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Número de profissionais trans cresceu quase 300% nos últimos anos

Saiba por que isso é uma vantagem competitiva para as companhias e para os profissionais que trabalham nelas

Por Luciana Lima
Atualizado em 23 dez 2019, 13h36 - Publicado em 19 jan 2018, 16h00

Desde criança, Gustavo Prates, de 26 anos, se sentia como um homem. Embora tenha nascido, biologicamente, mulher, o jovem do interior paulista não se encaixava nos padrões femininos. “Eu sempre me sentia mais à vontade com os meninos, gostava de roupas masculinas e queria me vestir como eles. Mas meu pai, bem conservador, me enxergava como a mulher que eu não era”, diz.

Foi só em meados de 2016, quando já ocupava havia quase dois anos o cargo de gerente de contratos na IBM, que pensou que talvez pudesse ser transexual. E o questionamento veio por meio de uma colega de trabalho. “Não sabia muito sobre o assunto, então não me senti à vontade para responder ‘sim’ ou ‘não’ ”, afirma. Embora o desconhecimento impedisse Gustavo de admitir que era trans, a certeza de que algo nele era diferente fez com que a pergunta ecoasse e o jovem passasse a pesquisar mais sobre o assunto. No ápice da confusão que esse processo de redescoberta lhe trouxe, foi dentro da empresa que ele encontrou o apoio necessário.

Depois de buscar ajuda com a líder de diversidade da IBM, Gustavo foi encaminhado ao médico do trabalho da companhia, que indicou psicólogos especializados em casos de transexualidade. “A líder me falou de todas as possibilidades que poderiam acontecer, boas e más, mas me assegurou que, dentro da IBM, nenhum tipo de preconceito seria tolerado. Com isso, me senti mais à vontade para conversar com meu chefe direto”, afirma o gerente. “Depois que contei, ele me abraçou e disse: ‘Bem-vindo de volta’.” Casos como o de Gustavo, em que a identidade de gênero do transexual é respeitada, infelizmente ainda são exceção — nas empresas e na sociedade. 

Os números comprovam esse problema. Uma pesquisa do instituto Center for Talent Inovation, que entrevistou 12 200 profissionais ao redor do mundo, por exemplo, descobriu que 61% dos LGBTs brasileiros ouvidos escondem seu gênero ou sua sexualidade no trabalho. E há dados mais assustadores. De acordo com informações da União Nacional LGBT, o tempo médio de vida de um transgênero no Brasil é de apenas 35 anos. Isso coloca o país na posição de nação que mais mata transexuais e travestis no mundo. A cultura de violência e discriminação diárias também é responsável pela alta taxa de evasão escolar desse público. Segundo uma pesquisa da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), 82% dos transexuais e travestis não concluem seus estudos.

A baixa qualificação completa o quadro de exclusão enfrentado por essa parcela da população — e a prostituição, muitas vezes, surge como o único caminho. “Essas pessoas geralmente deixam a escola e a família por serem desrespeitadas ou sofrerem violência. Com isso, a formação fica comprometida, e esses indivíduos carecem de um currículo mínimo para competir por uma vaga de emprego. Assim, permanecem à margem da sociedade”, diz Marina Reidel, coordenadora-geral de Promoção dos Direitos LGBT do Ministério dos Direitos Humanos, de Brasília.

Sinais dos tempos

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Mesmo com esse dados, as pautas do movimento LGBT estão ganhando voz e avançando — ainda que lentamente. Tanto que é cada vez mais comum a existência de grupos de discussão sobre políticas de inclusão de homossexuais dentro das empresas e de adoção de benefícios para companheiros do mesmo sexo. No caso dos trans, o caminho a percorrer é muito mais longo. “Alcançamos bastante no LGB e pouco no T, pois essa população carrega um estigma maior. Quase todo mundo tem um amigo ou familiar gay, mas transexuais e travestis estão distantes de nosso imaginário”, afirma Ricardo Sales, consultor de diversidade, de São Paulo.

Ainda que tímida, existe uma busca pela integração de transexuais no mundo corporativo. Um exemplo vem do site Transempregos, voltado para a inclusão de profissionais trans no mercado de trabalho. Quando a plataforma foi criada, em 2014, apenas 12 companhias queriam usar seus serviços. Atualmente, já são 46 empresas — um crescimento de quase 300%.

