Continua após publicidade

Quintou: como é a jornada de trabalho de quatro dias para empresas e empregados

Dois terços das empresas consideram mais fácil atrair e reter talentos com semanas de 32 horas. E a produtividade de algumas companhias que testaram o sistema cresceu mesmo com a carga menor. Será uma redução de jornada o futuro do trabalho?

Por Patrícia Basílio | Ilustração: Henrique Petrus | Design: Caroline Aranha | Edição: Bruno Vaiano
Atualizado em 30 ago 2022, 20h28 - Publicado em 12 ago 2022, 06h41

Em 1929, a União Soviética cancelou o conceito de “semana” na indústria e nos serviços. Os novos ciclos, para os trabalhadores urbanos, tinham cinco dias – quatro de trabalho e um de descanso. Acontece que as folgas dos membros de uma mesma família não correspondiam, e isso rolava de propósito. Por exemplo: em um mês qualquer, se você fosse folgar nos dias 1, 6 e 11, sua esposa pegava o 2, o 7 e o 12; seu filho, 3, 8 e 13. Trabalho escalonado, em nível nacional.

Esse devaneio tinha três objetivos: permitir que as fábricas e lojas funcionassem todos os dias, eliminar a família como unidade básica da organização da sociedade e corroer lentamente o papel da igreja cristã ortodoxa como cola da sociedade russa, já que cultos dominicais são impossíveis quando os domingos não existem (a doutrina marxista considera religião “o ópio do povo”, e prevê o ateísmo).

Ao longo de 11 anos, a URSS forçou essa semana de cinco dias. Depois, tentou uma de seis dias, com outra escala. De um jeito ou de outro foi o caos: as máquinas começaram a quebrar por causa do uso contínuo, e não havia pausas para manutenção. Em 1940, o domingo de descanso voltou, mas junto de normas mais duras: pedir demissão, faltar ou se atrasar por mais de 20 minutos se tornaram crimes, com pena de prisão.

Os soviéticos não foram os primeiros a usar os domingos – ou melhor, a falta deles – como ferramenta de controle social. Algo parecido rolou na Revolução Francesa: os republicanos se perderam no personagem e implantaram meses com três semanas de dez dias, apenas um de folga. Cada dia tinha dez horas de cem minutos (para sincronizar esse sistema com o nascer e o pôr do sol na vida real, esses minutos precisavam durar 100 segundos decimais – segundos diferentes, com 86% da duração de um segundo comum).

A ideia, além de pisar no passado monárquico e católico, era impor o sistema métrico, de base dez, a todos os aspectos da vida. A brincadeira começou em 1792 e terminou, fracassada, em 1795. Inevitavelmente, porque folgas em ciclos de sete dias são uma das heranças mais duradouras das civilizações: o dia de pausa dos cristãos é o domingo. O dos judeus, o sábado: shabat, dia em que Deus descansa após criar o mundo no Gênesis. A pausa sagrada islâmica, por sua vez, é na sexta.

O final de semana de dois dias, aliás, é bem mais recente: uma invenção anglo-americana do século 20. O sábado, originalmente, se aplicava só a trabalhadores judeus, que formam uma numerosa diáspora nos EUA. Em 1929, um sindicato de trabalhadores do setor têxtil foi o primeiro a conquistar dois dias de folga semanal. A folga dupla e a atual semana de 40 horas se tornaram uma norma federal em 1940 e se espalharam rapidamente pelo Ocidente.

Continua após a publicidade

Isso só foi possível porque os interesses dos sindicalistas e dos patrões, numa ocasião rara, correspondiam: no pós-Guerra, os EUA produziam tudo em uma escala inédita na história da civilização. Inclusive lazer: havia muitos filmes para assistir, bicicletas para pedalar, hambúrgueres para comer, carros conversíveis para dirigir… Os trabalhadores precisavam de tempo para consumir o que eles próprios fabricavam.

Agora, um século depois, a coincidência de interesses se repete: empresários começam a ver vantagem em uma semana de quatro dias que, em princípio, pareceria beneficiar só os empregados. Será que mais um dia útil está em xeque?  

