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É hora de se deixar seduzir pelas ações da Vale?

Com o minério de ferro nas alturas e lucros gordos, a mineradora vive um momento de redenção na bolsa. Mas isso não significa que ela já resolveu seus problemas ambientais – ou que conte com um modelo de gestão exemplar.

Por Tássia Kastner
Atualizado em 25 Maio 2021, 09h05 - Publicado em 10 Maio 2021, 08h00

A Vale está voando com vento de cauda. Lucrou R$ 30,6 bilhões só no primeiro trimestre deste ano, mais que os R$ 26,7 bilhões que levou um 2020 inteiro para conseguir. Tem mais. As ações se valorizaram 125% em 12 meses, e agora a mineradora reina soberana como a mais valiosa empresa da América Latina. São US$ 100 bilhões contra US$ 76 bilhões do Mercado Livre, a segunda colocada. As projeções para este ano são ainda mais otimistas. Analistas que acompanham a empresa esperam uma salto no preço dos papéis para até R$ 158 – uma valorização adicional de 45% sobre o preço do início de maio. Nada mau para uma empresa que já subiu 40% só neste ano.

A mineradora tem mesmo tudo para nadar de braçada. O principal negócio da Vale é o minério de ferro, de onde ela tira 87% do seu resultado. E o preço da matéria-prima foi às alturas no último ano, e recentemente passou dos US$ 200 por tonelada no porto chinês de Qingdao, que dá a referência internacional para o preço do produto. É um recorde na série histórica, iniciada em 2008, e mesmo que o preço desça da estratosfera – analistas esperam ao longo do ano uma queda de 20% em relação ao patamar atual –, vender minério ainda será mais rentável em 2021 do que já foi em 2020.

Falar de preços de commodities na China é algo bem abstrato. Pessoas normais não pensam em minério, petróleo ou cobre no dia a dia. Só que tudo isso é matéria-prima do que a gente consome. O minério de ferro vira o aço transformado em vergalhões para erguer prédios e pontes ou em chapas para fazer latarias de carros e geladeiras.

Quando a economia global encolhe, ninguém tem muito dinheiro para comprar apartamento novo ou trocar de carro. Era mais ou menos como o planeta estava no ano passado – exceto a China. O país está consumindo minério de ferro como não fazia há uma década, a evidência mais concreta de recuperação econômica após o controle do coronavírus por lá.

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Guindastes de transporte de minério de ferro. (Ricardo Teles - Vale/Divulgação)

Agora que a vacinação contra a Covid-19 avança no mundo rico, será como substituir uma pandemia de Covid por outra de crescimento. Os próximos “alvos” são os Estados Unidos, com mais de 50% da população vacinada, e a Europa. Toda essa gente vai precisar de minério lavrado por empresas como a Vale – só que não existem muitas Vales por aí.

É que a produção de minério de ferro é coisa de peso-pesado. Envolve explodir rochas imensas em busca do mineral que está no interior. Caminhões do tamanho de navios recebem os estilhaços de escavadeiras do tamanho de dragões. O material precisa ser limpo para atingir um certo grau de pureza (ou seja, conter mais ferro do que rocha inútil). Ao final de cada dia, no caso da Vale, temos a produção de mais ou menos 1 milhão de toneladas de minério de ferro. E depois tem de levar a carga para a China, em navios não muito menores que o Edifício Copan.

Resumo: é um negócio que exige muito investimento. A concorrência de verdade da Vale vem das australianas Rio Tinto, BHP e Fortescue. E ela briga de igual para igual. A companhia brasileira é a segunda maior produtora de minério de ferro do mundo, com 300,4 milhões de toneladas, atrás apenas da Rio Tinto (333,4 milhões).

Para investidores, porém, ela está sempre um passo atrás das concorrentes. Um dos motivos é geográfico, e isso tem tudo a ver com o fato de que a referência do preço do minério é para o produto entregue no Porto de Qingdao. Equivale a dizer que as siderúrgicas chinesas compram o produto com frete grátis – o preço do minério é um só, não importando se ele veio do Pará, a meio mundo de distância de Qingdao, ou da Austrália, ali pertinho. O frete, no fim, fica na conta do vendedor. E a Vale tem que pagar o transporte do Brasil até a China. Como as australianas não têm esse problema, o custo fica bem menor para elas, e a margem de lucro, maior. Por outro lado, o minério da Vale escapa um pouquinho dessa história de preço único. É que ele é considerado mais puro e com menor potencial poluidor, então vale um pouco mais que o minério australiano.

