Finanças pessoais

Parece cocaína, mas é day trade

Não falta quem entre na bolsa com a expectativa de transformar R$ 20 em R$ 1 mil. Entenda como isso deixa 9 em cada 10 usuários no prejuízo – viciados.

por Tássia Kastner, Alexandre Versignassi, Luciana Lima Atualizado em 6 dez 2023, 19h23 - Publicado em
14 out 2020
16h32

Texto: Tássia Kastner, Luciana Lima e Alexandre Versignassi | Design: Juliana Krauss | Ilustrações: Estúdio Caxa

Segunda-feira. Day trader que é day trader acorda cedo. Faz exercícios, prepara um suco verde com água de coco e liga o computador. É um profissional focado, e tudo precisa estar pronto para a abertura do mercado de dólar, às 9 da manhã.

Os preços do dólar no home broker começam a piscar, variando o tempo todo. Nosso day trader aposta que a moeda americana vai subir bem nos próximos minutos e faz uma compra a R$ 5,40. O dólar sobe e vai a R$ 5,50 em meia hora. Bora vender. R$ 1 mil de lucro e meta do dia cumprida. Fim de expediente, às 9h30 da manhã.

Terça-feira, 10h30. O Ibovespa cai de 100 mil a 98 mil pontos. Mas o nosso trader já estava preparado. Meia hora antes ele tinha apostado na queda do índice. Quanto mais a bolsa tombasse, melhor seria para ele. Só esses 2% de queda, então, renderam R$ 1,2 mil. Meta batida com louvor. Está chovendo lá fora. Partiu Netflix.

E segue assim a vida do nosso day trader. R$ 1 mil a cada dia útil. R$ 20 mil por mês sem fazer nada que dê para chamar de trabalho.

Bom demais para ser verdade? Claro. É impossível ganhar dinheiro na bolsa todos os dias sem ter nascido com o dom de prever o futuro. Mesmo assim, cada vez mais gente tem tentado a sorte no day trade. É o ato de comprar e vender dentro de um único pregão, geralmente de forma “alavancada”, ou seja, sem precisar ter o dinheiro para entrar no esquema, como vamos ver em detalhes mais adiante.

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De acordo com a CVM, mais de 300 mil pessoas fizeram ao menos uma operação desse tipo em 2020 – um crescimento de 50% na comparação com 2019. E este também é o ano em que as buscas por “day trade” dispararam no Google e a “profissão day trader” entrou em uma lista do LinkedIn como uma das grandes carreiras do futuro.

Isso acontece porque muita gente está ganhando dinheiro com day trade. Mas não são os day traders. É gente que lucra com cursos picaretas de como ficar rico da noite para o dia, e as próprias corretoras, que ganham um cascalho a cada operação de compra e venda que você faz.

Hora de entender as entranhas dessa armadilha.

Como a mágica acontece

Curso de day trade virou tutorial de maquiagem: está cheio de youtuber metido a professor. Eles e elas dizem que bastam três coisas para começar: conta em corretora (abra rapidinho no celular), gráficos para acompanhar a variação de preços (tem no home broker) e quase nenhum dinheiro. Uns R$ 20 já são o suficiente para entrar na jogada.

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A bolsa serve para você comprar ações de empresas. E isso tende a ser um bom negócio para o longo prazo. A grande ferramenta do day trade, porém, não são ações. São os chamados minicontratos – instrumentos que permitem ganhos de 20%, 30%, 5.000% em questão de minutos, e que, por outro lado, também têm o poder de fazer com que o seu dinheiro desapareça para sempre em questão de segundos.

Funciona assim: você quer ir para a Disney em dezembro. Como Mickey e Pateta não aceitam reais, você vai precisar de dólares. Pessoas comuns, filhas de deus, fazem isso numa visita à casa de câmbio. Mas o mercado financeiro oferece uma outra maneira de fazer a mesma coisa, com uma vantagem. Você sabe quanto vai estar o dólar em dezembro? Não. Nem nós.