-
(Henrique Petrus/VOCÊ S/A)

Friday, I’m in love

Trabalhar quatro dias por semana e descansar três, sem redução salarial, representa um equilíbrio utópico entre carreira e vida pessoal. 74% dos profissionais brasileiros acreditam que seriam mais produtivos em uma semana de quatro dias, de acordo com uma pesquisa realizada em maio com 858 pessoas pela plataforma de recrutamento Indeed. Os entrevistados também acreditam que a redução da jornada pode melhorar a saúde mental (85%).

A parte menos óbvia da história é que esse também não é um mau negócio para os patrões: empresas estrangeiras e brasileiras que testam o modelo de 32 horas semanais já verificam, na prática e nas planilhas, que sextar na quinta aumenta o engajamento dos funcionários, ajuda a fidelizá-los à empresa e não se traduz em uma queda de produtividade tão grande assim – se é que há alguma queda.

Continua após a publicidade

Felipe Calbucci, diretor de vendas da Indeed no Brasil, explica que um quintou bem-sucedido exige muito planejamento. Os gestores precisam cortar as tarefas onde não dói – o primeiro passo é transformar reuniões que poderiam ser e-mails em e-mails, mesmo – e adotar métricas claras para medir a produtividade do modelo de 32 horas e compará-la às 40 horas tradicionais.

Foi o que fez a NovaHaus em julho. A empresa, que cria produtos digitais para grandões como Nestlé e Ambev, contratou uma assessoria jurídica e criou um dashboard – um painel de dados atualizado em tempo real – para registrar as atividades e os indicadores de performance. Resultado: “A equipe tem uma carga de trabalho 20% menor, mas está entregando só 7% menos”, diz Leandro Pires, CEO da empresa.

Para ele, o final de semana extralongo foi o jeito de reter talentos após a pandemia, em meio à rotatividade de profissionais da área de tecnologia. O que a NovaHaus perdeu em produtividade às sextas, ela ganhou com um quadro de funcionários mais estável, que não sofre com os engasgos típicos de uma mudança na equipe.

-
(Henrique Petrus/VOCÊ S/A)

Outra companhia brasileira que entrou na dança é a Gerencianet, que ajuda empreendedores pequenos e não tão pequenos assim a gerirem pagamentos.

A fintech implantou a jornada de quatro dias para todos seus 300 colaboradores em julho. O modelo será testado por seis meses e talvez seja adotado em definitivo. Até o final do ano, Evanil de Paula, CEO, vai acompanhar a produtividade e o engajamento da equipe para ver se o dia a menos de trabalho não resultará em horas extras no restante da semana – nem em reclamações dos clientes.

Continua após a publicidade

“O bem-estar e o descanso são fundamentais para a produtividade e para a entrega dos profissionais. Em 20 dias, já vemos reuniões mais objetivas e profissionais mais motivados”, avaliou Evanil.

O líder de tecnologia da Gerencianet, Dayvis Apolinário, 35 anos, tem usado as sextas de folga para ajudar o pai, de 84 anos, com o banco – aplicativos, sabe como é – e os negócios da família. E sobra tempo para buscar o filho, de 3 anos, que mora em outra cidade. “Quando perguntei para o meu filho se ele queria vir para minha casa na sexta, ele ficou todo feliz por ter um dia a mais comigo. Minha família vai ganhar muito com esse benefício.”

Giovana Marques, 25 anos e coordenadora de identidade visual e estratégia de marca do estúdio paulista Rebu – que também adotou as 32h semanais –, resume a mudança de mentalidade: “Coloco o Slack para receber notificações de segunda a quinta. A gente repensou a cultura de urgência. Há coisas que podemos resolver tranquilamente na segunda-feira. E tudo bem. É apenas dar às coisas a importância que elas realmente têm”.

Se vira nas 30 (horas)

Para verificar se uma semana mais equilibrada de trabalho funciona tanto para patrões como para empregados, milhares de profissionais do Reino Unido, EUA, Canadá, Irlanda, Austrália e Nova Zelândia estão testando o modelo desde junho num caráter científico: a organização sem fins lucrativos 4 Day Week Global convenceu 70 empresas a darem finais de semana de três dias para 3.300 funcionários até dezembro.

Continua após a publicidade

No projeto, os participantes estão trabalhando 32 horas por semana e ganhando o mesmo que recebiam por 40 horas, com a promessa de manter 100% da produtividade. Pesquisadores de diversas instituições renomadas, como as universidades britânicas Cambridge e Oxford e a americana Boston College, coletam e analisam os dados.

