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O futuro do anywhere office

A ideia de trabalhar de qualquer lugar do país, ou do mundo, é uma realidade que tem tudo para sobreviver à pandemia. Veja os atalhos para tirar esse sonho do papel – e entenda os riscos que essa decisão traz para sua carreira.

Por Tássia Kastner e Juliana Américo | Ilustração: Tayrine Cruz | Design: Tiago Araujo | Edição: Alexandre Versignassi
Atualizado em 20 ago 2021, 08h24 - Publicado em 19 ago 2021, 15h00
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essa altura, você provavelmente já tomou pelo menos a primeira dose da vacina contra a Covid. As empresas também estavam ansiosas por esse momento. Depois de um ano e meio de home office forçado, elas começam a organizar a volta aos escritórios (isso se a variante delta permitir, claro). Só que uma coisa é convidar funcionários confinados em apartamentos pequenos a sair de casa algumas vezes na semana, outra bem diferente é chamar aqueles que viram no modo remoto compulsório a possibilidade de trabalhar de qualquer lugar, de preferência em outra cidade ou outro país.

O anywhere office sempre pareceu uma utopia millennial. Aquele mundo possível apenas para influenciadores digitais ou empreendedores da economia criativa, cujo trabalho consistiria em abrir um Macbook em um café hipster às 10h da manhã, mandar meia dúzia de emails, programar algumas postagens em redes sociais e dar o expediente por encerrado antes da hora do almoço. O oposto disso são trabalhadores mortais, com oito horas por dia de planilhas e relatórios garantidos, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Para esses, nunca houve qualquer possibilidade de anywhere office.

Até março de 2020.

Nessa fenda que a pandemia abriu no tecido cósmico, os dois mundos se fundiram. Só não saiu exatamente como os mais otimistas imaginavam. Quem idealizava a liberdade dos moderninhos descobriu que a rotina fora do escritório é até mais puxada do que dentro. No modo normal de trabalho, não é comum estar no escritório às 23h, completamente focado. Em casa, o expediente tende a não ter hora para acabar. Como disse Satya Nadella, CEO da Microsoft: “Home office não é exatamente trabalhar em casa. É dormir no escritório”.

Por outro lado, percebeu-se que mesmo carreiras mais tradicionais podem se adaptar a uma rotina 100% remota. Dá para trabalhar de uma praia, de uma cidadezinha histórica no interior, de Amsterdã, da Lua.

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Com isso, surgiram diversas teorias. A revista britânica The Economist proclamou no passado “a morte do escritório”. Mas a verdade é que o home ou o anywhere office não será necessariamente a regra. Trabalho, afinal, é muito mais do que cumprir um conjunto de tarefas para as quais o empregador paga o seu salário. A empresa também paga para que você crie inovações com seus colegas. Mais: muita gente tem o prazer de não trabalhar só por dinheiro. Mas também pelo prazer social, pelo privilégio de criar laços com gente interessante, como define Laura Castelhano, pesquisadora de trabalho e carreira da PUC-SP.

A consultoria Robert Half ouviu executivos e descobriu que 95% das empresas planejam um modelo híbrido para o mundo pós-pandêmico. Esse “híbrido” tem mais de um significado. Um é o mais convencional: você trabalha uma parte do tempo em casa e vai ao escritório algumas vezes por semana. O outro libera funcionários de certas áreas para o trabalho completamente remoto, e estipula que o restante deve ir ao escritório todos os dias.

A pesquisa não diz quem pretende adotar cada modelo – boa parte das empresas ainda está longe de decidir, na verdade. Mesmo assim, a intenção atende em parte ao que os próprios funcionários desejam. O mesmo estudo mostra que, se pudessem escolher, 62% dos trabalhadores não voltariam ao esquema anterior. Fariam home office de uma a três vezes por semana. E 22% disseram que prefeririam não voltar ao escritório nunca mais.
E as negociações estão em andamento pelo mundo. O Google, que no começo disse que todos deveriam estar ao menos três vezes por semana no escritório, deve autorizar 20% da equipe a permanecer em modo remoto. Mais uma dezena de empresas americanas, especialmente ligadas à tecnologia, também foram por esse caminho.

