O fim da globalização
A invasão da Ucrânia acelerou um processo que começou lá em 2008: a China forma seu próprio bloco de influência para concorrer de fato com a hegemonia dos EUA. Entenda como a economia brasileira se encaixa nessa nova era do comércio global.
Abra qualquer jornal em inglês dos últimos meses na internet e você encontrará algum colunista dizendo mais ou menos o seguinte: a invasão da Ucrânia é o acontecimento geopolítico decisivo do nosso tempo. Se os ucranianos resistirem, com apoio moral e material do Ocidente, e a Rússia retirar suas tropas, os EUA ganham automaticamente uma sobrevida no papel de polícia e umbigo econômico do planeta – desde o fim da URSS, em 1991, eles se tornaram o único país com status de superpotência nas relações internacionais.
Por outro lado, se Putin for bem-sucedido em anexar o leste e o sul da Ucrânia – cortando o acesso do país ao mar e provavelmente transformando-o em um apêndice com governo-fantoche –, isso vai acelerar uma mudança definitiva no tabuleiro de War do planeta; mudança essa em que a China, aliada e financiadora da Rússia, desponta de vez como liderança global e vira a grande concorrente dos EUA em uma nova Guerra Fria, entre um bloco autoritário e um democrático.
Seria o fim da globalização. Ou o fim da globalização como a conhecemos. Ou a transição para uma nova fase da globalização, que gira também em torno da Ásia, e não só do Ocidente. Isso depende do que cada autor quer dizer com “globalização”.
Uma definição mais restrita diz respeito especificamente à ordem mundial pós-Guerra Fria, encabeçada pelos EUA, as instituições de Bretton Woods e as grandes empresas do Ocidente. Essa globalização, sim, está declinando. Uma definição mais genérica diz respeito ao processo de integração e interdependência econômica, científica e cultural entre países. Nesse caso, ela está longe do fim: caminhamos para uma globalização à moda asiática, paralela à hegemonia americana (e concorrente dela).
Acontece que essa mudança de eixo já era esperada. A violência russa não está criando grandes novidades no duelo China vs. EUA: apenas acelerando a formação de uma tempestade que já se avizinha há pelo menos uma década.
Vamos entendê-la:
A ascenção da China
Até 2008, a China era (bem) amiga dos EUA: usava seu superávit para comprar títulos públicos de Washington e fazer uma imensa poupança em dólares – também dependia completamente do consumo inigualável do Tio Sam para escoar sua produção.
Com a crise econômica de 2008, e a zona na Zona do Euro em 2011, o Partido Comunista percebeu que não podia confiar no Ocidente em longo prazo para absorver sua produção. “Eles começam a buscar um destino alternativo para o excedente de dólares”, explica Bruno Hendler, professor de relações internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Prova disso é que, em 2013, Xi Jinping anunciou a Iniciativa Belt and Road (BRI) – conhecida informalmente como “nova rota da seda”. Trata-se de um plano de investimentos de US$ 5 trilhões para financiar portos, aeroportos, gasodutos, oleodutos etc. em quase 70 países, concentrados principalmente na Eurásia e na África.
5 trilhões de dólares: é o valor que a China pretende investir na infraestrutura de 70 países até 2049.
A ideia é terminar tudo até 2049, quando a revolução comunista de Mao Tsé-Tung faz seu aniversário de um século. Trata-se do mesmo raciocínio do Império Britânico no século 19, que construiu quilômetros de ferrovias pelo mundo (inclusive no Brasil): sem infraestrutura, não rola crescimento econômico; sem crescimento, não há mercado consumidor.
Claro: sobra interesse chinês na exploração de recursos naturais. Mas a ideia também contempla o uso da montanha de dinheiro chinesa para construir uma área de influência forte, e redesenhar o comércio internacional.
Enquanto isso, os EUA se viram ameaçados pela locomotiva chinesa e adotaram, ainda na gestão Obama, uma sucessão de políticas protecionistas que visavam a blindar certos setores da economia; especialmente os de alta tecnologia (uma reação sensata). Essas políticas, porém, degringolaram com a eleição de Trump e um clima nacionalista e isolacionista – que não deixou de existir com a derrota de Donald nas urnas.