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Essas variáveis viram uma conta simples para analistas de ações. Quando comparam empresas de um mesmo setor, mas de países diferentes, eles escolhem um jeito de eliminar distorções regionais, como impostos, e olhar apenas a eficiência da empresa no negócio dela. Para isso, usam um indicador que divide o valor de mercado da companhia (aqueles US$ 100 bi da Vale hoje) pelo Ebitda (sigla em inglês para Lucros antes de Juros, Impostos, Depreciação e Amortização; grosso modo, o lucro operacional). É o EV/Ebitda.

Principalmente por conta do problema geográfico, a Vale tem historicamente um EV/Ebitda 10% a 15% menor do que o das concorrentes, uma sinalização de que investidores já viam uma desvantagem competitiva. E tudo bem. O mercado financeiro estava em paz com isso.

Só que, a partir de 2019, as ações da Vale passaram a ficar mais baratas que a de seus pares. Mesmo com as altas recentes, ela segue 50% abaixo da Rio Tinto, por exemplo. Boa parte dos analistas entende que se trata de uma injustiça, uma distorção. Em outras palavras, as ações da Vale devem subir ainda mais para diminuir essa diferença, e esse é o segundo argumento da Faria Lima para você comprar ações da mineradora. Só que a causa da “injustiça” tem nome. Brumadinho.

Tragédia repetida

Primeiro houve Mariana. Em novembro de 2015, a barragem da Samarco se rompeu e destruiu um vilarejo inteiro. Nove pessoas morreram, e o Rio Doce, que deu nome à Vale por anos, foi fortemente poluído pelos rejeitos de minério. A Samarco é uma empresa que tem como sócios a Vale e a BHP, e as ações da companhia brasileira até caíram, mas três meses depois estavam de volta ao patamar pré-crise. Uma espécie de passada de pano do mercado para os riscos da operação da Vale.

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Aí veio Brumadinho, menos de quatro anos depois. 272 pessoas morreram, 11 nunca foram localizadas, famílias ficaram desalojadas e mais uma cidade foi varrida pela lama de rejeitos. Rejeito é o que sobra depois que a empresa lava as peças de minério para tirar as impurezas. Como é poluente, essa lama vai para uma barragem. Em Brumadinho, a barragem estourou, causando o desastre. Como água corre sempre para o rio, foi no Paraopeba que a sujeira foi parar quando o líquido estourou a represa de dejetos e seguiu seu curso. Até hoje parte das famílias recebe água suja pelo excesso de minerais, pois o rio segue contaminado.

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Estação de tratamento no Rio Paraopeba, contaminado após o rompimento da barragem de Brumadinho. (Vale/Divulgação)

Depois da tragédia dobrada, ficou difícil defender a mineradora, e as ações derreteram. O lance é que mineração é uma atividade poluente por natureza. É do jogo. Dado que a humanidade não vive sem ferro, cobre, ouro, níquel e outros metais, o negócio é adotar políticas de redução de danos. E isso a Vale não fazia. Só após Brumadinho ela disse que fecharia outras barragens do tipo (que usam água e ficam acima de cursos de rios), para evitar novas tragédias. Dois anos e meio depois, as obras para extinguir o sistema de maior risco ainda não foram concluídas.

Só que essa foi uma resposta concreta da Vale ao estrago que causou. No fim, Brumadinho colocou a mineradora contra a parede e ela se viu pressionada a assumir publicamente compromissos ESG, a sigla para preocupações com questões ambientais, sociais e de governança corporativa. Questão de sobrevivência.

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“Imagina se você fosse o CEO ou do conselho da Vale depois de Brumadinho, depois de Mariana. Depois de dois acontecimentos tão pesados, ela não tinha muita alternativa. A empresa pode estar adotando algumas medidas, mas não quer dizer que ela esteja verde por dentro. Muitas vezes se vê que ela quase foi forçada a isso”, afirma Fabio Alperowitch, gestor da Fama Investimentos, especializada em ESG.