No Brasil, a XP anunciou que passaria a um modelo de anywhere office no meio do ano passado. A corretora contratou 2.750 pessoas entre 2020 e 2021; dessas, 2.085 são de fora de São Paulo, onde fica a sede da empresa. Dos 4.816 funcionários da companhia, 44% aceitaram migrar para o regime de teletrabalho com possibilidade de viver em qualquer lugar. É a tendência global.

O The Conference Board, uma organização americana, calculou que só 8% dos postos de trabalho eram prioritariamente remotos nos EUA antes do coronavírus. Para o cenário pós-pandêmico, as estimativas variam de 20% a 50% das vagas. A pesquisa se debruçou sobre anúncios de emprego e detectou que vagas nas áreas de TI, finanças e seguros agora têm a opção de trabalho remoto com mais frequência.

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TI era o esperado. Primeiro porque, no setor de tecnologia, é mais fácil trabalhar de forma assíncrona, em que basta entregar a tarefa, não importando como, quando ou onde você tenha executado a atividade.

Mas só isso não explica a maior flexibilidade nesse caso. Há também uma escassez global de mão de obra na área. Esses profissionais são tão disputados que as empresas simplesmente não encontram candidatos se forem convencionais demais. “Nos EUA, as vagas são para quatro dias em casa, um no escritório. Se for diferente disso, eles perdem o candidato”, diz Lucas Nogueira, da Robert Half. Claro que o desemprego em 5,4% nos Estados Unidos aumenta o poder de barganha do funcionário. Por aqui, a taxa está em 14,7%.

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O anywhere office parecia algo restrito a influenciadores, mas se tornou realidade para quem tem carreiras mais tradicionais. (Tayrine Cruz/VOCÊ S/A)

Meu escritório é na praia

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boa notícia é que, para quem gostou da possibilidade de trabalhar de qualquer lugar, as chances de manter a nova vida são reais. “Eu não vou conseguir trazer de volta para São Paulo os advogados que compraram casa na praia e nadam às 5h da manhã. Não se tira isso das pessoas”, diz Isabel Bueno, advogada e sócia do escritório Mattos Filho.

Aline Toretto também foi para a praia. Ela é gerente de RH numa startup financeira, a 180° Seguros. No ano passado, mudou com mala, cuia, namorado e cachorra para Trancoso.

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A mudança começou a ser desenhada quando ficou inviável para Aline conciliar trabalho e um ruidoso apartamento de 50 metros quadrados. Em vez de simplesmente buscar uma casa maior, o casal tentou outro estilo de vida. No começo, a ideia era ficar só três meses no litoral baiano, e depois seguir viagem em busca de uma nova casa temporária. Acabaram ficando por lá mesmo.

“Trancoso é uma cidade pequena, mas turística. Tem um centro desenvolvido, com restaurantes. A gente acaba estabelecendo uma vida social interessante aqui”, conta. Mas o destino só foi decidido depois que testaram a conexão com a internet. “É da responsabilidade de quem está fazendo esse movimento garantir a internet. Aqui, a fibra é ótima, e a gente testou antes.”

Essa é uma constante. Quem deixa a cidade, mas não o emprego, se sente ainda mais responsável por garantir boas condições de trabalho e a entrega de resultados. Uma espécie de compromisso a mais com a empresa que concedeu o benefício. O casal Camila Schmalz e Edson Feltrin passou a vida inteira em Joinville. Neste ano, venderam a casa e agora terminam a construção de um motorhome. Até janeiro do próximo ano, o escritório será na estrada, em viagens que podem ultrapassar as fronteiras do país. Antes, porém, eles pretendem fazer algumas viagens-teste para entender melhor a viabilidade da empreitada.

Os dois trabalham na Neogrid, uma empresa de tecnologia – ela é gerente de marketing; ele, analista de produtos. “Nossa van terá um pequeno escritório, que atende a nós dois. E vamos manter as nossas rotinas no trabalho e ter uma viagem mais tranquila. Parar durante a semana em um camping ou em uma estrutura um pouco mais estável, para garantir o desempenho profissional”, diz Camila.

“Nosso primeiro foco é o trabalho. Só que na sexta-feira, quando acabar o expediente, a gente vai estar na beira de algum penhasco com vista para o mar”, brinca Edson. Brinca não: fala sério mesmo.

