A avalanche que caiu sobre o varejo de moda

A nevasca de juros altos, bancos mais cautelosos na hora de dar crédito e uma feroz disputa com a concorrência asiática formam um cenário negativo para os papéis do setor. Renner (LREN3) , Arezzo (ARZZ3) e Grupo Soma (SOMA3) aparentam solidez para enfrentar a tempestade. Já Riachuelo (GUAR3), C&A (CEAB3) e Marisa (AMAR3) deparam-se com mais obstáculos. Entenda.

Por Júlia Moura | Ilustração: Gustavo Pedrosa | Design: Caroline Aranha e Brenna Oriá | Edição: Tássia Kastner
Atualizado em 24 ago 2023, 15h40 - Publicado em 14 abr 2023, 06h23
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 (Gustavo Pedrosa/VOCÊ S/A)
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A combinação de Selic na estratosfera e concorrência com players asiáticos formou uma bola de neve, que se abate sobre as varejistas da bolsa.

O problema vem desde o ano passado. Em 2022, o comércio como um todo avançou 1%, segundo o IBGE. Mas o setor de moda recuou 0,5%. A escorregada aparentemente discreta esconde um dado mais assustador: nos últimos três meses do ano, as quedas do segmento de vestuário superaram os dois dígitos, se saindo pior que os setores de móveis e eletrodomésticos, de compras igualmente adiáveis quando a grana está curta. 

Mas a nevasca começou a se formar antes, quando houve a alta vertiginosa da Selic, de 2% para 13,75%. Para essa fatia do comércio que depende da venda “no carnê”, juros altos são especialmente nocivos. Crédito caro significa que menos pessoas conseguem comprar a prazo. E empresas que oferecem crediário ficam mais suscetíveis a calotes.

Foi justamente na brecha do empobrecimento da população que as gigantes asiáticas abriram espaço no país. AliExpress e Shein, da China, e Shopee, de Singapura, vendem roupas a preços muito abaixo dos praticados pelas empresas brasileiras, que há anos vêm reclamando de “contrabando digital”, já que as estrangeiras supostamente fraudariam suas vendas para evitar os impostos.

Por lei, toda encomenda internacional deve ser taxada em 60%, com exceção de remessas entre pessoas físicas abaixo de US$ 50. Segundo o Fisco, para driblar o alto encargo, a varejistas asiáticas estariam enviando seus produtos ao Brasil como pessoas físicas, inclusive sob nomes falsos, ou, então, fraudando as notas fiscais para que elas fiquem abaixo desse valor. Para coibir essa prática, a Receita Federal vai acabar com a isenção em qualquer hipótese e exigirá informações mais detalhadas dos remetentes. Ainda não há data para o início da cobrança do imposto.

O fato é que a concorrência tem sido estraçalhadora. Só a Shein, inteiramente digital e com operação focada em vestuário, faturou R$ 8 bilhões aqui no ano passado, um aumento anual de 300%, segundo dados do BTG Pactual. O montante equivale ao faturamento anual da C&A (que tem 332 lojas espalhadas pelo Brasil) e supera em uma vez e meia a receita da Marisa (AMAR3), duas das varejistas com ações na bolsa e que têm como principal público a classe C, mais sensível à alta de preços.

Resolver o problema de uma concorrência supostamente desleal é importante para a saúde do mercado, claro. Mas não ataca os outros problemas do varejo. Um deles é o fato de que, além dos consumidores, as próprias empresas podem estar com menos acesso a crédito.

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Em janeiro, a revelação do escândalo contábil na Americanas (AMER3) impôs um prejuízo de mais de R$ 20 bilhões aos bancos – o mais afetado deles foi o Bradesco (BBDC4), que declarou R$ 4,9 bilhões em perdas com a varejista.

O caso os deixou ainda mais preocupados com a inadimplência e com menos espaço para empréstimos de risco. Assim, fica mais difícil para as varejistas com endividamento mais alto se refinanciarem. Ou seja, elas estão em um terreno escorregadio.

