Chefes de primeira viagem
Assumir o primeiro cargo de gestão é o momento mais desafiador da carreira. Veja histórias de líderes que penaram no início e as regras de ouro para uma transição mais suave.
irar chefe é como ter um filho. Na véspera do parto, você é alguém com 0% de prática em cuidados parentais; no dia seguinte, já está no “emprego” de mãe ou pai – e precisa imediatamente fazer o que mães e pais fazem, mesmo sem saber exatamente como.
Não se trata de uma analogia qualquer. A criadora é a americana Linda Hill, professora da Harvard Business School, autoridade em liderança corporativa. De fato: virar chefe é uma transição complexa, que deixa cicatrizes, e trará consequências para o resto da vida. Da sua e da equipe que você comanda.
Há um risco considerável de acontecer o seguinte: você se abalar com a mudança de atividades (e prioridades); ficar com medo de não conquistar o mesmo sucesso que tinha como colaborador individual; acabar apegado às antigas atribuições em vez de abraçar as novas. E, talvez, até um tanto envergonhado ao interagir com os ex-colegas, que agora viraram subordinados. (Poucas coisas são tão mortificantes na rotina do líder novato que dar um feedback severo para um companheiro de happy hour – ou, pior, ter de demiti-lo.) Vocês costumavam falar mal da empresa no cafezinho da copa? Pois agora, aos olhos deles, você é a empresa.
A tão cobiçada cadeira vai parecer desconfortável no início. “Os executivos são formados irrevogavelmente por seus primeiros cargos de gestão”, apontou Linda Hill num artigo para a Harvard Business Review. “Décadas depois, eles se lembram daqueles primeiros meses como experiências transformadoras, que forjaram suas filosofias e estilos de liderança.”
Uma das maiores dificuldades é lidar com as expectativas. Os líderes superiores estarão de olho em você. Vão analisar quão rapidamente, e com quantos tropeços, o gestor novato se adapta à função. Do outro lado, sua nova equipe está aflita para ver que tipo de chefe você será – se vai ajudá-la ou infernizá-la. E mais: geralmente o time espera que o executivo já chegue com respostas para todas as questões – que você não terá, pois o momento de virar líder é marcado muito mais por dúvidas do que por certezas.
Os especialistas costumam falar num período de 90 dias para que a cadeira fique mais ajustada aos contornos do chefe de primeira viagem. “Esses três meses são importantes para o processo de aculturamento”, diz Cíntia Martins, pesquisadora e especialista em liderança e cultura corporativa. “É quando o profissional tem a oportunidade de se ver no novo contexto, entender os desafios da equipe, os pontos críticos, e começar a construir um plano de voo para sua liderança.”
As empresas mais maduras, de qualquer forma, costumam dar um período maior para avaliar se a promoção foi mesmo uma boa escolha. “Seus superiores só vão concluir se você está mesmo internalizando a nova identidade e trazendo resultados depois de seis meses.”
Melhor assim, dada a dimensão da mudança. No que diz respeito às habilidades, um colaborador individual precisa ter domínio técnico do seu trabalho e saber lidar com as ferramentas e processos da empresa. Isso é o que realmente conta. Já se ele for promovido a gestor, o domínio técnico dá lugar a uma lista muito maior de competências: saber delegar atividades, monitorar desempenhos, motivar o pessoal.
A principal mudança, afinal, é parar de executar tarefas que você fazia muito bem (de outra forma não teria ganhado a promoção) e passar a gerir pessoas. E existe um paradoxo nessa transição: quanto melhor tiver sido o profissional em sua função técnica, maior a força invisível que o impede de tirar a mão da massa.
Até por isso, grande parte das empresas busca os novos chefes não entre os ases da parte técnica, mas entre aqueles que se comunicam melhor, demonstram empatia. Tenham, enfim, as habilidade comportamentais, as soft skills necessárias para ser o ponto de referência de uma equipe. E isso tem um outro lado: faz com que gente muito excepcional na parte técnica se sinta frustrada por não conseguir uma chance na liderança.