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Outra vantagem para quem decide ir para algum lugar mais calmo, além dos eventuais penhascos com o mar batendo de tardezinha, é o custo de vida. O salário continua o mesmo. Nisso, há uma larga vantagem no Brasil. O pessoal do Google que sair do Vale do Silício, por exemplo, muito provavelmente terá algum corte de salário, já que a legislação americana permite adequar o pagamento ao custo de vida do lugar onde o funcionário vive.

O que as empresas daqui fazem quando oficializam o home office é converter o contrato do regime tradicional para teletrabalho. Isso garante a dispensa de bater ponto, e dá ao profissional mais autonomia sobre seu tempo. De resto, se ele não tem tarefas presenciais, o DDD do telefone é um detalhe.

Avisar o empregador dos planos de mudança também pode trazer outras vantagens, como adaptação de benefícios. Um exemplo: o plano de saúde pode ter um upgrade para cobertura nacional, por exemplo. Só não conte com isso se seu plano for mudar de DDI.

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Mudar de fuso horário exige flexibilidade para participar de reuniões. E pode ampliar a jornada de trabalho. (Tayrine Cruz/VOCÊ S/A)

All around the world

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e você tem o sonho de viver fora do país sem o incômodo de ter de largar o seu emprego, lembre-se do seguinte: a gente aqui do Brasil volta e meia sofre de síndrome de patinho feio, mas o nosso passaporte não é dos piores: abre a fronteira de 79 países sem a necessidade de visto. Outros 38 concedem visto na chegada, o que consiste basicamente em pagar uma taxa de acesso. É uma quantidade generosa de lugares com portas abertas, o que coloca o Brasil na 15ª posição de passaporte mais poderoso do mundo.

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Há um porém. Esses lugares dão visto de turismo. Em tese, você não pode embarcar para Paris com o plano de passar três meses trabalhando por lá, mesmo que para um emprego no Brasil. Em tese, claro. Ninguém vai invadir a sua casa perguntando se você está trabalhando, e não turistando. Sem falar que visto de turista te deixa ficar só 90 dias em cada país, o que torna a logística de uma vida nômade internacional um pouco mais complexa.
O mineiro Renato Ribeiro tem feito isso. Ele deixou o Brasil em fevereiro deste ano sem planos de voltar. Head de conteúdo da equipe de marketing da BeerOrCoffee (uma empresa de coworking), Renato é um pioneiro do home office: trabalha nesse regime desde 2019. E agora conseguiu planejar uma vida que concilia trabalho com viagem – e com as restrições da pandemia.

“A princípio, eu estava planejando ir para a Argentina, mas as fronteiras foram fechadas. Por causa disso, eu decidi ir para a África, porque é uma região que está recebendo brasileiros.” Depois de 15 dias fora do Brasil, as fronteiras até reabrem para você, porque aí o mundo deixa de achar que a pessoa é um vetor de Covid só por ser brasileira.

Desde o começo do ano, Renato passou pela África do Sul e pela Etiópia. Depois subiu para a Europa, buscando países com fronteiras mais abertas: Macedônia do Norte, Sérvia e Bósnia, onde está agora. Ele ficou pelo menos um mês em cada lugar, para dar tempo de virar a chave do “turismo” para “vida local”. “Ainda não tenho certeza do próximo destino, porque depende muito das questões da Covid e da vacinação. Mas estou pensando em ir para a Croácia e para a Hungria.”

A nova vida é bancada com o salário em reais, e ele procura países com custo de vida semelhante ao nosso. Renato recebe na conta de banco que tem no Brasil e transfere para uma conta digital que abriu na Europa – é mais simples abrir contas em fintechs por lá, igual aqui. Com o dinheiro em moeda estrangeira, faz pagamentos com cartão de débito ou saca, quando necessário. A ideia é seguir a vida assim e voltar para o Brasil apenas para visitar a família.

A Receita Federal pode ser uma pedra no sapato a quem pretende virar nômade global para sempre. Quem deixa o Brasil sem planos de voltar deve fazer a declaração definitiva de saída do país, um acerto de contas de Imposto de Renda por aqui. Só que, depois disso, as contas bancárias normais são fechadas e o CPF é suspenso. Você pode até não avisar a Receita, mas, pela regra, o Fisco assume que você deixou o país em definitivo depois de 183 dias fora.

