O estranho mundo do trading esportivo
Eles tomam emprestadas expressões típicas do mercado financeiro. E utilizam táticas de aposta semelhantes às do day trade. Conheça o universo dos traders esportivos – e entenda o cenário de regulação das apostas no Brasil.
Em um vídeo com mais de 500 mil acessos no Youtube, um influenciador dá conselhos para quem quer mergulhar fundo no universo das apostas. Ele as chama de “investimentos esportivos”. E diz que, para quem tem preparo emocional e um plano de ação bem definido, a estrada dos tijolos amarelos leva à profissionalização da coisa – e à renda garantida para os apostadores.
Seu discurso é repleto de expressões emprestadas do mundo das finanças. “O primeiro passo (…) é entender que você está inserido no mercado de renda variável”, diz. Significaria que o desempenho de cada aposta é incerto (e que, portanto, nem sempre gera lucro). O foco, então, deveria ser no longo prazo, de forma que o saldo geral de apostas fechasse no verde.
Ele aconselha seus espectadores a administrarem o “risco/retorno do investimento”, não colocando grana demais em uma única aposta. E fala em “perfil do investidor”: conservadores, moderados e arrojados.
O papo de investimento e dinheiro garantido, claro, não passa de conversa fiada – falaremos disso mais tarde. Mas o empréstimo de termos do mercado financeiro não é pura jogada de marketing. Esta é uma linguagem comum na comunidade do trading esportivo, uma subcategoria de apostas que leva o jogo bem a sério. Por lá, apostadores buscam ganhar dinheiro com a variação de probabilidades de vitória em eventos esportivos, numa dinâmica de mercado que se assemelha ao day trade.
Existem dois tipos de casas de apostas internet afora: as convencionais e as exchanges. As tradicionais funcionam num sistema jogador vs. bet. Ou seja: é a casa quem te paga caso seu palpite esteja certo (no jargão de apostadores, “dê green”), e é ela quem fica com a sua grana quando você perde (dá red).
Nas bolsas esportivas, as odds se movimentam de acordo com a oferta e a demanda real dos apostadores.
Também é ela quem decide quanto vai te pagar, já que tem controle sobre as odds da aposta – as cotações, que refletem a probabilidade de aquele evento acontecer. Para quem não está familiarizado: imagine um jogo de futebol em que as odds são de 2.00 para a vitória do time A; 3.50 para a vitória do time B e 3.00 para um empate. Esses números indicam quanto o apostador pode ganhar para cada real apostado.
Se você aposta R$ 50 na vitória do A, sai com R$ 100 (50 x 2.00) caso o cenário se concretize. Se não rolar, dá tchau aos R$ 50. Já em caso de triunfo do time B, quem apostou as fichas ali fica com R$ 175 (50 x 3.50). Esses valores têm uma relação inversa com a probabilidade de êxito de cada time: odds mais altas significam que o “mercado” de apostas enxerga menos chances de vitória para aquela equipe.
Para descobrir a probabilidade considerada no ato de determinar essas cotações, basta uma continha simples: 100 dividido pela odd. No nosso exemplo, o time A tem 50% de chance de ganhar, contra 28,5% para a vitória do B e 33% para um empate.
Reparou que a soma não fecha em 100%? Dá 111,5. Pois então. Essa é uma margem que certifica a rentabilidade do negócio para as casas de apostas. Elas fazem isso, por exemplo, superestimando a chance de vitória do time favorito para que sua cotação (e o valor pago aos vencedores) diminua.
As bolsas esportivas
Nas chamadas exchanges esportivas é diferente. Nessas, os jogadores apostam entre si: tem os backers, que cravam que determinado evento vai acontecer, e os layers, que acham que a coisa não vai ocorrer. Aqui, ao invés de três opções possíveis para um jogo de futebol (vitória do time A, vitória do time B ou empate), temos seis alternativas: você pode apostar tanto que o time A vai ganhar (back) quanto que ele não vai ganhar (lay). E o mesmo para o empate ou para o desempenho do time B.