Por que não eu?
Foi o caso de Emerson Feliciano. Hoje ele é um executivo de mão cheia: gerente sênior de pesquisa e desenvolvimento da Solera, uma multinacional de tecnologias digitais para automóveis. Mas não se esquece dos desafios da primeira gestão, nem das dores de cabeça que teve na carreira por ter sido um exímio técnico antes.
Emerson era analista numa empresa do grupo segurador Mapfre, onde elaborava estudos na área de segurança viária. Era considerado um craque das planilhas mais rebuscadas, e responsável pelos melhores relatórios do seu setor. Ele acabou se destacando inclusive fora da empresa, quando desenvolveu um estudo sobre veículos blindados.
A pesquisa fez com que fosse chamado para dar palestras sobre o tema e para representar a Mapfre em congressos. Exatamente nessa época, o RH do grupo o convidou a participar de um programa de desenvolvimento de lideranças, do qual faziam parte outros colaboradores do seu mesmo nível hierárquico, analistas mais seniores e ainda executivos que já eram líderes em patamares diferentes na companhia.
“Como eu vinha me destacando por causa do estudo de blindados, vi esse programa de desenvolvimento como uma oportunidade real de subir na carreira. Então mergulhei de cabeça. Passava meus finais de semana estudando os temas do programa, me esforçava ao máximo, sabia todas as respostas. E os grupos em que eu estava sempre venciam nas dinâmicas do treinamento”, recorda.
Mas o resultado não foi o que ele esperava. Pelo contrário. “Naquele conjunto todo de profissionais, havia sete analistas técnicos além de mim. Então, no final do treinamento, adivinha o que aconteceu… Desses oito que ainda não tinham posição de liderança, fui o único a não ganhar um cargo de gestão.”
Emerson não achou justo. Ficou tão inconformado que, então prestes a completar 25 anos, foi reclamar na seguradora. “Aí tive um grande aprendizado: foi a primeira vez em que escutei a expressão soft skills na minha vida. Ouvi da coordenadora de Recursos Humanos que não é a performance técnica que faz alguém ser promovido, mas sim as habilidades comportamentais.”
E Emerson queria mais do que ser um técnico acima da média. Correu atrás de cursos fora da empresa ligados a soft skills e liderança. E então, dez meses depois, atingiu seu nirvana: foi promovido a coordenador de pesquisa e desenvolvimento na Mapfre. Sua primeira de muitas gestões.
Ele só não sabia que virar líder não é exatamente se tornar um líder de fato da noite para o dia.
“Meu primeiro desafio foi lidar com o ego. Porque você não quer perder aquele reconhecimento que tinha como técnico. E, já que está começando como gestor, não consegue fazer as entregas com a velocidade que costumava ter como analista. Cheguei a ter desentendimentos fortes com um colaborador porque eu rabiscava os trabalhos dele da primeira à última página. Queria tudo do meu jeito, como se fosse eu quem estivesse fazendo.”
Até que, por orientação de um diretor, Emerson Feliciano fez uma tentativa que, à época, ele achou temerosa: dar mais liberdade a seus liderados. E aí veio a (boa) surpresa. “Comecei a perceber que alguns executavam num caminho totalmente diferente do que eu faria e, mesmo assim, o cliente ficava satisfeito. Às vezes mais satisfeito do que com o meu jeito. Foi quando finalmente entendi que cada colaborador precisa ter sua individualidade respeitada. Um desafio enorme da primeira gestão é aprender a delegar. E delegar com convicção.”
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5 erros mais comuns
- Não largar o osso. Agarrar-se às antigas atividades como técnico adia sua evolução como líder. Desapega.
- Não delegar. Para garantir resultado, muito líder novo quer fazer o trabalho da equipe. Não tem como dar certo.
- Achar que sabe tudo. Querer que todos os trabalhos sejam feitos do seu jeito é um ótimo caminho para estressar e afastar o time.
- Falar mal da empresa. Isso você fazia na happy hour com os colegas. Agora você representa a companhia.