Esse movimento é capitaneado, principalmente, pelas multinacionais que, desde a década de 90, replicam políticas para aumentar a presença de grupos minoritários em suas filiais brasileiras. Um exemplo é que, entre as 59 companhias signatárias do Fórum de Empresas e Direitos LGBTs, fundado em 2013 para reunir organizações que querem falar sobre o tema, só três são brasileiras. “Lentamente, essa discussão vem se ampliando para pequenas e médias empresas”, diz Reinaldo Bulgarelli, fundador do fórum, de São Paulo.

Estar inserido numa organização que já tinha diretrizes sobre o assunto foi muito importante durante o processo de readequação de gênero de Aaron Flynn, de 26 anos, supervisor de TI na multinacional Procter&Gamble, em São Paulo. Embora sempre tenha tido uma aparência mais masculina e soubesse que era diferente, foi apenas em 2014, quando já estava havia três anos na companhia de bens de consumo, que Aaron considerou ser transexual. “Eu encontrei, sem querer, o blog de um rapaz trans, e ele funcionou como um interruptor: quando comecei a ler, enxerguei tudo. Tive uma crise de choro e entendi que eu era transgênero”, afirma. 

Antes de fazer qualquer coisa, Aaron teve de superar o próprio preconceito. Apesar de ter todos os sintomas de disforia (quadro que se caracteriza pelo desconforto constante com o próprio corpo), ele se sentia inseguro em realizar mudanças estéticas temendo a reação de colegas e da família. “Quando falávamos sobre transexuais em casa, meus pais costumavam dizer que era impossível parecer com o outro gênero, não importava quantas cirurgias fossem feitas. Isso ficou na minha cabeça. Eu tinha medo. Preferia continuar sofrendo como menina a me tornar algo estranho que ninguém aceitaria”, afirma.

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Aos poucos, Aaron conseguiu se assumir. Primeiro, para os amigos mais próximos. Depois, para dois colegas da P&G, que na época lideravam o Gable (Gay, Ally, Bisexual, Lesbian and Transgender Employees), grupo de afinidades da empresa que discute questões LGBTs. Com o apoio deles, comunicou o RH, que o convidou a traduzir algumas normas globais da companhia sobre o assunto. “Trouxemos toda a política para cá. A postura da empresa foi a de entender e garantir que outras pessoas trans que venham a trabalhar na P&G se sintam confortáveis”, afirma. Hoje, ele se sente tão à vontade com o tema que se tornou líder do Gable, cujo número de participantes cresceu de 50 para 200 nos últimos dois anos. “Fazemos uma série de treinamentos, tanto para os ingressantes quanto para os funcionários de outras plantas. Queremos que qualquer pessoa LGBT dentro da companhia perceba que pode falar abertamente sobre seu gênero ou sua sexualidade aqui”, diz Aaron.

Questão de cultura

Um dos maiores obstáculos para os transexuais inseridos no mercado de trabalho se assumirem é o medo de demissão por causa da discriminação de colegas e superiores — mesmo que o preconceito seja velado. O combate a essa sensação deve ser feito ao construir um ambiente que zele pela segurança psicológica, um estado mental em que nos sentimos confiantes para ser quem somos.

Os trans precisam ter certeza de que não serão vistos com desconfiança nem sofrerão represálias por causa de sua identidade. “Esse conceito está diretamente ligado à diversidade, à criação de um meio em que as pessoas se sintam à vontade para se manifestar de múltiplas formas”, afirma o consultor Ricardo. Em algumas empresas, isso só será possível por meio de uma mudança cultural, o que depende do envolvimento da alta liderança, responsável por comandar, disseminar e inspirar os demais funcionários a se abrir para o diferente.

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Foi pensando nisso que o Carrefour passou a investir em diversas ações para reafirmar a pluralidade como um valor dentro do grupo desde 2011. De lá para cá, a  palavra “diversidade” foi introduzida no código de ética, foi criada uma plataforma para discutir temas relacionados às minorias e há um esforço contínuo de inclusão de grupos, como mulheres e transexuais. “Nós entende
mos que não bastava abraçar a causa, era preciso realizar ações concretas para mudar esse cenário, que passam pela contratação e por treinamentos internos”, diz Sylvia Leão, vice-presidente de gestão de gente do Carrefour Brasil.

