Como regular seu sono e organizar sua rotina, segundo a ciência
Em O Ciclo da Vida", o neurocientista Russell Foster mostra as pesquisas mais recentes sobre o relógio biológico – e dá dicas para usá-lo a nosso favor.
Todo mundo possui um relógio biológico. Todo mundo mesmo, incluindo peixes, plantas, bactérias e fungos. Os seres vivos operam em ciclos de aproximadamente 24 horas. Não à toa, esse mecanismo recebeu o nome de circadiano (do latim circa diem, “cerca de um dia”).
O principal regulador do ciclo circadiano é o sono. Dormir é uma vantagem evolutiva, já que permanecer 24h em estado de alerta demandaria muita energia. É durante o modo standby que o nosso corpo regula o metabolismo, recupera tecidos, consolida memórias e processa emoções.
Apesar de serem assuntos interconectados, as pesquisas sobre o sono e o ciclo circadiano só se aproximaram para valer nas últimas duas décadas. Já era hora: segundo a OMS, 40% da população mundial tem algum tipo de problema para dormir. No Brasil, 73 milhões de pessoas sofrem de insônia.
24 horas já não são mais suficientes para conciliar trabalho, faculdade, academia, encontro com os amigos… Mas deixar o sono para escanteio em meio a essa rotina frenética pode ser um golpe para nossa saúde.
Em O ciclo da vida, o neurologista britânico Russell Foster mostra como a “ruptura do ritmo circadiano e do sono” (RRCS, termo cunhado por ele e sua equipe) está atrelada a cansaço, ansiedade, estresse, obesidade e doenças. E mostra como podemos usar o ciclo circadiano a nosso favor, escolhendo os melhores horários para comer, fazer exercícios e tomar decisões.
No trecho a seguir, Foster apresenta alguns problemas que a falta de sono pode causar no ambiente de trabalho.
Capítulo 6 – De volta ao ritmo
RRCS NO TRABALHO: ALGUMAS SOLUÇÕES SIMPLES
As empresas podem introduzir medidas simples no local de trabalho para lidar com problemas relacionados à RRCS. Só em relação ao trabalho noturno, hoje um em cada oito britânicos trabalha à noite. Esse número aumentou em 250 mil nos últimos cinco anos, atingindo mais de 3 milhões de indivíduos, e tende a aumentar. Então o que pode ser feito desde já para desenvolver melhores práticas que aliviem a RRCS e aumentem a segurança, a saúde e o bem-estar dos empregados? Discuto aqui algumas sugestões fáceis de implementar.
Cuidado com a perda de atenção ao voltar para casa dirigindo
O trabalho noturno e os problemas a ele associados, como o descompasso circadiano e a perda de sono, representam uma ameaça real ao estado de alerta e um aumento da sonolência.
Mas não é só o trabalho noturno. Muitas pessoas trabalham em períodos prolongados fora do horário comercial, sem contar as exigências do cotidiano familiar. Assim, a vida pessoal e a profissional são, muitas vezes, acompanhadas de cansaço, perda da vigilância e alta incidência de microssonos (adormecimentos incontroláveis) — perigosos em qualquer ambiente de trabalho, mas sobretudo se dirigir fizer parte desse trabalho.
A fadiga do motorista é há muito tempo reconhecida como uma das principais causas de acidentes de trânsito. Um relatório recente da Administração Nacional de Segurança Rodoviária dos Estados Unidos atestou que todos os anos cerca de 100 mil acidentes registrados pela polícia envolvem direção sob torpor. São acidentes que resultaram em mais de 1.550 mortos e 71 mil feridos.
O número real, no entanto, pode ser muito maior, já que é difícil determinar se o motorista estava sonolento no momento da batida. Na verdade, é o que sugere fortemente outro estudo, encomendado pela American Automobile Association Foundation for Traffic Safety, que estimou que todos os anos ocorrem 328 mil acidentes por sono na direção, o triplo do número registrado pela polícia.
(…)
Cuidados contra doenças
A RRCS foi associada a uma série de questões de saúde física e mental, e detectar esses problemas de antemão permite intervenções que ajudam a prevenir o desenvolvimento de condições de saúde crônicas. Assim, aqueles que correm maior risco de RRCS devem fazer check-ups médicos com maior frequência. Quando um câncer é detectado no começo, as chances de um tratamento eficaz e de sobrevivência são muito maiores. Da mesma forma, a detecção e o tratamento precoce de condições como o diabetes tipo 2 e a depressão podem evitar que elas fujam do controle.
Por sabermos que as anomalias metabólicas e as doenças cardiovasculares são mais comuns em pessoas com RRCS, deve-se disponibilizar uma nutrição adequada, ajudando a reduzir o estímulo a essas condições no local de trabalho. As máquinas de venda automática e cantinas invariavelmente oferecem alimentos ricos em açúcar e gorduras, o que (…) é muito nocivo.
O cronotipo é a tendência do indivíduo a dormir em um determinado horário dentro das 24 horas do dia.
A ingestão de alimentos e bebidas açucaradas, no início de um turno noturno, provoca um pico de açúcar seguido por uma queda repentina, à medida que a insulina reduz rapidamente a glicemia. Tudo isso ajuda a aumentar o cansaço. Por isso, evite abusar da cantina ou da lanchonete antes de começar a trabalhar.