- Agir (só) com o coração. A camaradagem dos velhos tempos não pode ser o guia da sua gestão de equipe. Reconheça quem merece.
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Poliglota
Compreender a individualidade de cada liderado foi uma luta também para o publicitário Felipe Masson. Seu primeiro cargo de gestor já veio numa agência grande, a AlmapBBDO, onde passou a chefiar uma estrutura voltada para produtos de inovação. O objetivo era encontrar fontes alternativas de receita, que não dependessem das campanhas de publicidade. Felipe, então, se viu diante de uma equipe pequena, mas de perfil multidisciplinar. Uma complexidade a mais para quem é chefe pela primeira vez.
“Eram só quatro pessoas abaixo de mim, mas, além de dois publicitários, havia um analista de banco de dados e um estatístico, profissionais que estavam completamente fora do universo que eu conhecia.” Isso lhe rendeu dificuldades de comunicação com, pelo menos, metade da equipe.
“Os publicitários eram extrovertidos, como eu, mas levei um tempo para perceber que um estatístico e um analista de dados tendem a ser mais introspectivos. Eles precisavam de solidão para trabalhar. Meu primeiro grande desafio como gestor foi aprender a me comunicar com essas pessoas. Isso exigiu uma adaptação do meu estilo de interagir e até um aprendizado técnico, para eu conseguir falar a língua deles e saber como demandar qualquer coisa.”
Esse aprendizado se mostrou primordial para a carreira toda de Felipe. Hoje ele é líder de líderes, chefia 15 profissionais como gestor sênior de experiência do cliente na Azul Linhas Aéreas, e enfatiza a importância da boa comunicação a seus subordinados. “Quando você vira líder, precisa se empenhar para conhecer sua equipe. Deve entender exatamente como as pessoas gostam de ser tratadas, que tipo de conexão você pode ter com elas.”
A intrusa
Juliana Fujii também teve um início intenso. Precisou passar por sessões de coaching para aprender a dar feedback. E havia um agravamento em sua situação como primeira gestora: ela nunca tinha trabalhado antes na área em que estreou como líder.
Sempre atuando com crédito no Itaú, Juliana atendia pessoas jurídicas do setor de atacado antes de ganhar sua cadeira de chefe. De lá, foi promovida, mas para uma área bem diferente: tornou-se gerente de estruturação de crédito do private bank.
“Mudou o público com que eu lidava, os parceiros com quem eu interagia e, claro, as pessoas que eu comecei a liderar. Parecia uma mudança de banco. Eu estava chegando a uma equipe onde todo mundo já se conhecia, então a intrusa era eu. Tinha de conquistar as pessoas, mostrar que estava ali com um interesse genuíno de conhecê-las. E dar bons feedbacks é fundamental para transmitir confiança.”
Para isso, Juliana contou com as orientações de uma coach, que abriu seus olhos para a melhor maneira de ter essa conversa tão à flor da pele. “O feedback formal da empresa acontecia uma vez por ano. Um intervalo longo demais. Entendi, no coaching, que o processo precisava ser mais recorrente. E aprendi técnicas de elencar os pontos fortes, o que a pessoa precisa desenvolver. Entendi que o feedback não se baseia necessariamente no que a pessoa é de verdade, mas na minha impressão em relação a ela. Então é preciso descobrir onde esses dois pontos convergem.”
Contar com o apoio de um coach ou de mentores, de dentro ou fora da empresa, pode ser um caminho. “Ouvir a experiência de profissionais mais seniores, que já passaram por esse começo da estrada em que você está, agiliza a transição”, afirma a consultora de carreira Mariana Passos.
No exterior, é comum que profissionais em primeira gestão sejam acompanhados por um mentor assim que assumem o cargo. No Brasil, infelizmente, vale mais a regra do “se vira nos 30”.