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Por isso, a empresa começou a apoiar o projeto Conexão Varejo, da ONG Rede Cidadã, que oferece treinamentos para transgêneros e os encaminha a companhias parceiras. Desde 2015, o Conexão Varejo já formou 51 pessoas, das quais 17 foram contratadas pelo Carrefour, que emprega 30 transexuais no total. Paralelamente às admissões, todos os funcionários, incluindo a liderança, receberam treinamentos e cartilhas sobre o assunto. “Temos mais de 80 000 empregados e o papel de tratar de uma questão que será cada vez mais relevante”, afirma Sylvia.

Esse posicionamento também se revelou importante para atrair talentos. Nascida em Birigui, no interior paulista, Gabriela Valera, de 24 anos, só descobriu que era transexual quando ingressou na faculdade de comunicação social e teve contato com ativistas. “Eu tinha um desconforto com meu próprio corpo, mas não sabia o que era, pois faltavam referências de tran­sexuais no meu convívio.

Eu não sabia que essa era uma possibilidade”, diz ela, que vem de uma família muito religiosa e conservadora, que a chama pelo nome masculino até hoje. Seu processo de readequação começou em 2014, mas apenas em 2017 Gabriela se sentiu segura para levar a sério as mudanças estéticas que gostaria de fazer. Para isso, no entanto, precisava de um emprego. “Na minha cidade não existia um ambiente em que eu pudesse trabalhar sendo mulher. Eu só conseguia vagas informais, mas queria ter o direito de ser quem eu sou e trabalhar com o que escolhi”, diz.

Foi depois dos dez meses de busca por recolocação, após o fim de um trabalho temporário numa agência de publicidade, que Gabriela encontrou a postagem do Carrefour com vagas para transgêneros. “Desde a entrevista eu me senti muito respeitada. Quando vi a opção do nome social no crachá e na ficha de inscrição, pensei que pela primeira vez conseguiria ser livre dentro do trabalho”, afirma. Há cerca de um mês e meio ocupando o cargo de analista de marketing e sendo a primeira funcionária trans da área corporativa do Carrefour, a profissional se sente valorizada. “Desde o começo, meu gestor deixou bem claro que eu estava sendo contratada pela minha capacidade técnica e que meu gênero em nada mudaria como eu seria tratada lá”, diz Gabriela.

Vantagem competitiva

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Engana-se quem pensa que as empresas estão investindo na inclusão dos trans apenas por questões altruístas. Manter equipes diversas também é bom para o bolso das organizações. Prova disso é o dado divulgado no estudo Diversity Matters, da consultoria McKinsey, que mostra que, em média, as companhias com times plurais têm desempenho 57% melhores do que a indústria em geral.  Nas pesquisas de clima organizacional também é possível perceber bons resultados. “Os funcionários que acreditam que seu ambiente de trabalho é diverso costumam ser os mais engajados”, diz Ricardo. E engajamento está diretamente relacionado a produtividade, inovação e a mais felicidade no trabalho.

Na Atento, multinacional de telemar­keting, esses benefícios já apareceram. A empresa começou o trabalho de diversidade em 2010 e, hoje, tem 1 100 profissionais transgêneros utilizando nome social entre seus 70 000 empregados. “Por ter um quadro tão grande, temos a responsabilidade de representar a diversidade da população brasileira. Por isso, começamos a adotar medidas para incluir e empregar esse público”, diz Majô Martinez, vice-presidente de RH da Atento, de São Paulo.

Além de adotar o nome que os funcionários desejam nos crachás, nos e-mails corporativos e até no plano de saúde, a companhia patrocina ações de ONGs que oferecem formação profissional para transexuais em Salvador. Os treinamentos, que duram 16 horas, são ministrados pelos próprios empregados da Atento, que ensinam habilidades técnicas e comportamentais. No final do curso, os participantes saem com certificação e oferta de vagas na companhia. Neste primeiro ano de projeto, 50 trans foram capacitados pela empresa. “Além da melhora no clima, percebemos uma queda significativa na rotatividade, de 12% para 5%, e as avaliações de desempenho dos trans são melhores do que as dos outros funcionários. A explicação é que essas pessoas se cobram mais, já que precisaram se provar a vida toda”, afirma Majô.