“Na pandemia, as companhias aproveitaram o juro baixo e se alavancaram bastante. Hoje, elas não conseguem honrar com seus compromissos”, diz Lia Canato, gerente regional de empresas na WIT Corporate, empresa que atua no mercado de crédito e na emissão de debêntures.

Segundo o BC, o efeito Americanas é “pontual”, o que significa que os bancos não devem secar o crédito. Credit Suisse e Goldman Sachs, porém, dizem que a situação pode piorar nos próximos meses.

Outro caminho seria buscar dinheiro com ofertas de ações e de debêntures, mas essa alternativa também está restrita. Empresas brasileiras conseguiram levantar apenas R$ 13 bilhões em fevereiro no mercado de capitais, o volume mais baixo desde maio de 2020.

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(Arte/VOCÊ S/A)

De uma crise para outra

Das seis varejistas de moda com ações na bolsa (Marisa, C&A, Guararapes, Renner, Grupo Soma e Arezzo), três enfrentam uma situação mais complexa.

O caso mais grave é o da Marisa (AMAR3). A empresa atende principalmente a classe C, nunca se recuperou completamente da recessão de 2015 e 2016 e enfileirou prejuízos desde então – 2018, com lucro de R$ 28 milhões, foi a única exceção.

A dívida da empresa soma R$ 560 milhões. Dessa bolada, R$ 470 milhões vencem nos próximos 12 meses e têm custo de até 18,84% ao ano.

Logo após o estouro do caso Americanas, a diretoria da Marisa renunciou e a companhia tem seu quarto CEO em uma janela de 12 meses. O atual, João Pinheiro Nogueira Batista, chegou em fevereiro. No mesmo processo, a companhia contratou a BR Partners e a Galeazzi Associados, mais uma comissão externa para análise de práticas contábeis, composta pelo Lefosse Advogados e pela Deloitte Brasil, para tentar colocar a companhia no azul.

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A arrumação à la Marie Kondo inclui a venda de R$ 380 milhões em direitos creditórios e o fechamento de 90 de suas 334 lojas. Há ainda a injeção de R$ 90 milhões na varejista por seus acionistas majoritários, a família Goldfarb. O dinheiro vai direto para a MPagamentos, braço da rede que concede financiamentos. Nos últimos 12 meses, a ação da Marisa cai 80% – trata-se de uma penny stock, de 60 centavos.

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Cartão é navalha

Para C&A e Guararapes (a dona da Riachuelo), o risco maior tem sido com suas operações financeiras. Cartão de loja, afinal, é parte importante do funcionamento do varejo de moda.

No caso da C&A (CEAB3), 22% das vendas são pagas por meio do seu cartão. Mas subsidiar o consumo significa arcar diretamente com o risco de calote. A operação financeira da varejista faturou R$ 255,8 milhões no ano passado, mas o equivalente a 25% da receita precisou ser separada para cobrir eventual inadimplência no futuro. Os atrasos chegam a 6,3% do total emprestado.

Afinal de contas, não são só os bancos que lidam com o aumento de calotes. A diferença é que eles têm mais estrutura para aguentar o tranco. Nas operações das varejistas, as provisões anti-inadimplência têm um impacto bem maior. Sem falar que, dentre as muitas dívidas do brasileiro médio, o cartão da loja de roupas não está exatamente no topo de prioridades de pagamento – contas de luz, internet e cia vêm na frente.

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Para além da menor rentabilidade com a operação financeira, a C&A também registrou queda de 8,8% nas vendas em mesmas lojas no ano passado, o que sinaliza a dificuldade de manter seus clientes ativos no período de menor renda. Nos últimos 12 meses, a ação da companhia cai 38%.

A Guararapes/Riachuelo (GUAR3) também atribui ao seu braço financeiro, a Midway, a piora nos seus resultados. A companhia separou R$ 1,2 bilhão para cobrir eventuais calotes em 2022. Caiu como uma bomba já que, um ano antes, a Midway havia sido a operação mais lucrativa da companhia, que é formada pelas fábricas de confecção de roupas, as lojas, a financeira, além de um shopping em Natal, centros de distribuição e uma transportadora.