Chefe na pandemia
Juliana Fujii foi entrevistada para esta reportagem por videoconferência, de sua própria casa. Ela e sua equipe estão em home office desde março de 2020. Se o período de primeira gestão já não é um passeio de bicicleta com rodinhas, imagine trabalhando a distância…
Segundo Mariana Passos, os chefes de primeira viagem têm penado mais que o normal com a pandemia. “O líder mais experiente já conhece sua equipe, então tudo é menos difícil. Mas, entre os novos, perde-se o caminho natural de criar vínculos e consolidar a cultura da empresa nos liderados.”
Você sabe: não faltam gestores que tiveram de formar seus times entrevistando candidatos pela internet, sem nunca ter tido, até hoje, um encontro presencial. “O onboarding dos funcionários vira um desafio”, explica Mariana. “Porque a cultura organizacional caminha pelos corredores da empresa. Tudo o que o chefe de primeira viagem precisa fazer para se legitimar no início do novo cargo fica mais moroso se tem de ser via Zoom.”
Não é só trabalho
Claro que dá para aprimorar uma gestão a distância. Talvez o melhor caminho seja fazer o máximo para emular o ambiente presencial. Isso significa manter conversas constantes e não falar só de assuntos da empresa nos encontros – trabalhar junto, afinal, não é apenas trabalhar junto. É atravessar um período da vida no qual sua companhia mais constante são os colegas. Se esse ambiente ficar pesado, a vida fica pesada – tanto para a equipe como para você.
Para construir um clima positivo, explore bem o terreno em que está pisando. Busque conhecer cada um de seus liderados, suas expectativas com a empresa – e suas frustrações também. Esteja sempre perto deles. É natural que sua nova posição o aproxime mais de outros gestores, mas não deixe para se conectar com sua equipe só quando precisar dela para cumprir uma meta.
Também não espere a empresa comunicar que você não tem sido um bom líder (seu primeiro feedback nessa linha pode ser o seu último). Cobre retornos periodicamente da sua diretoria para conhecer a impressão dos outros a respeito do seu desempenho como chefe.
E não menos importante: procure dar liberdade para que sua equipe também lhe dê feedback. (Ninguém disse que vai ser fácil.) Afinal, é a vida dessas pessoas que você está melhorando ou tornando mais difícil. Como bem pontua a pesquisadora Cíntia Martins, “você é só um momento dentro da carreira delas, mas vai deixar uma marca profunda, que pode influenciar muito nos caminhos que elas vão seguir. Que tipo de imagem de liderança você quer deixar na memória desses profissionais?”
Em suma, seja o chefe que você gostaria de ter. É o grande passo para que, lá na frente, você se torne de fato o líder que gostaria de ser.
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7 dicas para facilitar a transição para líder
- Conheça a equipe. É a primeira coisa a fazer. Apresente-se. Pergunte muito. Demonstre interesse genuíno nas expectativas e dissabores de seus liderados. Isso cria empatia.
- Respeite a individualidade. As pessoas não são robôs. Depois que você conheceu cada indivíduo da equipe, busque se adaptar ao estilo e ritmo de cada um – desde que esse ritmo não atrapalhe o conjunto.
- Vire a chave. Você pode ter sido o “funcionário do mês” todos os meses. Ótimo, mas isso não vai te ajudar agora. Deixe esse passado e foque na gestão da equipe.
- Tire a capa de superman. Sua equipe espera que você tenha todas as respostas e soluções, como se você acumulasse 20 anos de experiência em gestão. Mas você não tem – ainda. Diga a verdade.
- Seja presente. Mantenha-se próximo da equipe. Deixe as portas abertas. Dê apoio. E vá almoçar com seus liderados. Se todo mundo tem um pouco de raiva do chefe, eles vão ter menos.
- Dê e peça feedback. Diálogos francos e objetivos sobre desempenho e expectativas devem ser recorrentes. E peça para que a diretoria diga o que pensa da sua liderança. Será um aprendizado valioso.
- Busque um mentor. A liderança não é um dom que você incorpora assim que vira chefe pela primeira vez. Ela é um caminho. E o aconselhamento de líderes mais experientes pode criar atalhos.