Então sempre vai haver alguém (geralmente uma instituição financeira) com dólares na mão a fim de vender hoje para entregar só em dezembro. Que vantagem esse alguém leva? Bom, se o dólar cair daqui até dezembro, ele vai se dar bem. Ele fecha com você de vender os dólares a R$ 5,40. Se em dezembro a moeda do Mickey estiver a R$ 4,80, o sujeito se deu muito, muito bem. Quem vende dólar hoje para entregar depois, então, é sempre alguém que aposta na queda do dólar.

Mas você não está a fim de fazer aposta. Quer garantir a viagem. Se em dezembro o dólar estiver a R$ 6,40, fuén. Rolê miado. Então melhor garantir as verdes a R$ 5,40. O que você pode fazer, então? Dá para entrar na bolsa e comprar a R$ 5,40 do sujeito que está vendendo dólar para dezembro neste momento na esperança de lucrar com uma queda. Pronto. Agora, se a moeda americana subir, não tem mais galho. O dólar pode estar a R$ 6,40 no fim do ano e tudo certo. O outro sujeito vai aceitar que perdeu a aposta, e cobrir a diferença para você.

É assim que funciona o “mercado futuro” de dólar. “Futuro” porque a base do negócio é uma especulação, a de quanto o dólar estará valendo lá na frente. E o que você negocia nesse mercado não são os dólares em si. São só os contratos para comprar uma certa quantidade da moeda por R$ 5,40 (ou seja lá o quanto for) em dezembro (ou seja lá em que mês for). Daí os “minicontratos” de que falamos lá atrás.

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Só tem um detalhe. O grosso desse mercado não é formado por gente que pretende ir à Disney. O que você tem são multidões apostando na alta e outras multidões apostando na baixa. Os contratos são as fichas nesse cassino. E a bolsa organiza a ciranda.

Vamos lá. Você adquire um contrato para comprar US$ 10 mil em dezembro a R$ 5,40. Você vai gastar R$ 54 mil para isso? Não. Para entrar nessa jogada, basta fazer um depósito de R$ 20 na corretora.

Em troca dessa miséria, a corretora te entrega um presentão: o equivalente a US$ 10 mil em reais para você operar no mercado de câmbio. Se você entrar com o dólar para dezembro a R$ 5,40, então, terá R$ 54 mil no seu home broker. Isso não é exatamente um dinheiro que a corretora coloca na sua conta. A grana serve exclusivamente para você fazer apostas com dólar. É como se você entrasse num cassino, pagasse R$ 20, e o caixa te desse R$ 54 mil em fichas.

Você ganha o poder de operar uma quantia vultosa de dinheiro. Dinheiro que não lhe pertence. É só uma linha de crédito da corretora. Na prática, porém, é igual operar com dinheiro emprestado. O nome disso é alavancagem.

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Mas e aí? Como é que faz dinheiro com isso? Bom, o valor do dólar muda a cada minuto, certo? Então. Isso não vale só para dólar que você compra na casa de câmbio. Vale também para o mercado futuro. O preço do dólar para dezembro muda a cada minuto também – tal como o para janeiro, o para fevereiro…

Se você entrou a R$ 5,40 e ele pula para R$ 5,50 em uma hora, o que acontece? Parabéns: pode vender o seu contrato e embolsar os dez centavos de diferença. Opa. Dez centavos, não. Lembra que o tal contrato envolve US$ 10 mil? Então. Nessa subida, seu lucro foi de R$ 0,10 vezes 10 mil. MIL REAIS. Má oêê!

Nessa subida, seu lucro foi de R$ 0,10 vezes 10 mil. MIL REAIS. Má oêê!

E isso para um contratinho só. Fossem dez, você teria operado mais de meio milhão de reais sem abrir a carteira, apenas para lucrar com a diferença de preço. E nessa brincadeira levantaria R$ 10 mil em questão de horas.