Nesse sistema, a casa de apostas funciona como uma intermediária das negociações entre backers e layers – e ganha dinheiro cobrando comissões sobre os lucros dos vencedores. O modelo de negócios dela não depende do fracasso dos jogadores, então as odds ali flutuam com mais liberdade, subindo e descendo de acordo com a oferta e a demanda real dos apostadores.
No nosso jogo do time A contra o time B: dias antes do início da partida, apostadores começam a se enfrentar com palpites sobre o resultado. Anfitriã dessa festa, a casa de apostas trata de buscar correspondentes em lados opostos. Tipo: se você coloca R$ 100 na vitória do time A com uma odd a 2.00, ela encontra quem aceite essas mesmas condições apostando na não-vitória (lay) da equipe. Feito esse match, é aquilo: para um ganhar, o outro precisa perder. Os apostadores mais assíduos dessa modalidade chamam a si mesmos de traders esportivos.
Mas a mágica da coisa é outra: as apostas continuam rolando ao vivo durante a partida, e os apostadores podem entrar e sair de suas posições a qualquer momento. Essa configuração, com negociações mais independentes, cria uma sensação de livre mercado. E as possibilidades tendem ao infinito. Vejamos aqui.
Quebrando a banca
Uma tática comum é a de “hedge” (cobertura) das apostas. Mais ou menos assim: imagine que o time A, em quem você havia apostado R$ 100 antes do início da partida, marca um gol. Depois disso, a odd para a vitória da equipe vai de 2.00 para 1.50 – já que, agora, ela tem uma vantagem iminente.
Nessa, você escolhe se proteger, apostando uma quantia menor (uns R$ 75) em lay. Aí fica assim: caso a equipe ganhe, você sai com lucro de R$ 125 (R$ 200 da sua aposta em back menos os R$ 75 do lay). Já se a equipe perder, a aposta em lay salva o dia. São R$ 112,75 (R$ 75 X 1.50) – R$ 100. Lucro de R$ 12,75 (menos a taxa de serviço cobrada pela casa).
Essa é uma estratégia comum no mundo do day trade – que envolve principalmente palpites sobre como estará a cotação do dólar ou a pontuação do Ibovespa no futuro. E, à primeira vista, parece uma receita infalível para fazer dinheiro. Não é bem assim, claro. O sucesso (seja nas apostas esportivas, seja no day trade da bolsa) sempre depende que as odds do jogo se movimentem em seu favor, e que você reaja às variações numa janela de tempo curtíssima.
Segundo os traders, tanto da bolsa financeira como da bolsa esportiva, essa habilidade depende não apenas de sorte, mas de um certo nível de profissionalização.
Ricardo Santos mergulhou no trading esportivo de futebol em 2011. Antes disso, trabalhava como enfermeiro e, vez ou outra, testava a sorte no poker online. Ele conta que, na época, o trading lhe pareceu uma alternativa mais segura quando comparada aos outros tipos de aposta.
Nos primeiros quatro anos se dedicando à atividade, Ricardo perdeu R$ 120 mil. Depois disso, ele diz ter pegado o jeito da coisa. Desde então, transformou o trading esportivo em profissão. Sua jornada costuma começar às 14h e se estende até as 23h30. Com descanso só aos sábados.
A rotina de trabalho começa tentando tirar o máximo de informações possíveis dos jogos da semana. Isso inclui consultar setoristas dos clubes para descobrir eventuais jogadores machucados, trocas nas equipes, atrasos nos salários – qualquer fator que possa influenciar o desempenho dos times em campo. “É um jogo de informação. Se eu tenho mais dados, consigo calcular melhor a probabilidade de um evento acontecer, e obtenho vantagem sobre outros operadores por conseguir determinar melhor os preços”, diz.
Ele calcula que sua taxa média de retorno do valor apostado é de 7% – o que, em valores nominais, dá mais ou menos R$ 600 mil por ano com apostas.
Hoje, sua renda não vem só do trading. Ele é dono da plataforma Fulltrader Sports, que vende cursos e softwares de análise de dados para apostadores. O maquinário serve para tentar captar tendências que ajudem a prever o movimento das probabilidades. Tipo: “em jogos anteriores, X acontecimento provocou uma diminuição de Y pontos nas odds de uma equipe”.