Em suma, temos uma China a fim e com bala para investir em países em desenvolvimento, numa era em que os EUA olham mais para dentro de suas próprias fronteiras.
O modus operandi chinês
Nessa polarização, a postura chinesa, enquanto candidata a superpotência, é bem diferente da americana. Primeiro ponto: o Partido Comunista não tem pretensão de agir como polícia do mundo.
Isso ocorre, em parte, porque a China tem seus próprios problemas com regiões separatistas, conflito étnico e violação de liberdades individuais – e não quer que o mundo preste atenção neles. Outra razão é sua política externa pragmática: o critério para fechar negócio com outros Estados é eles exibirem uma situação política estável, que transmita segurança na hora de investir. Tanto faz se essa estabilidade é fruto da democracia ou do autoritarismo.
Segundo ponto: a globalização à moda americana que predominou entre 1990 e 2010 tinha como premissa a diluição das fronteiras, as barreiras tarifárias minúsculas e uma ojeriza generalizada à regulamentação da economia – em linha com a filosofia do livre-mercado.
A globalização paralela que a China deseja protagonizar funciona ao contrário: ela mantém suas empresas sob controle estrito – não só as estatais, mas as privadas também –, e prefere negociar com Estados que também demonstram um mínimo de soberania sobre seu território e as atividades que ali se desenrolam.
É incerto se o comércio mundial como um todo cresce ou encolhe nesse contexto bipolar – em que o Ocidente se fecha num casulo e a China avança sua globalização sinocêntrica. Mas a estratégia chinesa parece vantajosa para o crescimento econômico da periferia global – e para países semiperiféricos, como Brasil, Argentina e África do Sul. Em longo prazo, isso pode se traduzir numa redução da desigualdade.
É claro que o dinheiro não faz milagre sozinho. Quem recebe precisa saber o que fazer com ele. No Brasil, por exemplo, o boom das commodities na primeira década do século 21 não se traduziu em crescimento econômico sustentável.
Por outro lado, o Vietnã, com dinheiro chinês, está adotando a estratégia de país-fábrica e se tornando parada obrigatória das cadeias de suprimentos globais associadas a produtos eletrônicos.
O crescimento, com moeda propositalmente fraca e mão do Estado forte, vem acompanhado de um relativo aumento na qualidade de vida. Não à toa, a cidade de Ho Chi Minh (antiga Saigon) sediou em 2020 a assinatura do acordo da Parceria Regional Econômica Abrangente – uma zona de livre-comércio asiática, capitaneada pela China, que zera tarifas de importação, tem regras próprias para propriedade intelectual e telecomunicações e tira os EUA de campo no leste do Pacífico.
Conclusão: um novo capítulo da globalização liderado pela China já é inevitável desde 2008, e, a seu modo, tem o potencial de enriquecer países periféricos. O importante é entender como a invasão da Ucrânia pode moldar e acelerar esse capítulo.
China e Rússia
No aspecto ideológico, Putin atacou a Ucrânia guiado por um devaneio nostálgico e expansionista inspirado pelos czares do Império Russo. De uma perspectiva estratégica, ele vê a necessidade de peitar a hegemonia americana conforme a Otan conquista membros e pretendentes na antiga esfera de influência soviética.
Por um motivo simples: há o medo de que a democracia seja contagiosa. “A Ucrânia é um país próximo, com raízes culturais próximas, e que, mesmo com todos os defeitos, conseguia manter uma democracia com eleições livres e transição de poder”, explica Uriã Fancelli, mestre em Estudos Europeus pela Universidade de Estrasburgo e autor do livro Populismo e Negacionismo. “É assustador, para o governo autoritário russo, tolerar um vizinho que troca de líder quando as coisas não estão boas.”
