Passaporte na gaveta: como fica a carreira internacional pós-pandemia
Profissionais tiveram que suspender ou cancelar os planos de estudar e trabalhar fora do país por causa das restrições de viagens
Após ser demitido do cargo de auditor sênior de TI na EY, em meados de 2019, o paulista Renato Takatori, de 37 anos, embarcou para a Irlanda para estudar inglês. Em fevereiro deste ano, foi aprovado em um processo seletivo para retornar à consultoria — só que dessa vez ocuparia um posto no escritório irlandês. “Por meio de um headhunter que conheci no LinkedIn consegui uma entrevista para o mesmo cargo que eu tinha no Brasil. Enxerguei como um desafio, por ser uma experiência na Europa”, diz.
Enquanto aguardava os trâmites burocráticos para permitir que ele trabalhasse no país, teve de voltar ao Brasil, pois seu visto de estudante estava prestes a vencer. “Pouco antes de embarcar de volta para a Irlanda, em março, começaram as primeiras medidas de isolamento social, voos foram cancelados; e aeroportos, fechados. Fui recomendado a não viajar porque a empresa também estava em quarentena”, diz Renato. Desde então, a pandemia da covid-19 se alastrou pelo Brasil sem sinal de melhora. Como consequência, no início de junho a EY enviou uma carta a Renato pedindo desculpas e cancelando a vaga destinada a ele.
Assim como aconteceu com Renato, muitos profissionais tiveram seus planos de estudar ou trabalhar fora do país atropelados pela pandemia da covid-19. De acordo com um levantamento do site de viagens Viajala, que ouviu 3.000 usuários em seis países (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México e Peru), em maio 75% dos brasileiros deixaram de fazer ao menos uma viagem devido ao coronavírus. Além do distanciamento social, o temor quanto à recuperação da economia também leva muitas empresas a fechar postos de trabalho para imigrantes, uma vez que existem custos extras para trazer candidatos estrangeiros.
E o cenário é especialmente complicado para os brasileiros, já que por aqui a doença está descontrolada. Com mais de 2 milhões de infectados até o fechamento desta reportagem, e uma média de mais de 1.000 mortos por dia, o país apresenta uma elevada taxa de contágio e só perde para os Estados Unidos. Esses dados, inclusive, foram alguns dos argumentos para países da União Europeia (e os Estados Unidos) a fecharem as fronteiras para os brasileiros.
Em compasso de espera
A paulistana Luciana Nardi, de 44 anos, também teve a vida profissional severamente afetada pela pandemia. Advogada da prefeitura de São Paulo, em março deste ano ela conseguiu uma bolsa do famoso Programa Fulbright para realizar um intercâmbio de dez meses e estudar arbitragem na esfera do poder público em Washington, nos Estados Unidos. Além do curso, haveria uma imersão profissional em ONGs e em órgãos do governo americano.
Mas tudo foi suspenso. “Fui avisada de que provavelmente o intercâmbio será em 2021, mas dependerá da situação do coronavírus”, afirma. Luciana, que começou o processo todo ainda em 2019, não tem outra alternativa senão esperar. “Eu já tinha acertado quase todos os detalhes para alugar o apartamento em que moro no Brasil e fui obrigada a desfazer a negociação. Só não tive prejuízos financeiros, de fato, porque a bolsa cobre todos os custos”, explica.
Ter a vida congelada durante alguns meses é uma realidade sobretudo para os estudantes — já que qualquer sala cheia representa um tremendo risco de contaminação. Não à toa, a educação foi um dos primeiros setores a parar e, provavelmente, será um dos últimos a retornar fisicamente. Diante disso, programas de bolsas de estudo para estrangeiros optaram por prorrogar os prazos, cancelar ou suspender as edições, assim como fez o de Luciana.
Já universidades no exterior estão orientando alunos aprovados a não sair do país de origem e adiar a matrícula para 2021, aproveitando o hiato para tirar um ano sabático (o chamado gap year), e outras estão adotando aulas online. Segundo Andrea Tissenbaum, consultora educacional da Tissen Assessoria em Educação e Carreiras Internacionais, grande parte dos alunos que estavam fora retornou para casa e está estudando a distância. “Com as universidades fechadas, muitos deles não têm onde morar, enquanto outros voltaram para ficar próximos da família durante a pandemia” afirma.
Internacionalização a distância
A tendência das aulas remotas vieram para ficar até um futuro próximo. “Não há previsão de quando tudo voltará ao normal. Tem se discutido um modelo híbrido, que mescle o presencial e o online, mas ainda não há propostas concretas. Ou seja, pelo menos até o fim do ano é bom se acostumar com o EAD”, explica Andrea.