Ou seja: quem pretende passar uma boa temporada no exterior sem largar o batente brasileiro precisa voltar para cá no mínimo duas vezes por ano. E isso é importante por outro motivo também. É que a maioria dos países passa a contar a pessoa como residente fiscal depois de 183 dias (aí você precisaria pagar impostos lá sem deixar de pagar no Brasil).

Antes da pandemia, multinacionais que desejassem ter funcionários fora do país cuidavam de todo o processo de expatriação: conseguir o visto, ajudar na instalação da família, nas questões fiscais e no pagamento na moeda local do país.

Para a empresa, é crucial que você mantenha residência fiscal no Brasil. É que não residentes têm outro regime de Imposto de Renda: pagam 25% direto na fonte. Quem recolhe é a empresa. E tudo que ela não quer é essa dor de cabeça extra.

No modo “mudança voluntária”, de qualquer forma, o contrato de trabalho continua brasileiro e esse é o tipo de imbróglio que precisa ser solucionado por quem decide sair do país. Sem falar no salário, que continua a ser pago em reais, o que pode pesar na conta de quem quer viver em dólares ou euros.

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O anywhere office amplia as possibilidades de crescimento. Quem trabalha para uma multinacional não precisa mais mudar de país para ser promovido. (Tayrine Cruz/VOCÊ S/A)

Nomad Visa

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lguns países viram no anywhere office uma oportunidade para atrair um turismo de longo prazo, e decidiram limar as barreiras burocráticas de visto e imposto. É o caso da Estônia, primeira nação a criar um visto para nômades digitais. A ex-república soviética, conhecida por suas medidas arrojadas (como o voto via internet), concede prazo de permanência mais longo, geralmente um ano, e dá isenção tributária completa, como se você fosse turista mesmo. A condição é que você vá com um emprego no seu país de origem, já que esse tipo de visto não permite trabalho para empresas locais.

Depois da Estônia, outros países replicaram a ideia: Barbados, Dubai, Islândia, Ilhas Cayman e Croácia. A ideia é justamente fisgar profissionais esgotados pelo confinamento – e o dinheiro deles (bem-vindo num contexto de crise econômica). Só tem um detalhe. Todos pedem uma renda generosa para conceder o visto, uma espécie de garantia de que você vai levar mesmo dinheiro para lá, e não virar um trabalhador ilegal na primeira oportunidade – o visto de nômade não dá direito de trabalhar para empresas desses países. Sem falar que, em alguns casos, o custo de vida é brutal. Em Reikjavik, capital da Islândia, uma garrafa de cerveja sai por R$ 20 – e isso no supermercado. No bar custa R$ 50. Ou seja: você tem de comprovar que consegue arcar com isso trabalhando para o Brasil mesmo.

Nos países da União Europeia, os vistos são escassos. Portugal e Alemanha têm vistos de trabalho para freelancers, só que aí é o contrário dos programas do tipo nomad: você precisa pagar impostos lá e, claro, está livre para atender clientes do país de destino.

Mas nem só de burocracia vive o estilo de vida errante. Portugal criou uma espécie de vila para andarilhos digitais na Ilha da Madeira. O programa, voltado para europeus que queiram sair das cidades grandes para as praias da terra natal de Cristiano Ronaldo, oferece internet, espaço de coworking e uma rede de contatos, para amenizar o isolamento de quem vive viajando. O Rio de Janeiro testa algo semelhante. Criou um site que lista opções de coworking e hospedagem para atrair gente que deseje passar um tempo na cidade mais fotogênica do país, sem ser nas férias.