O ideal é que a cantina o ajude, oferecendo lanches e alimentos fáceis de digerir e com alto conteúdo proteico, como sopas, castanhas e sementes, pasta de amendoim, ovos cozidos, frango e peixe. Sei que é chato, mas é uma escolha drástica — um pouco de comida sem graça ou morrer antes da hora.
Impacto nos relacionamentos
Vários estudos mostraram que o índice de divórcio é maior entre trabalhadores noturnos. Um trabalho de pesquisadores americanos concluiu que, entre os homens que dão plantão noturno e têm filhos, separações e divórcios são seis vezes mais prováveis nos primeiros cinco anos de casamento, em comparação aos trabalhadores diurnos.
Um escritório de advocacia americano afirmou que, antes da covid, a proporção de divórcios entre trabalhadores noturnos tinha aumentado 35% nos três anos anteriores, o que dá uma ideia da proporção do problema.
Parte dele pode se dever à incapacidade do parceiro em reconhecer alguns dos efeitos danosos da RRCS, especialmente sobre o comportamento. Fornecer materiais informativos e educativos que auxiliem os funcionários e, o que é crucial, as pessoas com quem eles vivem, pode ser imensamente útil.
O cronotipo e a melhor hora de trabalhar
Existe uma variação considerável, na população como um todo, em termos de cronotipo. (…) O cronotipo é a tendência do indivíduo a dormir em um determinado horário dentro das 24 horas do dia, e a população se divide entre pessoas matutinas, ou sabiás (10%); pessoas noturnas, ou corujas (25%); e aquelas que ficam no meio, chamadas por alguns de intermediários, ou pombos (65% da população).
Estudos mostraram que, quanto maior o descompasso entre seu tempo de sono/vigília (comandado pelo ritmo circadiano) e a hora em que você precisa trabalhar, maior o risco de desenvolver problemas de saúde. Para descrever esse descompasso (…), meu velho amigo Till Roenneberg cunhou a feliz expressão “jet lag social”.
O ideal é todos acordarmos naturalmente do sono, sem ficarmos dependentes de despertador.
As empresas poderiam conciliar o cronotipo dos funcionários com horários de trabalho específicos. Os sabiás se adequariam melhor aos horários matutinos; as corujas, aos noturnos. Não é uma solução completa para o trabalho noturno, mas reduziria o jet lag social, assim como alguns dos problemas mais relevantes causados pelo trabalho na contramão do tempo interno.
(…)
Perguntas e respostas
1. Li que nosso relógio biológico interno pode ir mudando aos poucos e adaptar-se ao trabalho noturno, assim como é possível nos adaptarmos a voos que cruzam vários fusos horários. É verdade?
Infelizmente, não, exceto por algumas situações excepcionais (…). Um estudo com trabalhadores noturnos mostrou que 97% não se adaptam às exigências de trabalhar à noite. A única solução é esconder-se da luz natural durante o dia e aumentar a quantidade de luz durante o trabalho noturno. Isso, porém, não é possível para a maioria de nós.
2. Devo me livrar do meu despertador?
O ideal é todos acordarmos naturalmente do sono REM [fase mais profunda do descanso], sem ficarmos dependentes de despertador. Um pouco como nossos ancestrais, cujos ritmos eram definidos pelo nascer e pelo pôr do sol. No entanto, quando se trabalha, muitas vezes isso é totalmente impraticável. Quando — ou se — eu me aposentar, acho que vou dar meu despertador a um adolescente!
3. Gosto de cuidar dos meus afazeres logo depois do meu plantão de trabalho noturno. É uma boa ideia?
O melhor é tentar dormir imediatamente depois de voltar do plantão noturno. A pressão do sono estará muito alta e o impulso circadiano para ficar acordado é baixo pela manhã, mas vai aumentando ao longo do dia, tornando mais difícil dormir depois. Ao terminar o plantão da madrugada — que nos países de língua inglesa, não à toa, é chamado de graveyard shift, o “plantão do cemitério” (…) —, as pessoas à sua volta estarão acordando e você pode sentir a tentação de juntar-se a elas e ir cuidar das tarefas, assistir àquele programa na TV ou falar com os amigos no telefone.
Tente não fazer isso, já que essas atividades vão deixá-lo alerta e diminuir suas chances de dormir.
4. O que são os “sonhos lúcidos”? Devo me preocupar com eles?
Sonhos lúcidos são aqueles em que o indivíduo tem consciência de que está sonhando e às vezes consegue assumir certo controle sobre seu conteúdo, em termos de personagens, forma do sonho ou ambiente onde ele ocorre. Os sonhos lúcidos parecem acontecer com maior frequência no sono REM, e acredita-se que possam representar um estágio intermediário, em que não se está nem totalmente desperto nem adormecido.
Algumas pessoas tentam forçar sonhos lúcidos, acordando do sonho REM, concentrando-se na experiência do sonho e tentando voltar a dormir, na esperança de voltar ao sono REM. Não há benefícios comprovados dos sonhos lúcidos, mas há um risco potencial, quando se é suscetível a problemas de saúde mental como a esquizofrenia, de que eles turvem a fronteira entre o real e a experiência onírica, aumentando a confusão.
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