Cofundadora do 4 Day Week Global, Charlotte Lockhart tem como meta pessoal uma rotina mais equilibrada. Após tratar um câncer de mama no ano passado, a advogada decidiu brigar por mais qualidade de vida para si própria, e transformar sua experiência em um projeto de advocacy mundial. “Os funcionários têm poder no momento. E isso nos dá a oportunidade incrível de reformular o trabalho na sociedade.”

A companhia britânica Girling Jones, que faz recrutamento para o setor de construção, é uma das que testa a jornada de quatro dias no âmbito do projeto – eles já haviam começado por conta própria em janeiro, seis meses antes do início oficial, após uma reunião de brainstorm com o objetivo de tornar a empresa mais atraente para novos talentos.

Simon Girling, diretor da empresa, anunciou o novo esquema na festa de fim de ano da equipe – e a notícia foi bem recebida. “Oferecemos uma jornada de 32 horas sem redução salarial com duas condições: a produtividade e a qualidade no atendimento ao cliente tinham de permanecer as mesmas.”

-
(Henrique Petrus/VOCÊ S/A)

Os dados falam

Continua após a publicidade

Em sete meses, os resultados da Girling Jones já indicaram os benefícios do modelo: as vendas aumentaram 21% no primeiro trimestre, em relação ao mesmo período do ano passado. A quantidade de entrevistas (eles são uma empresa de recrutamento, afinal) subiu 23% – de fato, todos os indicadores importantes melhoraram, o que tornou a empresa alvo de dezenas de reportagens na mídia de língua inglesa.

“Até agora, está tudo indo bem. A parte mais difícil do processo foi tomar a decisão”, diz Simon. Claro. Esse é um medo compartilhado por muitos gestores: 70% das empresas acreditam que semanas de quatro dias são complicadas demais para gerenciar com sucesso, e 75% veem a indisponibilidade para os clientes como o grande empecilho.

Esses dados vêm de entrevistas com quinhentos empresários britânicos, publicados na pesquisa The four-day week: The pandemic and the evolution of flexible-working (“A semana de quatro dias: a pandemia e a evolução do trabalho flexível”), realizada pela Henley Business School em novembro do ano passado.

Outras descobertas: as mulheres estão mais dispostas a adotar novos modelos de trabalho do que os homens – que tendem a preferir regimes mais tradicionais. 79% delas consideraram o modelo de 4 dias de trabalho atraente, contra 61% deles. Um reflexo evidente do maior número de responsabilidades que as mulheres têm na vida doméstica.

A maioria das empresas que adotou a redução da jornada na equipe verificou um aumento na qualidade do trabalho (64%), mais capacidade de atrair e reter talentos (68%) e menos estresse entre os funcionários (78%).

Esses indicadores de bem-estar da equipe interessam aos gestores cada vez mais diante de um fenômeno conhecido como Grande Resignação. Com o advento do home office entre funcionários de colarinho branco – e na contramão da crise econômica global catalisada pela Covid-19, que em teoria tornaria as pessoas mais apegadas a seus empregos –, o número de pedidos de demissão voluntários alcançou picos inéditos de 4 milhões mensais nos EUA.

A tendência chegou ao Brasil, ainda que em menor escala: um levantamento encomendado pela Você S/A revelou que, embora a taxa de desemprego esteja em 9,3% – vinda de 13% no começo do ano –, o número de demissões voluntárias por mês está acima da média desde agosto de 2020: houve picos de 600 mil pedidos, contra o patamar de 270 mil antes da pandemia.

As pessoas saem em busca de salários mais altos, ambientes de trabalho mais salubres ou maior qualidade de vida. E é fato que a semana de quatro dias age diretamente em prol deste último fator.

A grande questão é combinar o jogo, porque a parte da “indisponibilidade para os clientes” não tem uma solução simples. Ou todo mundo, na maior parte do planeta, decide sextar na quinta, ou nada feito. Mas a história mostra que um dia a mais de lazer pode, sim, fazer bem à economia – se não nem o conceito do sábado livre teria vingado.

Talvez este momento da história seja a hora certa para a humanidade perceber o que escapou aos soviéticos e aos revolucionários franceses: é o trabalho que precisa se adaptar à vida, e não a vida ao trabalho. E com a vida em primeiro plano, não é mistério que o trabalho se torne melhor. 

Publicidade