Cash-stuffing: por que guardar grana em envelopes é furada
Vendida nas redes sociais como uma forma de economizar dinheiro, a ferramenta é antiquada. E pode, inclusive, gerar o efeito contrário.
oderia ser uma frase dita por uma pessoa na década de 1930 – primeira red flag desta reportagem – mas não. Carinhosamente apelidada de cash-stuffing, a ferramenta jurássica de rechear envelopes de dinheiro e guardá-los embaixo do colchão ganhou um novo gás nas redes sociais. Cortesia do TikTok, onde o assunto já acumula estonteantes 1 bilhão de publicações.
A ideia é simples: você tira uma parte ou tudo da sua conta do banco, enfia numa espécie de fichário cheio de envelopes, que fica fora do seu campo de visão. As adeptas da tendência – em sua maioria, mulheres jovens – repartem o dinheiro entre os gastos do mês, como comida, lazer, produtos de higiene pessoal e até objetivos de longo prazo, como casa própria ou viagens.
Dessa forma, seria possível ter um controle maior de onde o seu dinheiro está indo, ter mais organização financeira, e reduzir o uso do cartão de crédito – tudo isso sem precisar apelar para uma planilha de gastos. De quebra, ainda dá para fazer um ASMR esteticamente prazeroso preenchendo seu fichário com a grana. O melhor dos dois mundos.
Créditos onde créditos cabem: o esforço para ter maior controle financeiro é louvável. Especialmente no Brasil, onde 6 a cada 10 brasileiros estão endividados. Mas, apesar do cash-stuffing impor limites no curto prazo, o buraco que abrirá no seu bolso a longo prazo é preocupante. Vamos entender.
Isso é globalização
Qual o nome do seu gerente do banco? E a agência mais próxima da sua casa, sabe onde fica?
Se você não souber responder nenhuma dessas perguntas, sem galho: a maior parte de nós não sabe mais, mesmo. Cortesia da transformação digital, que mudou completamente a forma como lidamos com tudo relacionado a dinheiro.
Não é ruim que você não tenha que ir presencialmente em uma agência cada vez que precise resolver um problema. Também não é ruim que você não tenha que ligar para o seu gerente toda vez que queira contratar um serviço. A digitalização desses serviços nasceu para que as transações e produtos financeiros ficassem disponíveis para nós de maneira mais rápida, prática e eficiente.
Isso é bom, mas tem seus problemas. A facilidade com que temos acesso aos nossos fundos – e a crédito também – abre margem para o endividamento. Fazer um Pix demora menos de 30 segundos, aumentar o limite do cartão, idem. Não à toa, aquele dado apocalíptico que citamos ali em cima, com 60% dos brasileiros enroscados nessa lama.
Por isso, faz sentido que técnicas como o cash-stuffing existam e ganhem popularidade. Você consegue ver nitidamente quanto gasta e o quanto tem guardado. Sem contar que, quando acaba o dinheiro, acaba mesmo: ao contrário da conta do banco, não dá pra pedir um chorinho extra a juros estratosféricos. Duro, sim. Endividado, mais difícil.
A digitalização desses serviços nasceu para que as transações e produtos financeiros ficassem disponíveis para nós de maneira mais rápida, prática e eficiente.
O que você perde
Beleza. Apesar da análise macro do porquê a técnica ganhou força, isso não quer dizer que a técnica seja eficiente no longo prazo. Muito pelo contrário.
O primeiro ponto importantíssimo: dinheiro embaixo do colchão é dinheiro que está, via de regra, perdendo valor. Especialmente porque não recai sobre ele nem a taxa de juros, em um país em que ela está alta no comparativo mundial (atualmente, em 10,75% no ano).
No último relatório do Banco Central, estimou-se que, em 2024, a Selic ficará em 11,5%. Isso significa que, se você guardou R$ 10 mil nesse esquema de envelopes, perdeu a chance de acumular até R$ 1.150 com essa grana, tendo investido ela em um título do Tesouro, em CDBs, ou em debêntures que acompanham essa taxa. Isso sem contar outras opções de renda fixa que levam em consideração o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), por exemplo.
Os aplicativos de bancos também te oferecem opções de acúmulos de milhas, cashbacks, promoções exclusivas em eventos e produtos de parceiros. Pesquisando com eficiência, você consegue encontrar cartões e instituições financeiras com benefícios aliados aos objetivos — não o contrário.
Outro impacto é no seu acesso a crédito. Quando você movimenta sua conta bancária com responsabilidade, os bancos podem ter acesso ao seu bom histórico financeiro – o que abre portas na hora de financiar um carro, uma moto, até consumar o sonho da casa própria. Novamente: nem de todo o mal vive o digital.
Por fim, as questões mais práticas. Cada vez menos gente aceita e usa dinheiro como forma de pagamento. É claro para especialistas que, se as coisas continuarem tomando esse rumo, as cédulas e moedas se tornarão obsoletas. Reduzir o espaço amostral disponível para você fazer suas compras também significa que nem sempre vai poder optar pela opção mais barata – justamente o que você estava tentando evitar.
E andar com essa quantidade de grana é perigoso. Não adianta. Se você tiver esse dinheiro roubado, é praticamente impossível reaver os valores – ao contrário de um roubo de cartão, em que existem dezenas de alternativas para bloquear as tentativas e para conseguir o valor de volta. Mais um ponto para a tecnologia.
Finanças pessoais dão trabalho – e tá tudo bem
Não tem jeito: se você tem perfil gastador, não tem como escapar das planilhas. Você vai precisar reavaliar a maneira como gasta seu dinheiro, criar limitações (que a tecnologia te oferece, como guardar dinheiro em caixinhas ou em investir em aplicações que só podem ser sacadas depois de um tempo) e conferir regularmente o seu saldo. Isso tudo no aplicativo do banco de sua escolha.
Não é fácil, nós sabemos. Temos uma seção do site inteira dedicada a isso, não à toa. Mas vale a pena. Muito mais do que pular em uma trend que reavive mecanismos pré-históricos de finanças pessoais, que não levam em conta as particularidades de cada pessoa e dos seus objetivos e limitações financeiras. Seu bolso agradece.