 

Vistos para nômades digitais

Estônia

Custo do visto: 100 euros
Renda mínima: 3.504 euros por mês nos seis meses que antecedem a mudança
Validade do visto: até 1 ano
Site oficial

Bardados

Custo do visto: US$ 2.000 (ou US$ 3.000 para famílias)
Renda mínima: US$ 50 mil em 12 meses ou declaração de poupança para bancar o custo de vida no período
Validade do visto: até 1 ano
Site oficial Dubai

Custo do visto: US$ 611
Renda mínima: US$ 5.000 por mês
Validade do visto: até 1 ano
Site oficial

Islândia

Custo do visto: 12.200 coroas islandesas (R$ 510)
Renda mínima: 1 milhão de coroas islandesas por mês (R$ 41 mil)
Validade do visto: 1 ano
Site oficial

Ilhas Cayman

Custo do visto: US$ 1.469
Renda mínima: US$ 100 mil ao ano
Validade do visto: até dois anos
Site oficial

Croácia

Custo do visto: 1.190 kunas croatas (R$ 960)
Renda mínima: provar reserva de R$ 163 mil (para um ano de estadia)
Validade do visto: até um ano
Site oficial 

Trabalhar para a gringa, sem sair do Brasil

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em mais um jeito de tirar proveito do anywhere office. Lucila Del Grande é diretora executiva de RH da Bridgestone para a América Latina desde março do ano passado. A promoção poderia ter acontecido em 2018, mas ela não aceitou. Naquele ano, um pré-requisito para assumir o cargo era a mudança para os Estados Unidos. “Eu recusei porque sou casada, tenho filhos e não tenho essa mobilidade.”

Demorou, mas, no fim, a pandemia garantiu o avanço na carreira. Quando todos os funcionários administrativos foram para o home office, a matriz da empresa descobriu que o cargo não precisava ser presencial. O plano da empresa é seguir com trabalho híbrido. “Então, quando tudo isso passar, a posição vai ficar situada no Brasil. E não sou a única na Bridgestone. Tem um diretor de planta que cuida da equipe da Argentina e também fica aqui no Brasil”, diz Lucila.

Esse é só um dos exemplos de como empresas abertas ao anywhere office oferecem mais possibilidades de crescimento profissional. Dan Paranhos, 33, é de Goiânia e trabalha de modo 100% remoto desde 2016. A primeira experiência foi com a americana Cornerstone OnDemand, que até tinha um escritório em São Paulo. Ele, no entanto, nunca teve a obrigação de ir ao local. E aproveitou a flexibilidade para trabalhar de qualquer lugar.
“Tenho um amigo que mora na Polônia. Ele casou e me chamou para o casamento. E não tem como fazer um bate-volta para a Polônia de um final de semana. Aí aproveitei e passei um mês lá, tirei alguns dias de folga, mas fiquei trabalhando de lá mesmo”, conta.

Um fuso muito louco

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uem virou zumbi para acompanhar a Olimpíada teve uma boa amostra do que pode acontecer com quem trabalha em fuso horário maluco. É um desafio real para quem decide mudar seu home office de país ou topa trabalhar para uma empresa estrangeira. Uma reunião marcada para as 15h aqui no Brasil ocorrerá às 20h, se você estiver na Alemanha, e às 3h da manhã, se você se mudar para a Austrália.

De Sarajevo, Renato Ribeiro diz que tem liberdade para fazer o próprio horário. Ainda assim, bate um “sentimento de culpa” por não seguir a jornada dos colegas. “Minha liderança me dá toda a liberdade para fazer as coisas de forma assíncrona. Mas tem dias em que eu me sinto na obrigação de estar no mesmo horário com meus colegas. Então, vira e mexe, são 23h30 aqui e eu tô abrindo o Slack, porque é a hora que a galera está fervendo no Brasil”, conta.

Na OLX, uma empresa que abraçou o anywhere office com carinho, a presença em reuniões não é obrigatória, e as realmente importantes ficam gravadas. Isso ameniza o problema de diferença de horário. “Meu chefe está na Holanda. Ele se organizou, e estamos fazendo as reuniões de manhã [no Brasil], porque à tarde já é de noite para ele”, diz Sergio Povoa, diretor de Recursos Humanos da empresa.

Mas dá para tirar partido da diferença de horários também. Ter uma equipe em vários fusos pode esticar o dia e diminuir o número de horas extras. É o que explica Ana Carolina Queiroz, advogada brasileira que vive na Bélgica e comanda uma equipe espalhada por escritórios em Amsterdã, Londres, Miami, Belo Horizonte e São Paulo.

“Se acaba o dia na Europa, eu tenho alguém de Miami que vai poder continuar o trabalho sem perturbar quem já terminou o expediente.”