Esse é só um exemplo superficial, ainda que realista. No home broker a conta é um pouco diferente, mas chega aos mesmos R$ 1 mil. Vamos lá.

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Cada minicontrato de dólar, como dissemos aqui, representa US$ 10 mil no mercado futuro, certo? Bom, a cotação do tal contrato na bolsa não se dá em reais, mas em pontos.

E cada ponto vale R$ 10. Os pontos derivam de uma multiplicação: o preço do dólar futuro por mil. Portanto, se o dólar para dezembro estiver a R$ 5,40, o contrato do dólar para dezembro estará a 5.400 pontos. Caso o câmbio para dezembro vá a R$ 5,50, a pontuação sobe para 5.500. Dá 100 pontos de lucro. 100 X R$ 10 = R$ 1 mil. Pronto.

É assim que se calcula o valor do nosso amigo minidólar – apelido para o tal do contrato que os day traders tanto amam. Ele é “míni” porque US$ 10 mil é um valor relativamente baixo. Equivale a só 20% do contrato “cheio”, de US$ 50 mil. Esse é para gente grande, ou seja, empresas e bancos. Tem outra coisa que diferencia os pequenos dos grandes nesse mercado. No míni, dá para adquirir um contrato por vez. Já o povo do mercado cheio é obrigado a negociar de cinco em cinco contratos. Nisso, a cada rodada ficam em jogo US$ 250 mil.

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Seja no míni, seja no cheio, sempre pode dar ruim. Imagina que o dólar, em vez de subir, caia. Para R$ 5,30. Aí danou-se. Você, com seu míni de US$ 10 mil, vai ter que PAGAR R$ 1 mil. Se você adquiriu dez contratos, vai dormir devendo R$ 10 mil. Serasa na veia.

Isso não significa que todo mundo perde quando o dólar cai. Você também pode entrar nessa fazendo o papel de quem aposta na queda da moeda americana. Para entender como isso funciona, é só inverter todos os exemplos que demos até aqui: cada ponto a menos no minidólar vai significar R$ 10 a mais para você.

Seja qual for a modalidade, enfim, o risco é igual: você estará operando com dinheiro emprestado do mesmo jeito. Com isso, suas perdas sempre terão o potencial de ser maiores que o seu patrimônio. Esse é o grande veneno dos minicontratos.

Ah, o minidólar tem um irmão gêmeo: o mini-índice. Com este contrato, você aposta no sobe e desce dos pontos do Ibovespa, não do dólar. De resto, a lógica é a mesma: você entra numa montanha-russa de perdas e ganhos gigantescos, operando com quantidades absurdas de dinheiro alheio.

Caixa eletrônico

Por trás da ideia de que é fácil ganhar dinheiro com minicontratos está a noção de que o trader jamais erra. Só lucra. O home broker da corretora vira o novo caixa eletrônico: bastaria abrir e sacar o quanto você quiser.

Há outro elemento que dá a ideia de caixa eletrônico: os R$ 20 que as corretoras pedem não entram no jogo da compra e venda de minicontratos. É só uma garantia mínima contra calotes, caso o trader perca dinheiro. Quanto mais contratos você adquire, maior a garantia que precisa deixar – cinco contratos, R$ 100; dez contratos, R$ 200.

Na prática, é como se fosse o preço do ingresso para entrar numa montanha-russa financeira, que pode garantir dinheiro fácil em marés de sorte e destruir seu patrimônio em todos os outros momentos.

O ponto é que as perdas sempre acontecem e quase nunca serão de apenas R$ 20. É como se cada contrato futuro fosse um sistema fechado: sempre que alguém ganhar R$ 1 mil, outra pessoa terá que pagar os R$ 1 mil. Dá até para chamar de programa de transferência de renda – geralmente com a renda do trader caseiro sendo transferida para um trader de banco.