A guerra promete consequências funestas para a economia russa. Prevê-se algo como 20% de inflação anual e 15% de queda no PIB. Agora, a China é a grande muleta de Putin. Vale lembrar: poucos dias antes da invasão, em 7 de fevereiro, houve o já infame discurso da “aliança ilimitada” na abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno em Pequim: Putin e Xi Jinping prometeram ser amigos fiéis e combater a hegemonia dos EUA.
20% de inflação e 15% de queda no PIB: essas são as previsões para a economia russa em 2022.
Quem dita as regras desse casamento, de qualquer forma, é a China – posto que ela tem uma economia dez vezes maior que a da Rússia. Os laços entre os dois vão além da parceria militar e das commodities óbvias (alimento e combustíveis fósseis). Por exemplo: com o aquecimento global e o derretimento das calotas polares no Ártico, o extremo norte do planeta se torna um oceano navegável. A China já tem acordos para modernizar os portos russos semiabandonados no litoral da Sibéria e empregá-los ativamente no comércio exterior.
Em suma: uma Rússia isolada do Ocidente é algo bom para a China. Eles passam a contar com o país de maior extensão territorial no mundo como um satélite econômico. Com o benefício de se tratar de um satélite fortemente armado.
Não que Pequim esteja a fim de ver o circo pegar fogo. Muito pelo contrário. Um mundo em paz é melhor para os negócios chineses do que um mundo em guerra. Até por isso Xi Jinping mandou o recado para Putin em junho: quer que o russo “promova uma solução apropriada para o conflito de maneira responsável”. Algo como um “pronto, já deu”.
Conflitos internos
Uma novidade da polarização de hoje em relação à da Guerra Fria é que o bloco do Ocidente não é mais tão sólido: a aliança da União Europeia está machucada por eventos brutais como o Brexit e divergências mais discretas (como a preferência francesa por manter uma matriz energética nuclear independente versus a insistência da Alemanha em depender do gás russo, que agora está gerando um impasse diplomático indigesto).
Além disso, a Europa não pode depositar esperanças demais nos EUA, sob o risco de que outro isolacionista como Trump seja eleito – e os próprios europeus precisam lidar com sua cota de populistas de direita.
A eleição de Bolsonaro reflete esse processo, mas espera-se que nossa tradição de mediação e diálogo nas relações exteriores seja forte o suficiente para manter o Brasil na posição que lhe cabe nessa nova ordem global polarizada: em cima do muro.
Natural. A China é, de longe, o maior destino das nossas exportações. Em 2021, foram US$ 87,7 bilhões. Para dar uma ideia do quanto isso é recente: no ano 2000, tinha sido US$ 1 bilhão.
87,7 bilhões de dólares: foram nossas exportações para a China em 2021. Em 2000, eram só 1 bilhão.
Os EUA vêm num distante segundo lugar, com US$ 31 bilhões. Some o que exportamos para Argentina (US$ 11,8 bi), Holanda (US$ 9,3 bi), Chile (US$ 7 bi) e Singapura (US$ 5,8 bi) e já dá isso.
Claro: isso não significa que o negócio é dar as costas para os EUA. E não só pela parte estritamente comercial, mas porque o autoritarismo também é uma doença contagiosa. A tradição de amizade com a democracia mais sólida do planeta é um bem a ser mantido.
Por outro lado, quem oferece mais possibilidades para o nosso crescimento, desde o início deste século, é a China. E um distanciamento comercial entre ela e os EUA pode até ser benéfico para o país.
“A China tem um mercado grande que consome aquilo que o Brasil produz, enquanto os EUA são concorrentes em muitas das exportações brasieiras”, diz Marcus Vinicius de Freitas, professor visitante da China Foreign Affairs University, em Pequim. “Precisamos abandonar a amarra ideológica e ter uma noção pragmática daquilo que podemos ganhar e construir em conjunto.”
As cartas estão na mesa. Cabe ao Brasil ter a habilidade necessária para transitar bem nos dois polos da economia global. Mais do que nunca, o futuro da nossa economia depende desse jogo de cintura.