E não são só os estudantes que vão precisar se adaptar a uma experiência internacional a distância. Isso porque, embora a emissão de vistos de trabalho para estrangeiros não esteja suspensa em vários países, com as fronteiras fechadas e os consulados e embaixadas com restrições de funcionamento, alguns profissionais estão recorrendo ao trabalho remoto para assumir suas funções até poder fazer as malas. Leonardo Freitas, CEO da consultoria Hayman Woodward, explica que o único empecilho é registrar e pagar esse profissional. Então, um dos caminhos tem sido a terceirização por meio de contrato de prestação de serviços. “Conheço profissionais que estão abrindo empresas em outros países para poder cobrar pelo serviço terceirizado enquanto o deslocamento físico não pode ser feito”, diz.
Ele destaca que para os Estados Unidos, por exemplo, existem mais de 60 categorias de visto, e a análise de pedidos não parou completamente. “Os vistos não estão sendo emitidos porque os consulados no Brasil estão fechados desde 16 de março e as entrevistas foram canceladas, mas quem já tinha o visto e o contrato de trabalho com tudo acertado não terá motivo para não viajar assim que o governo permitir a entrada”, afirma Leonardo.
E o futuro?
Especialistas acreditam que, de maneira geral, a tendência é que as medidas mais rígidas, como suspensão das expatriações e contenção da imigração, permaneçam até o surgimento de um tratamento ou vacina — algo que não deve acontecer ainda neste ano. Entretanto, é unânime a opinião de que ainda existem oportunidades para profissionais qualificados. “Já para quem exerce atividades braçais ou de baixa qualificação eu não recomendo migrar agora, porque serão os primeiros a ser demitidos quando a crise apertar”, afirma Jorge Botrel, sócio da consultoria de negócios e expatriação JBJ Partners.
A opinião é compartilhada por Tana Storani, consultora de carreira internacional, que vive na Irlanda há 11 anos. “Para funções seniores o recrutamento não parou, só deu uma desacelerada. Isso sem contar que há novas vagas surgindo por causa da pandemia, como na área de saúde, na de videoconferências e em serviços de entregas”, diz. Ela lembra ainda que a Irlanda, por exemplo, tem uma lista de critical skills — carreiras consideradas escassas ou mais valorizadas no país, o que facilita a emissão de visto de trabalho para esses profissionais. A tabela é atualizada anualmente e inclui trabalhadores das áreas de tecnologia e engenharia.
Enquanto não dá para fazer as malas e partir, os interessados em sair do Brasil podem aproveitar o período para pesquisar mais sobre o destino, investir no relacionamento com profissionais que já estejam por lá, buscar aconselhamento e, principalmente, melhorar o idioma. “A fluência no inglês é cada vez mais obrigatória. Por isso, um conselho é estudar com afinco e se informar sobre escolas, universidades e possíveis vagas de trabalho”, diz Tana. Outra dica é ter um currículo e um perfil no LinkedIn em inglês e buscar vagas em plataformas de emprego de cada um dos países.
A escolha do destino também deve respeitar o objetivo profissional. Locais como os Estados Unidos são ótimos para empreender, por exemplo. “Por lá é possível abrir um negócio com 100.000 ou 200.000 dólares”, diz Leonardo, da Hayman Woodward. Para quem não tem essa grana toda, a consultora Tana recomenda considerar lugares menos disputados. “Polônia, Estônia, República Tcheca e Hungria são muito interessantes e têm um custo de vida mais baixo”, afirma.
Se por um lado a procura por intercâmbios e cursos de curta duração talvez diminua, por outro, a expectativa é que a busca de brasileiros por universidades no exterior permaneça em alta. “Continuaremos a ver a evasão de cérebros que vinha se acentuando nos últimos anos”, diz Andrea.
Ainda não dá para saber se a pandemia aumentou a vontade de sair do país, mas dados do Ministério das Relações Exteriores, por exemplo, apontam que, em 2015, pouco mais de 3 milhões de brasileiros viviam no exterior. Se tudo der certo, Renato, do início da reportagem, se juntará a eles em breve. Enquanto luta para conseguir o reembolso da passagem com a EY, ele se prepara para retornar à Irlanda. “O país é o Vale do Silício da Europa, as maiores empresas de tecnologia e startups estão lá. Vou voltar e conseguir um emprego novamente.” A esperança continua viva, mesmo na pandemia.