Enquanto se pintava de verde e tentava reduzir danos, a Vale passava por um momento de crescimento. Do ponto de vista financeiro, a tragédia quase não fez estragos.

Com tão poucos competidores de peso, a mineradora é protagonista na oferta global de minério. Os preços saltaram imediatamente após a tragédia por medo de que a paralisação de atividades levasse a uma escassez do produto. Nisso, mesmo vendendo menos, a receita da Vale foi maior em 2019 do que no ano anterior à tragédia. O lucro até encolheu, porque a companhia precisou reservar dinheiro para indenizar as famílias, fazer obras e pagar multas pelo impacto ambiental e social causado. Às famílias, a Vale pagou R$ 13 bilhões até o final do ano passado, metade do lucro de 2020. O acordo com o poder público de Minas Gerais para a reparação de Brumadinho foi de R$ 37 bilhões, pouco mais que o lucro do primeiro trimestre deste ano.

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Só que, no fim, isso virou um detalhe nas contas da empresa. Um ano depois, a Vale já havia recuperado seu valor de mercado. Claro que, enquanto isso, as concorrentes já haviam crescido – é de onde vem o gap atual. Por isso, dois anos depois de Brumadinho, a Faria Lima diz que a mineradora já aprendeu a lição e tem se preocupado com a agenda ESG. Então, seria hora de investidores darem uma nova chance a ela.

No Brasil, isso até colou. O problema são os grandes fundos estrangeiros, que se recusam a voltar. É que o exterior não comprou a ideia de redenção da Vale. A consultoria americana MSCI, uma das empresas que dão notas a companhias com base no compromisso delas com o ESG, rebaixou a Vale ao pior patamar possível em 2019, e desde então jamais reergueu a avaliação. Para a MSCI, a mineradora brasileira vai pior que as concorrentes em emissões tóxicas, lixo, uso da terra, questões trabalhistas, saúde, segurança, relacionamento com a comunidade e governança corporativa.

E Brumadinho nem é o pior. O que mais pesa hoje são questões de governança. Desde a privatização, a mineradora ainda tinha um acordo de acionistas que votavam em bloco e elegiam o conselho de administração à revelia dos minoritários. Esse bloco de controle era formado pela Previ (fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil), Bradespar (uma holding de investimentos do Bradesco), Mitsui e Litel (uma espécie de holding de fundos de pensão).

O acordo só terminou no final do ano passado.Agora os minoritários também votam, e há a possibilidade de eleger um conselho com gente que não é ligada aos majoritários. Só que a primeira votação para o conselho independente foi conturbada, com direito a erro de contagens de votos. Ou seja, mais um ponto de dúvidas sobre a capacidade da Vale de atender aos anseios do mercado. O alvo é montar uma administração independente e se tornar uma companhia sem controle definido – o mercado chama isso de corporation. Esse modelo de gestão é considerado melhor porque blindaria a companhia de controladores a fim de sobrepor interesses individuais aos negócios. Mas ainda falta chegar lá.

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Atalho

A Vale continua no esforço de recuperar sua reputação junto a investidores, principalmente os grandes fundos internacionais. Enquanto a confiança não volta, usa o pagamento de bons dividendos como chamariz. A mineradora, vale lembrar, nunca foi exímia nessa tarefa. Até 2020. No ano passado, ela pagou R$ 34 bilhões em proventos – quase o mesmo valor da indenização fechada com o governo de Minas.

Com o preço do minério na lua, a expectativa é de que os desembolsos sejam ainda mais generosos neste ano. Mesmo com a ação já a R$ 110, as projeções do mercado indicam um rendimento com dividendos de cerca de 10% em 2021 – muito acima do mercado; a média das empresas do Ibovespa é de 3,2%. Se confirmado, um acionista com R$ 50 mil em Vale tiraria R$ 5 mil em um ano.

É um pagamento tão polpudo que faz sentido defender o investimento na companhia. Só não dá para fingir que se trata de uma empresa sem problemas.

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