Ricardo conta que, na hora do jogo, seu processo de apostas é praticamente automatizado. O plugin notifica oportunidades de compra quando entende, por exemplo, que uma aposta está pagando bem demais por uma vitória muito provável. O mesmo software avisa quando parece hora de sair da posição, congelando os ganhos – manobra chamada de cash out. Nem sempre dá certo. É a vida: segundo Ricardo, a meta é ficar no verde no saldo geral, não em cada aposta separadamente.
Fábrica de adrenalina
Dentre as estratégias utilizadas pelos traders, algumas recebem nomes replicados de técnicas especulativas da bolsa – tem arbitragem, scalping e swing trade, por exemplo. Não é obra do acaso. A Betfair, maior exchange esportiva do mundo, diz que se inspirou no modelo de operação das bolsas.
A semelhança já fez jogadores, influencers – e mesmo sites especializados do mundo das finanças – jogarem o trading esportivo no balaio dos investimentos de renda variável. Mas calma aí. A classificação é ilógica: um investimento financeiro depende, invariavelmente, da aquisição de um bem ou ativo. Não é este o caso das apostas.
Investimentos para valer abarcam uma combinação de interesses, como aponta Bruno Giovannetti, professor de finanças da FGV. No mercado mais comum, o de ações, tudo começa com uma empresa que emitiu papéis no IPO para captar dinheiro – seja para aplicar no crescimento do negócio ou para fortalecer o caixa. Uma vez no mercado, as ações trocam de mãos entre indivíduos que apostam no sucesso da companhia (comprando ações) e agentes que, de certa forma, apostam no fracasso da empresa (tinham adquirido ações, e agora querem vendê-las).
É parecido com uma aposta esportiva. Mas por trás de tudo há uma empresa que em algum momento distribuirá seus lucros entre os acionistas, e esse dinheiro virá do negócio da empresa – não de apostadores derrotados. Ou seja: existe uma economia real lastreando a coisa.
Mas a confusão entre apostas esportivas e mercado financeiro tornou-se tão grande que a própria CVM teve de esclarecer que não se responsabiliza pelas transações realizadas nas bets, numa resolução de agosto de 2023. “Apostas esportivas não são investimentos e não apresentam características que possam enquadrar as inúmeras possibilidades de apostas como valores mobiliários.”
Pesquisas do campo das finanças comportamentais, de qualquer forma, mostram interseções no perfil de apostadores e de traders da bolsa.
Em 2009, um estudo examinou a demografia dos investidores americanos que dão preferência às “ações loteria” – aquelas que apresentam muita volatilidade e alto risco, e atraem pela possibilidade de altos ganhos no curto prazo (como as odds em uma partida de futebol).
O estudo detectou o seguinte: fatores sociais que induzem gastos maiores em apostas também levam às ações loteria. Em sua maioria, são homens jovens de renda mais baixa que veem ali uma oportunidade de ascender economicamente. Essas pessoas também costumam incorrer em vieses comportamentais parecidos.
O mais famoso deles é o “sensation seeking”, tendência de buscar por picos de adrenalina em atividades arriscadas – como dirigir em alta velocidade. O estudo “Sensation Seeking and Hedge Funds”, de 2018, mostra que gestores de fundos que ostentam carros esportivos tendem a assumir mais riscos em seus investimentos, comprando e vendendo ações com mais frequência que a média. E dão preferência às ações loteria.
A pesquisa também mostra, como era de se esperar, que esse perfil de administrador de fundos tende a perder mais dinheiro de seus clientes. A lógica é a mesma para investidores amadores: um estudo dos professores da FGV Bruno Giovannetti e Fernando Chague mostrou que, de 98.378 indivíduos que fizeram day trade no Brasil entre 2013 e 2018, só 127 conseguiram lucrar mais de R$ 100 ao longo de mais de 300 pregões.
Moral da história: no longo prazo, a imensa maioria das pessoas não consegue lucrar com especulações na bolsa. O mesmo serve para apostas esportivas – que, no fim do dia e apesar das técnicas de análise de dados, não passam de especulações acerca de eventos imprevisíveis por natureza.