“Não existe barreira de entrada, mas ser bem-sucedido nesse negócio é bem diferente. [O trader] está lidando com o imponderável”, diz Jayme Carvalho, que foi trader de um grande banco e hoje é planejador financeiro certificado pela Planejar.

Isso não significa que as instituições financeiras tenham uma fórmula mágica para sempre vencer nesse jogo. O ponto é que bancos não arriscam grandes fatias de seu patrimônio nisso. Gente como a gente, por outro lado, tende a fazer justamente o contrário – e perder mais dinheiro do que tem de reserva.

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A onda

Se o prejuízo pode apagar rapidamente qualquer ganho, e acabar maior do que todo o patrimônio do trader, como é que o day trade amador foi alçado ao posto de “carreira” do futuro?

Bom, nada disso é realmente novo. Os minicontratos existem há quase 20 anos, cursos para operar no mercado financeiro foram o coração da XP desde a fundação, lá no ano de 2001, e as corretoras mantêm pelo menos desde 2016 um analista ao vivo ensinando as pessoas a fazer day trade durante todo o horário de pregão.

Mas, pela primeira vez, essa avalanche de informações e promessas de ganho fácil chegou às massas, via YouTube.

O aumento na oferta de vídeos e cursos dedicados ao tema ganhou de alguma forma o apoio da bolsa brasileira. Em maio, a B3 passou a bancar até R$ 300 mil para corretoras que quisessem difundir educação financeira sobre day trade a seus clientes. A condição era que as empresas investissem montante equivalente. Até agora, 14 iniciativas obtiveram o patrocínio.

Entre os mais recentes está a “Jornada do Trader Profissional”, uma série de lives gratuitas da Toro Investimentos. Nelas, Rafael Panonko, chefe de análises da corretora, explicava o básico do funcionamento de minicontratos, planejamento da operação em planilhas, metas de ganhos e controle de riscos – como o mantra “opere com stop loss” (parar perdas), um comando que precisa ser pré-programado para diminuir a possibilidade de prejuízos vultosos. Na primeira aula, incentivou abertura de conta na Toro, na última, vendeu o curso pago de day trade a R$ 2 mil. Já a XP lançou o curso “Full Trader”. Custa R$ 8 mil.

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Ou seja: a prática, apesar de incrivelmente perigosa, está sendo fomentada pelos gigantes do mercado. Esse fenômeno já aconteceu no passado. Quando a taxa Selic rondava 14% ao ano, e não os atuais 2%, a bolsa criou um programa de incentivo para a migração da poupança (que fica nos bancos) para o Tesouro Direto (que fica na B3). As corretoras deixaram de cobrar taxas para o investimento e, em troca, passaram a receber uma compensação da bolsa. A diferença é que Tesouro Direto rende mesmo mais que a poupança, enquanto o day trade, principalmente aquele com minicontratos, é nitroglicerina pura.

Executivos da B3 não quiseram conceder entrevista. A assessoria de imprensa encaminhou declarações do presidente da empresa, Gilson Filkenstein, sobre o crescimento da prática de day trade entre pessoas físicas. Ali, ele diz que o day trade é uma porta de entrada para a bolsa, mas não é para qualquer investidor. Essa porta de entrada, enquanto isso, gera receita para a B3, que só no segundo trimestre lucrou R$ 1 bilhão.

Muito esforço para nada

92% dos traders pessoa física desistem de operar antes de um ano. É o que diz um estudo da FGV feito em 2019 a partir de uma base de dados com 19.696 pessoas que fizeram day trade em operações com mini-índice entre 2013 e 2015.

O que disse Rafael Panonko, da Toro, sobre esse estudo na primeira live em que ensinava os riscos do day trade? “Desistir é uma coisa. Ter prejuízo, na minha avaliação, é outra.”

