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O que fazer quando seu chefe não dorme

Como lidar com gestores que telefonam, enviam e-mail e mandam mensagens de WhatsApp em plena madrugada?

Por Luiz Guilherme Gerbelli
Atualizado em 23 dez 2019, 11h10 - Publicado em 21 Maio 2018, 16h53

Carla Sarni, presidente do grupo Sorridents, em 2015 reuniu os diretores da empresa e foi direto ao ponto. Quem estivesse num momento pessoal atribulado, sem tempo para se dedicar ao dia a dia da companhia, poderia pedir demissão. Os que optassem por isso receberiam um salário a mais de bônus. Naquele ano, o Brasil enfrentava os primeiros sinais da recessão econômica e a Sorridents lidava com um agravante: o endividamento bancário, que precisava de atenção. “Eu disse que a crise teria de ficar da porta para fora. Permaneceria na empresa quem acreditasse no propósito”, diz a executiva.

Passados três anos, a jornada diária de Carla continua intensa e chega a cerca de 15 horas. Toda vez que contrata um profissional para o alto escalão, avisa da rotina com antecedência. “Não espero que os diretores peguem a bolsa e larguem o problema para trás”, afirma. “Só trabalha comigo quem tem perfil e postura de dono.”

A rotina da executiva e de sua equipe ficou ainda mais atribulada quando ela se mudou com o marido e os dois filhos para os Estados Unidos em 2016. Agora, Carla administra o grupo (que tem 240 clínicas odontológicas em 16 estados brasileiros) viajando de um país para o outro. Às vezes, por causa do fuso, ela acorda às 2 horas da manhã para participar de reuniões virtuais com executivos no Brasil — que precisam responder ao chamado da chefe. “Eu acredito na liderança pelo exemplo. Não exijo das pessoas aquilo que não faço. Quando estou no Brasil, sou a primeira a chegar ao escritório e a última a sair”, diz Carla. Atitudes como a de Carla são recorrentes nas empresas. Seja por ter muito a fazer, seja por escolha própria, seja por dormir pouco por natureza, cada vez mais líderes acham que os subordinados devem estar sempre alerta. O problema é quando esse roteiro extrapola os limites profissionais e o funcionário tem a vida pessoal invadida. Essa tênue fronteira se rompe com mensagens de e-mail ou WhatsApp e até telefonemas fora do expediente.

Esse tipo de atitude se agravou nas últimas duas décadas, quando as tecnologias digitais possibilitaram a conexão dos trabalhadores com seu emprego. Mesmo longe do escritório, eles acessam os e-mails pelo celular, participam de grupos de discussão com colegas e são “amigos” do patrão em redes sociais.

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A demanda constante é tão grave que levou a França a estipular limites. Em janeiro de 2017, o governo colocou em vigor uma norma que dá direito ao funcionário de ignorar e-mails ou mensagens de celular em horários de folga. A iniciativa, batizada de “direito de se desconectar”, baseia-se em estudos que provam que o trabalhador pode sofrer de estresse, síndrome de burnout, doenças do sono e até mesmo problemas de relacionamento quando submetido a esse tipo de situação.

Se as consequências são ruins, por que os gestores agem assim? Especialistas em cultura organizacional elencam os principais motivos: o chefe é o dono da empresa e está no modo “tudo ou nada”; ele está no momento de alavancar a carreira e, portanto, tem de mostrar resultados; a companhia vive um período de crise ou reconfiguração, o que exige uma dedicação adicional de quem está no comando. “O modo como se age depende do momento da carreira e do estilo pessoal”, diz Leni Hidalgo, professora de liderança no Insper. “Só a experiência vai ajudar a perceber se o líder está passando do ponto.”

Edson, nome fictício de um administrador de 36 anos, usa a experiência de 12 companhias por onde passou para aguentar a atual chefe, executiva numa empresa do setor alimentício que envia frequentemente e-mails de madrugada. “Já tive tantos superiores com o mesmo perfil que aprendi a lidar com a situação. Hoje, foco aquilo que é urgente”, afirma. “Se é algo possível de ser adiado, escrevo que resolverei no dia seguinte, durante o expediente. Foi a forma que encontrei para ter um meio-termo.”

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Glamour e resultado

Do CEO da Apple, Tim Cook, que acorda às 3h45 da manhã para responder aos e-mails, à apresentadora americana Oprah Winfrey, que afirma se sentir bem com apenas 5 horas de sono, ser um chefe insone virou sinônimo de sucesso. O fenômeno levou o Wall Street Journal a cunhar o termo sleepless elite (“elite insone”, numa tradução livre) para se referir a esse pessoal (somente 3% da população, segundo estudos) que precisa de poucas horas de sono. O próprio Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, diz repousar apenas 4 horas e já insinuou publicamente que alguém que durma 12 horas jamais será tão bem-sucedido quanto ele.
No Brasil, quem mais encampa essa ideia é o ex-prefeito de São Paulo João Doria (PSDB), hoje pré-candidato ao governo do estado. Em 2016, durante sua campanha para a prefeitura, ele fez questão de reforçar que imprimiria seu ritmo de 16 horas de trabalho na iniciativa privada à gestão pública. “Minha rotina é intensa. Na área pública, passei a trabalhar inclusive aos sábados e domingos o dia todo”, diz Doria em entrevista a VOCÊ S/A, ao reconhecer que dorme no máximo 4 horas por noite.