Coragem para assumir

Embora uma parcela da população trans esteja marginalizada, há outro segmento composto de pessoas com um perfil social totalmente diferente: os qualificados que já estão no mercado mas se assumem mais tarde. “Existe uma ideia de que transexual é a travesti que está na prostituição. Mas não é assim. Cerca de 40% dos currículos que recebemos têm formação superior; e outros 30%, de nível técnico”, diz Marcia Rocha, advogada e fundadora do site Transempregos, de São Paulo. “Algumas empresas perceberam que essa mão de obra tem tudo para trazer bons resultados, mas é preciso que esse raciocínio se dissemine.”

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A percepção de que seu gênero em nada atrapalharia na carreira foi importante para que Maria Fernanda Hashimoto, de 27 anos, tivesse tranquilidade para assumir que é uma mulher trans em 2015. Na época, a engenheira biomédica trabalhava na GE e acreditava que não haveria apoio da companhia quando contasse que iniciaria o processo de rea­dequação. “Desde os 3 anos de idade eu sabia que era uma mulher. Eu me olhava no espelho e sentia que tinha algo errado ali. Ao longo da vida toda, lutei contra essa questão e há cerca de dois anos cheguei ao meu limite. Estava disposta a abrir mão da minha carreira e do meu diploma para ser feliz”, diz Maria Fernanda.

Quando contou para seu gerente, veio a surpresa. A multinacional não só a acolheu como também colocou várias equipes à sua disposição para ajudar no processo de redesignação de gênero. E ela ainda tirou uma licença de três meses para passar por cirurgias plásticas que custaram 120 000 reais. “A empresa viu que eu era um talento em potencial e que seria um desperdício se eu saísse por causa disso. Não sofri preconceito, ao contrário. A aceitação foi enorme, o que me deixou feliz”, afirma Maria Fernanda.

Um ano depois, veio a confirmação de que a identidade de gênero não afetaria seu desenvolvimento profissional: ela recebeu uma proposta da multinacional de biomedicina Becton Dickinson, onde hoje é especialista em assuntos regulatórios. Na entrevista para a vaga, Maria Fernanda disse que é trans, algo que os recrutadores encararam com naturalidade, embora seja a única funcionária assim na companhia. “Tinha a sensação de que eu só teria emprego na GE, porque eles me trataram tão bem. Mas, por causa da Becton Dickinson e de outras propostas de emprego que já recebi, parei de ter medo e vi que o mercado me valoriza”, diz.

Processo interno

Diversas pesquisas apontam que os ­millennials, jovens de até 30 anos, estão de olho em como as organizações se posicionam perante questões sociais — alguns, inclusive, estão dispostos a pagar mais por um produto caso se identifiquem com determinada bandeira que uma empresa levanta. Aí entra outro aspecto importante da diversidade: atrair consumidores e empregados em potencial que se conectem com o tema. É o que está acontecendo na Pernod Ricard, fabricante de bebidas como Absolut Vodca e Passport.

Embora tenha uma sinergia natural com a causa LGBT, a multinacional francesa começou a se posicionar com mais força sobre a questão em 2017. “Queríamos sair do discurso para gerar inclusão”, diz Luana Iurillo, gerente de marketing da Pernod Ricard no Brasil. Para isso, a saída foi oferecer, gratuitamente, cursos de bartender para transexuais, em parceria com as ONGs Casa 1 e Transempregos. A ideia é que os profissionais trabalhem nos mais de 170 eventos realizados pela companhia a cada ano. Além disso, a consultoria Pajubá treinou os funcionários da empresa para que eles se sensibilizem pelo assunto e disseminem o tema. A próxima etapa é incluir os transexuais no escritório. “Estamos criando um ambiente para que essas pessoas fiquem conosco por muito tempo”, afirma Luana.

Ter a consciência de que as ações de marketing devem ser acompanhadas de iniciativas concretas é fundamental para que as mudanças aconteçam. Caso contrário, o perigo é que tudo fique no discurso. “Muitas organizações dizem para o mercado que são plurais, mas não promovem transformações internas”, diz Liliane Rocha, da consultoria de gestão Kairós, de São Paulo. Além de perder dinheiro, já que comprovadamente equipes mais diversas se complementam e trazem mais resultados, essas empresas também correm o risco de perder talentos, que se sentem enganados por um discurso vazio. “Quando deixamos de contratar um profissional qualificado porque ele é trans, invertemos a lógica do capitalismo. Por não querer lidar com questões menores, como crachá ou banheiro, perde-se competitividade”, diz Liliane. No fim, a lição é muito simples: quando as pessoas se sentem livres para ser elas mesmas, dentro e fora das empresas, todo mundo ganha.   

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