Continuemos com a pesquisa da FGV, então. Entre os 1.558 traders que permaneceram na ativa por mais de um ano, 91% tiveram prejuízo. 9% conseguiram algum lucro. E 0,06% – só 13 das 19,6 mil pessoas – teve retornos acima de R$ 300 por dia. Em um mês com 22 dias úteis, isso daria um salário de R$ 6,6 mil. É isso que a carreira de trader pode render, mas para apenas seis pessoas a cada 10 mil que tentam a sorte – ou uma a cada 1,6 mil numa notação mais científica.

“Ninguém estava informando com clareza que a probabilidade de obter lucro com esse tipo de operação é baixíssima. Claro, porque dar esse tipo de informação não rende dinheiro. O que dá dinheiro é vender curso”, provoca um dos autores do estudo, o economista Fernando Chague.

Fernando e seus colegas voltaram a se debruçar sobre as reais possibilidades de ganhar dinheiro com day trade quando viram aumentar a procura por operações desse tipo em meio à pandemia. Desta vez, olharam o mercado de ações mesmo. “Circulava a ideia de que era mais fácil em comparação aos mercados futuros [os minicontratos]. Porém, os resultados foram igualmente desastrosos”, diz o professor da FGV.

Após analisarem 98.378 pessoas que começaram a fazer day trade com ações entre 2013 e 2016, eles constataram, de novo, que apenas uma pequena parcela persiste por mais de um ano: só 554 pessoas. Destas, somente 127 day traders tiveram lucros diários acima de R$ 100. A coisa é tão feia que a média de rentabilidade por dia dos 554 investidores que permanceram firmes é, na verdade, um prejuízo – R$ 49 ao dia.

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Bom, ao analisar a performance dos 127 investidores que tiveram ganhos, os economistas constataram que quem obtinha retornos diários de, em média, R$ 103 mostrava um desvio padrão de R$ 747. Estatisticamente, isso quer dizer o seguinte: na maior parte dos dias, os ganhos desses investidores variavam entre lucros de R$ 850 e prejuízos de R$ 644. Haja risco.

“Os dados deixam claro que quem conseguiu obter algum lucro fez isso às custas de muita volatilidade. No final, a mensagem é uma só: a ideia de que é possível ganhar dinheiro com day trade de forma fácil ou ficar milionário sem sair de casa é uma ilusão”, afirma Fernando, da FGV.

Estudos de fora corroboram os achados da FGV. Pesquisadores americanos e chineses analisaram em um estudo todas as operações de day trade feitas em Taiwan durante 15 anos. A conclusão: 97% perderam dinheiro. Fora isso, apenas 1% dos que ganharam alguma coisa conseguiu lucros superiores ao retorno de quem investe em fundos de índice (os ETFs; a maneira mais segura de investir em ações).

Não adianta treinar

De novo: o único jeito de ganhar dinheiro com day trade é ter o dom de prever o futuro. E não consta que existam cursos para isso. A experiência também não ajuda.

De acordo com a FGV, os resultados dos day traders no pregão número 100 de suas vidas foram piores que os do pregão número 1. E melhores que o do pregão 200. Sim. Você vai piorando com o tempo. Motivo: quem começa perdendo dinheiro logo de cara, pula do barco. Já quem dá sorte no começo tende a seguir – daí que vem o mito da “sorte de principiante” – enquanto quem dá azar no início some das estatísticas. Mas uma hora os sortudos iniciais começam a ter prejuízo. Para tentar saná-los, o trader vai aumentando suas apostas. E afunda na lama.

Foi o que aconteceu com o mineiro Matheus Henrique da Silva, de 26 anos. Morador da cidade de Cambuí, a 500 km de Belo Horizonte, ele começou a investir na bolsa em 2018. Influenciado por youtubers, partiu para o day trade em minidólar.