Embora o ex-prefeito negue exigir as mesmas 16 horas de seu secretariado, parte dele chegou a reclamar do hábito. A vereadora Soninha Francine (PPS), que ocupou o cargo de secretária de Assistência e Desenvolvimento Social do município por cerca de quatro meses, relata que sua jornada começava às 7h30 e terminava depois das 21 horas. Apesar do expediente puxado, ela diz que as horas a mais não eram o problema. O que a incomodava era a ansiedade de Doria. “A impaciência dele é louvável em alguns aspectos, mas, no caso da assistência social, não se muda a vida das pessoas de uma hora para a outra.”

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Sem contrapartida

Para o pesquisador e gerente do Núcleo de Desenvolvimento de Liderança da Fundação Dom Cabral, Anderson Sant’Anna, há dois estilos de chefia. O tipo A, que assume mais tarefas do que dá conta, costuma ser perfeccionista, exige um grau de comprometimento da equipe semelhante ao seu e busca cumprir o serviço num curto espaço de tempo — custe o que custar. E o tipo B, mais tranquilo, que procura um equilíbrio entre a vida pessoal e a profissional — e que, aliás, pode ter a mesma produtividade de um vigilante por saber gerenciar melhor o time e distribuir as tarefas. “A imagem do líder que gera resultados e produz impacto se associou ao tipo A, e as empresas começaram a contratar gente com essas características, que coloca o trabalho no centro de sua existência”, diz Anderson.

À medida que a carreira avança rumo a cargos mais altos, mais difusa fica a fronteira entre emprego e vida pessoal; mais horas se passam na companhia — e menos se dorme. Na alta gestão, executivos se comprometem com resultados agressivos e entregam boa parte de seu dia à organização. Em troca, recebem remuneração e bônus polpudos. O próprio Tim Cook, presidente da Apple, ganhou 13 milhões de dólares em 2017 — 3 milhões em salários e o restante em bonificação, segundo o site Business Insider. O problema é que profissionais de médio e baixo escalão não veem engordar suas contas bancárias na mesma proporção. E, quando precisam realizar alguma tarefa em plena madrugada,  sentem-se lesados. “O pagamento não compensa a dedicação integral à companhia”, afirma Adriana Prates, CEO da consultoria de recrutamento Dasein e conselheira da Association of Executive Search and Leadership Consultants (Aesc), associação internacional de consultores de liderança, com sede em Nova York.

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Ou seja, espalhar esse tipo de modus operandi às outras camadas da organização é um erro. E não só pelo fator dinheiro. Quando não conseguem dar atenção à vida pessoal, trabalhadores perdem a motivação. Rendem menos. No livro Rest: Why You Get More Done When You Work Less (sem tradução no Brasil), Alex Pang, pesquisador e famoso conselheiro de negócios do Vale do Silício, defende a ideia de que a jornada de trabalho não deveria exceder 4 horas diárias. Para comprovar sua tese, ele reúne décadas de estudos científicos que provam que o cérebro humano não funciona plenamente por horas a fio e traz exemplos de personalidades bem-sucedidas. Segundo o autor, Charles Darwin, responsável pela teoria da evolução e autor de 19 livros, atuava apenas 3 horas pela manhã e mais 1 hora no final da tarde. No restante do tempo, Darwin lia, caminhava e convivia com a família.

Como lidar?

Apesar dos argumentos científicos sobre a necessidade do repouso e sobre a ineficácia de trabalhar demais, o fato é que chefes insones e workaholics inveterados continuam ocupando espaço nas empresas. Então, o que fazer quando o celular apita no meio da noite?

Especialistas em carreira sugerem uma conversa logo de cara, demarcando limites e cortando o mal pela raiz. Numa primeira situação, o ideal é que o funcionário ignore a mensagem que chegou fora do expediente. Se for questionado pelo chefe, a recomendação é justificar de maneira sincera e com exemplos concretos de por que deixou de atendê-lo — “nesse horário eu estou colocando meu filho para dormir” ou, então, “você ligou no meio da sessão de cinema e não pude atender”. No bate-papo com o gestor, o profissional deve dizer que estava num compromisso pessoal e que, ao ficar de vigília fora do horário sente-se desgastado, o que o torna menos produtivo.

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Se não funcionar, o passo seguinte é procurar o departamento de recursos humanos. “Muitas vezes, esse tipo de líder não enxerga a situação. É um traço do comportamento desse perfil não se autoconhecer”, afirma Anderson Sant’Anna, da Fundação Dom Cabral. Se o problema for recorrente com um único patrão, vale pedir transferência de área.

Agora, se nada surtir efeito, a orientação, sobretudo em tempos de crise, como atualmente, é seguir o ritmo do líder enquanto arranja outro emprego. “Um funcionário raramente muda o chefe. Então, minha sugestão é que ele entre no jogo, fazendo o que é pedido, enquanto busca uma alternativa de carreira melhor”, afirma Adriana, da Dasein.

É o que tem feito Renata, também nome fictício de uma advogada de 33 anos. Hoje, ela faz de 2 a 4 horas extras diariamente, sem contar os inúmeros e-mails que recebe do superior à noite. “Ele demanda muito porque, sozinho, não consegue responder a tudo o que é pedido”, diz Renata, que trabalha numa companhia de tecnologia. Como depende do emprego, criou uma estratégia: passou a se desconectar completamente quando tem um tempo livre. “Como eu já tive chefes melhores nessa empresa, vejo este momento difícil como um ciclo. Sei que vai passar.”

Renata pode estar certa. Segundo especialistas, a tendência é que gestores desse tipo percam espaço no mundo corporativo. Com os millennials (jovens na faixa dos 30 anos) chegando ao topo da hierarquia, essa deve ser uma realidade cada vez mais distante. “A geração Y busca melhor qualidade de vida e não aceita essas condições de trabalho; prefere pedir demissão e empreender”, diz Adriana.

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