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Uma parte do trabalho não é exatamente trabalho, mas a conexão com colegas e chefes. Quem está longe do escritório tem mais dificuldade de interação e pode perder oportunidades na carreira. (Tayrine Cruz/VOCÊ S/A)

O que os olhos não veem

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uas chances de crescer profissionalmente não estão ligadas só à sua competência técnica. Tão fundamental quanto os resultados é a sua capacidade de se relacionar bem com colegas e chefes. É dessa boa conexão que surgem chances como a de entrar em um projeto de maior visibilidade – daqueles com potencial para render uma promoção.

Se você está longe dos olhos do seu gestor, porém, fica mais difícil de ser indicado para trabalhos de mais responsabilidade. Com todo mundo em home office, beleza. Ficam todos em pé de igualdade, fazendo a social pelo Zoom mesmo. Numa realidade em que alguns decidem trabalhar na sede da companhia e outros preferem penhascos mundo afora, o pessoal do penhasco tende a ficar para trás.

E isso é uma dor de cabeça para as empresas também. Moralmente falando, as que adotaram o anywhere office não podem discriminar entre quem vai ao escritório e quem é apenas um quadradinho na tela da videoconferência.

Mas empresas são feitas de pessoas. E pessoas gostam de contato ao vivo. Ponto. Um estudo da Universidade de Stanford acompanhou funcionários de call center de uma empresa de viagens de Xangai por nove meses. Aqueles que estavam em home office foram mais produtivos, porque fizeram mais ligações e menos intervalos entre as chamadas. Ainda assim, tiveram menos aumentos.

Ou seja: se é assim em funções que não exigem uma baita interação interpessoal, imagina nas que exigem. “A gente tem essa sensação de que está perdendo algo quando não participa de uma reunião. Não é a mesma coisa de estar em vídeo”, diz Laura Castelhano, da PUC-SP.

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Nômade digitais tendem a se reunir em coworkings: sentem falta de um escritório de verdade quando precisam se concentrar. (Tayrine Cruz/VOCÊ S/A)

Não só isso. Seres humanos aprendem também por imitação. A gente vê como um colega mais experiente resolve um problema ou interage com o chefe, e acaba incorporando uma parte desse comportamento. Observar é parte do amadurecimento profissional.

Sem falar que nem tudo no trampo é trampo. “No espaço físico é onde tem a interação off-trabalho. E boa parte das coisas que a gente assimila profissionalmente é quando não está trabalhando. A questão da cultura da empresa vem do território. O espaço ajuda na conexão das pessoas”, acrescenta Castelhano.

A XP, por exemplo, já planeja voltar a fazer a integração de funcionários presencialmente, mesmo que eles sejam de outros lugares do país. “Antes da pandemia, você estava no escritório, você via as cores da XP, as frases, a diretoria andando para lá e para cá. Você sentia o clima. No modelo remoto, isso é difícil de transmitir”, diz Dalal Ghosn, head do programa XP Anywhere.

A realidade do trabalho é uma força que puxa a vida para algo mais próximo da normalidade do que do sonho de viver de galho em galho. O antropólogo Dave Cook acompanhou 16 nômades digitais por quatro anos. E constatou que as pessoas passaram a viajar menos depois de algum tempo. Cada mudança de cidade ou de país pode ser excitante, mas consome um belo tempo de adaptação, o que gera estresse.

Eles também passaram a fugir de áreas mais turísticas das cidades, para evitar o clima de festa enquanto precisam trabalhar. Ou seja, você acaba num ambiente mais parecido com o da sua cidade original: as áreas não turísticas de Berlim, Amsterdã ou Cidade do Cabo são tão cinzentas quanto a de qualquer cidade chata.

O estudo de Dave Cook também mostrou que os nômades são uma espécie que tende a se reunir em coworkings quando se tromba pelo mundo. Nos depoimentos, eles disseram que precisavam de um ambiente mais ligado ao trabalho para que conseguissem se concentrar e ser produtivos. Pois é. No fim, até pode ser anywhere, desde que seja em um office.

Colaboraram: Isa Soter e Luiz Guilherme Moraes Rego Migliora, do Veirano Advogados; Tomas Machado de Oliveira e Rafael de Filippis, do Mattos Filho; Lorena Vasconcellos, diretora de RH da Méliuz; Ariane Espindola, Head de Gente & Gestão da Neogrid.

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