E veio a sorte de principiante. “Na primeira vez que você consegue transformar R$ 20 em R$ 1 mil, você acha que isso vai acontecer todos os dias”, diz. Pois é. Um viciado em cocaína, crack ou heroína passa o resto da vida em busca do prazer da primeira dose. O corpo, porém, acostuma com a droga. Para voltar a ter a mesma sensação, o sujeito vai aumentando as doses. No day trade, você vai aumentando as apostas. “E se eu colocar R$ 20 mil? Posso ganhar um milhão…”.

Matheus fez basicamente isso depois de amargar o bode dos primeiros prejuízos. Pegou um empréstimo de R$ 20 mil no banco para tentar a sorte grande. Não rolou: Matheus terminou sua aventura no mundo do minidólar devendo R$ 108 mil para a corretora, mais R$ 55 mil para o banco.

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Gatilhos e vícios

Não é cocaína em si que vicia. É a dopamina, o neurotransmissor que a droga ativa no cérebro. Dopamina é o biscoito de cachorro da evolução das espécies. Quando você faz algo bacana para a sua sobrevivência, tipo fazer exercícios ou se alimentar, o cérebro libera dopamina. Quando você faz algo ok para passar seus genes adiante – no caso, sexo –, mesma coisa, e numa quantidade bem maior (obrigado, evolução). Drogas driblam esse sistema. Cocaína, crack, álcool e cigarro são dopaminérgicos. Eles enganam o corpo, fazendo com que ele produza doses cavalares de dopamina sem que você tenha feito nada de útil para sua sobrevivência ou reprodução.

Com day trade é a mesma coisa. Ver R$ 20 se transformar em R$ 80 em meia hora já é um dopaminérgico poderoso. Seu corpo é tomado por um rush de prazer. Ver R$ 20 virar R$ 1 mil, então, minha nossa. É melhor do que sexo. Vicia. Você vai topar qualquer aposta só para sentir isso de novo.

O psiquiatra Hermano Tavares, da USP, alerta para o perigo: “A excitação de apostar, por si só, já é capaz de acionar o disparo dopaminérgico, mesmo que o lucro não venha”.

O analista de sistemas Fernando Barros da Silva, de 38 anos, sabe bem o que é isso. “É igual cocaína. Toma conta da sua mente e, quando você vê, está sempre atrás de alguma forma de ganhar dinheiro com as operações”, diz, admitindo que o day trade se tornou um vício para ele.

“É igual cocaína. Toma conta da sua mente e, quando você vê, está sempre atrás de alguma forma de ganhar dinheiro com as operações.”

Fernando Barros da Silva, analista de sistemas e ex-day trader

No começo, em 2015, Fernando fazia apenas operações de longo prazo (as que de fato são recomendáveis), mas logo a promessa de conseguir enriquecer de forma fácil fez seus olhos brilharem. “Me chamou a atenção o fato de que, com pouco capital, é possível ganhar muito dinheiro. Então fui atrás de cursos para entender”, diz.

Em 2016, ele fechou o ano com um prejuízo de R$ 15 mil. Mas achava que, para reverter isso, bastava ganhar mais experiência. “Em todos os cursos dizem que existe uma ‘curva de aprendizado’ na qual você queima dinheiro, que isso é normal”, explica.

Entre muitas perdas e poucos ganhos, Fernando persistiu. “Não pensava em parar. Sempre achei que encontraria uma maneira de recuperar o que tinha perdido. Eu dormia e acordava pensando na bolsa, até nos finais de semana sentia vontade de abrir o home broker”, diz.

Três anos depois, o prejuízo já estava em R$ 150 mil. Ele tinha vendido o carro e levantado empréstimos. Não conseguia mais dormir direito. Foi aí que, com a ajuda de uma amiga psicóloga, Fernando percebeu que tinha um problema. Em fevereiro de 2020, desinstalou o home broker. Está limpo há oito meses. “A qualquer momento posso ter uma recaída. Agora eu tenho consciência de que sou um viciado.” É isso. Se algum youtuber ou corretora lhe oferecer day trade, diga não.

Gráfico

 

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