E em tempo: day trade com apostas sobre a cotação futura do dólar, do Ibovespa ou de ações também poderiam ser classificados como um jogo de azar. Nesses casos, você não ganha dinheiro via proventos de uma empresa. Você só ganha aquilo que outra pessoa perdeu. Mas essa é outra história.
Nas quatro linhas do regulamento
Da live do seu streamer favorito à camisa do seu time, os anúncios estão em todo o lugar. Feche os olhos e alguma das centenas de bets operando no Brasil dará um jeito de anunciar nos seus sonhos.
Esse boom tem ganhado força desde 2018, quando o governo Temer legalizou as apostas esportivas online. Até ali, elas eram proibidas pela Lei de Contravenções Penais, regra da década de 1940 que jogava a atividade no mesmo balaio dos jogos de azar.
A medida de Temer abriu a porteira para que as casas de apostas se estabelecessem – e anunciassem seus negócios – no Brasil. O país do futebol abraçou a ideia com facilidade: no ano passado, ultrapassou o Reino Unido e se tornou o lugar com mais acessos a sites de apostas no mundo. Um levantamento do Uol mostrou que patrocínios de sites de apostas aos clubes brasileiros da Série A já passam de R$ 330 milhões por ano. 19 dos 20 clubes da série A recebem alguma verba dessas companhias.
Só que legalizar é diferente de regulamentar. A medida de 2018 deixou decidido que o Ministério da Fazenda teria quatro anos para apresentar um projeto que regulasse a atividade em território nacional. 2022 chegou, mas a proposta não.
O vácuo regulatório gestou uma série de polêmicas envolvendo o setor. Sem registro das casas em território nacional, mal se sabe quem são os donos e de onde operavam parte desses estabelecimentos. A fortuna gerada aqui voa, sem taxação, direto para os países-sede das companhias – geralmente paraísos fiscais.
Sem regras definidas, não havia punição para publicidades abusivas – como aquelas prometendo renda extra fácil. E os esquemas de manipulação de apostas dispararam: um relatório da Sportradar mostrou que, no ano passado, o Brasil era o país com mais jogos suspeitos de manipulação de resultados no mundo.
Neste ano, a nova gestão do Fazenda tratou de destravar o tema. Em julho, o governo aprovou uma Medida Provisória que regula o setor – que vai abarcar também os jogos de cassino virtual. Agora, o Congresso tem até o final de novembro para aprová-la como lei.
O texto estabelece que as bets precisarão de uma autorização, concedida pelo Ministério da Fazenda, para operar no país. As licenças durarão três anos e vão depender do pagamento de uma taxa de até R$ 30 milhões.
Em 2022, o Brasil foi o país com mais acessos a sites de apostas no mundo.
O cabo de guerra é em torno da tributação. A proposta é de alíquota de 18% sobre a receita das casas de apostas. Para os apostadores, um IR de 30% para prêmios acima de R$ 2.000. As empresas do setor dizem considerar as taxas excessivas – e têm se esforçado para baixar os valores no Congresso.
Do outro lado, o governo conta com a receita para impulsionar a arrecadação federal. O Ministério da Fazenda estima um faturamento de R$ 3 bilhões a 6 bilhões com a taxação das bets em 2024. Para o longo prazo, com o mercado já regulado, Haddad fala em cifras anuais num patamar de R$ 12 bilhões a R$ 15 bilhões.
Fabiano Jantalia, sócio-fundador da Jantalia Advogados e especialista em Direito de Jogos, avalia que, para além da treta do imposto, “o projeto resolve grande parte das grandes questões que afligem o mercado”. Ele explica que a regulação era aguardada pelas casas de apostas, já que dá segurança jurídica e ajuda a construir credibilidade para o setor.
O projeto de lei também busca corrigir as falhas de mercado criadas no período sem regulação. Por exemplo: haverá regras mais duras em torno das campanhas publicitárias. Agora, as bets não poderão sugerir que elas sejam uma ferramenta financeira, nem fechar campanhas com celebridades que falem sobre eventuais benefícios das apostas.
É um caminho para que essa indústria se estabeleça no país prometendo apenas o que entrega: entretenimento esportivo, que pode ou não acabar em lucro para os apostadores. Mas jamais uma renda extra garantida – muito menos um investimento.