uma injeção de dinheiro na veia por parte dos controladores.

Em abril, a Hapvida fez uma oferta subsequente de ações (follow-on). A emissão e venda dos papéis levantou um total de R$ 1,06 bilhão. A família controladora entrou novamente na jogada, comprando R$ 360 milhões em novas ações.

Vale notar que a operação foi bem sucedida: as ações foram vendidas ao preço de fechamento do dia anterior (R$ 2,68), sem desconto. E 70% do volume financeiro veio de compras de quem já era acionista. Ou seja: um grau razoável de confiança no poder de recuperação da companhia.

De resto, a empresa já adiantou que quer retomar os bons resultados aumentando ainda mais a verticalização do seu negócio e, claro, reajustando os planos ao longo do ano.

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(Studio Oz/VOCÊ S/A)

RDOR3, DASA3: efeito dominó

Em paralelo aos ajustes, as operadoras de saúde procuram maneiras de economizar. Uma estratégia comum é adiar ou negar pagamentos para hospitais e laboratórios – prática conhecida como “glosa”. Ou seja, quando chega a conta de um procedimento para o plano pagar, as companhias tentam negociar descontos e adiar o prazo de pagamento.

Segundo a ANS, as glosas fecharam 2022 em alta: do valor total de procedimentos realizados no segundo semestre do ano passado, 18,16% não foram pagos até 60 dias após a sua realização. No mesmo período de 2021, esse número havia sido de 12,77%.

Isso prejudica as receitas dos hospitais, clínicas e laboratórios, o que, por sua vez, machuca fornecedores de produtos médicos, farmacêuticas, prestadoras de serviço. É um efeito dominó que compromete todo o setor de saúde.

A Rede D’Or, dona de 69 hospitais e 53 clínicas oncológicas, sofre desse mal. Analistas concordam que não há nada de errado com o negócio da companhia em si – conhecida por sua estratégia de expansão, com aquisições constantes. Mas a crise dos planos acaba apertando seus resultados.

“Todo mundo estava pensando que a margem da Rede D’Or convergiria para o número de antes da pandemia muito mais rápido. Mas a pressão das operadoras de saúde em cima dela fez com que não pudesse se recuperar da maneira que imaginávamos. E aí muita gente começa a questionar seus planos de expansão e o crescimento para 2024”, explica Vinicius, do Itaú.

A Rede D’Or não sofre só dos estilhaços; ela também atua ativamente no setor de planos de saúde e sente a crise na pele. Em dezembro do ano passado, o Cade aprovou a aquisição da SulAmérica, uma operadora tradicional do setor. Até o momento, a transição parece suave, mas a importação do negócio trouxe para dentro da casa a crise da sinistralidade.

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(Arte/VOCÊ S/A)

Outro setor afetado é o de medicina diagnóstica e laboratórios; aqui, a Dasa, líder do segmento, se destaca negativamente – seus papéis desabam 40% no ano. Controlada pela família Bueno, fundadora da Amil, a empresa enfrenta forte endividamento (dívida líquida de R$ 8,36 bilhões; 3,87 vezes o Ebitda) após um longo histórico de apostar em aquisições. Agora, tenta sair da lama à la Hapvida – colocou R$  1,67 bilhão no caixa em um follow-on, sendo que a própria família controladora entrou na jogada com R$ 1 bilhão, segundo fontes do Valor Econômico.

Também nessa seção do mercado está a rede de laboratórios Fleury, cujos papéis sangram menos em 2023 (-6%). Em abril deste ano, o Cade aprovou a fusão da companhia, que é a segunda maior do setor, com a Hermes Pardini, terceira colocada. O resultado do negócio será uma gigante de porte similar ao da Dasa.

De acordo com Harold Takahashi, da Fortezza Partners, o segmento de laboratórios e medicina diagnóstica, ao contrário da saúde como um todo, ainda está aberto para aquisições e fusões porque os grandes players concentram pouco market share – cerca de 30%.

No geral, só uma ação do segmento de saúde parece navegar os tempos atuais tranquilamente: a Oncoclínicas. Seus papéis sobem 56% no ano, e analistas não veem problemas na performance. É o papel citado nominalmente como o preferido de alguns, como os da XP, inclusive.

Faz sentido: a empresa, especializada em tratamentos oncológicos, lidera num mercado perene, alheio à maior parte das flutuações. Afinal, com o envelhecimento da população, a tendência é que diagnósticos de câncer só continuem crescendo. Notícia ruim para os humanos, mas boa para os papéis.

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