O resultado foi uma queda de 88% no lucro líquido da empresa em 2022, para R$ 52 milhões. A dívida líquida cresceu 800%. Para tentar estancar o problema em período de crédito mais caro, a empresa anunciou o plano de fechar parte de suas confecções no Nordeste. As ações da Guararapes tombam 61%.

Às compras

O setor de moda também produziu empresas-fenômeno, companhias que aproveitaram a crise das concorrentes para crescer via aquisições. Em 2021, o Grupo Soma levou a centenária Hering por R$ 5,1 bilhões.

O Soma (SOMA3) é dono das marcas Animale e Farm, que atendem público de renda A e B, uma camada da população que tem cartões de crédito com limites generosos e não depende da loja para financiar suas compras. Isso significa que a empresa não precisa montar uma financeira, como fizeram as demais varejistas do Brasil.

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A companhia estreou na bolsa em 2020, no ciclo de IPOs da pandemia, e levantou R$ 1,8 bilhão. O objetivo era usar o dinheiro justamente para aquisições, como a da Hering. Isso significa que ela tinha dinheiro em caixa para a compra e mantém sua dívida sob controle (equivalente a 0,79 do Ebitda). “Cabe lembrar que, se considerarmos os recebíveis de cartão de crédito livres como caixa, dada a sua liquidez, estaríamos falando de caixa líquido ao final de 2022”, disse a administração da Soma no balanço da companhia.

Ainda assim, as ações da SOMA3 não escapam do momento complexo do varejo de moda e caem 46% no último ano.

Quem também estava de olho na Hering era a Arezzo (ARZZ3), que expandiu sua operação para além das marcas de calçados. Sob a operação AR&CO, colocou as marcas Reserva, Simples e UnBrand. E tem ainda a Baw, voltada ao público jovem. A compra mais recente foi a grife italiana Paris Texas, no início de março, por R$ 138 milhões.

Mesmo com a estratégia agressiva, a companhia tem mantido resultados sólidos. O lucro líquido saltou 44% entre 2021 e 2022. As ações ainda assim recuam 33% nos últimos 12 meses.

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(Gustavo Pedrosa/VOCÊ S/A)

Híbrida

A Renner (LREN3) é uma espécie de meio do caminho entre as empresas em dificuldades e as em expansão. A varejista gaúcha brilha ao atender um público que varia das classes A- a C+, e faz isso usando uma operação financeira, assim como C&A, Marisa e Riachuelo. E tem se saído melhor que as concorrentes.

Hoje, mesmo com R$ 992 milhões provisionados contra devedores duvidosos em sua operação de cartões em 2022, a companhia mais que dobrou o lucro, para o recorde de R$ 1,29 bilhão.

Analistas do Goldman Sachs destacam ainda que a varejista tem uma cadeia de suprimentos e logística diferenciada. Ao fim de 2021, por exemplo, a Renner concluiu a construção de um centro de distribuição em Cabreúva (SP), para baratear a operação.

A gestão disciplinada alçou a Renner ao posto de maior varejista de moda do país, com 10% de mar- ket share. Trata-se de um número impressionante para um mercado particularmente pulverizado.

“Ainda há muito espaço para consolidação, dada a alta fragmentação do segmento (10 maiores empresas com 25% do mercado) e informalidade, com mais de 40 mil pequenas indústrias no Brasil”, escrevem os analistas da XP.

A Renner está ciente disso e levantou R$ 4 bilhões na bolsa em 2021, numa emissão de ações. Da bolada, R$ 1,098 bilhões ainda estão no caixa, à espera de uma aquisição. Diante das compras das concorrentes, a percepção do mercado é de que a companhia  possa estar esperando demais. Em 12 meses, LREN3 cai 45%.

Seja como for, é difícil que a Renner perca o equilíbrio. O mesmo vale para Arezzo e Grupo Soma, respaldadas pelas clientes de maior poder aquisitivo. Só falta combinar com os investidores, que mantêm o pé atrás com todos os papéis do varejo de moda. Enquanto isso, a coleção outono/inverno das ações segue firme.

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