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O assassinato no Carrefour diz muito sobre o vazio moral da onda ESG

É cada vez mais difícil saber se empresas que pregam "responsabilidade social" estão falando sério ou fazem isso como mero marketing de fachada.

Por Tássia Kastner
Atualizado em 27 nov 2020, 13h24 - Publicado em 20 nov 2020, 19h16

Ganhou força neste ano o discurso de que investidores estão cada vez mais interessados em companhias comprometidas com práticas ambientalmente sustentáveis, que se importam com causas sociais e também que prezam por boas práticas de governança corporativa. Pudera, o movimento foi puxado por Larry Fink, o nome à frente da BlackRock, que tem US$ 7 trilhões sob gestão.

A pauta sustentável é sintetizada na sigla ESG (Environmental, social and corporate governance). 

A parte ambiental é a mais popular e mais bem entendida por investidores. Não derrubar ou colocar fogo em florestas, reciclar e ter logística reversa para produtos de difícil descarte são alguns exemplos triviais (ou não tanto no Brasil de 2020).

As questões sociais têm sido tratadas pela maior inclusão de mulheres, negros e população LGBTQI+ entre funcionários e com medidas para que eles cresçam profissionalmente e ocupem cargos de liderança. Mas pode ser também investir em cultura e apoiar comunidades carentes.

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E a governança corporativa? Essa pode ser resumida com “seria bom tentar não cometer crimes”. E, para garantir isso, escolher bem com quem a empresa faz negócios é fundamental, já que diminui o risco de a prestadora de serviços cometer crimes. O mais comum é pensar em corrupção, mas o caso do Carrefour deixa claro que o desgoverno interno de uma empresa pode ter consequência bem mais terríveis. Uma companhia que não tomou as providências para coibir um crime hediondo por parte de funcionários terceirizados.  

É da junção desses três compromissos que deveria ser possível dar uma espécie de selo ESG para uma companhia. E o Carrefour recebeu essa chancela em 8 de setembro, quando a B3 e a S&P Global (dona do S&P 500) lançaram o Índice Brasil ESG. O índice tem 96 empresas — mais que as 77 do Ibovespa.

Pela recorrência de casos envolvendo agressões de seguranças e outros escândalos do Carrefour, fica difícil entender como ele pode ter sido incluído num rol de empresas que primam pela “boa governança”.

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O assassinato de João Alberto Silveira Freitas na véspera do Dia da Consciência Negra, afinal, foi só o caso mais recente. 

Em agosto, um prestador de serviços morreu dentro de uma loja, enquanto trabalhava. O que o Carrefour fez? Colocou guarda-sóis, tapumes e engradados de cerveja para manter o funcionamento normal do mercado. Esse episódio ocorreu em Pernambuco.

Dez anos antes, um homem negro tinha sido espancado por seguranças de uma loja do Carrefour na Grande São Paulo. A “explicação” é que ele teria sido confundido com um bandido. A verdade é que esperava pela família, que fazia compras.

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E algo muito, mas muito distante do que representa o assassinato de uma pessoa também já gerou revolta contra a companhia. Em 2018, um segurança matou um cachorro dócil e que era cuidado no local.

O Carrefour divulgou uma nota em que diz que “adotará medidas cabíveis para responsabilizar os envolvidos” na morte em Porto Alegre. Afirmou também que iria romper o contrato com a empresa de segurança e demitiria o responsável pela loja no momento do crime. Acrescentou ainda que havia iniciado uma “rigorosa apuração interna” para punir legalmente os responsáveis. 

Trata-se de uma nota não muito diferente da divulgada no caso da morte do cachorro. À época, o Carrefour também usou a expressão “rigorosa apuração”. Mas nem chegou a romper o contrato com a equipe de segurança. Era um cachorro, afinal.

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Durante esta sexta, a empresa anunciou que a renda com as vendas do dia de hoje seria doada para alguma instituição ligada ao movimento negro. 

No fundo, o episódio Carrefour apenas mostra o quão frágil é a concessão da chancela sustentável. Não custa lembrar que a Vale estava no Índice de Sustentabilidade da B3 (o ISE) quando houve o rompimento da barragem de Brumadinho. 

A Você S/A procurou a B3 e a S&P Global para que comentassem os critérios para inclusão e manutenção do Carrefour nessa lista. 

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A S&P e a B3 se disseram tristes com as imagens horríveis no Carrefour em Porto Alegre. “S&P Dow Jones Indices e a S&P Global não toleram racismo e discriminação e levamos esses eventos e a resposta do Carrefour a eles muito a sério.” 

E acrescentaram que a metodologia do índice exige a avaliação do caso para potencial exclusão do Carrefour dessa lista.

Os defensores do ESG são muitos e dizem que, a longo prazo, investir nessas empresas é mais rentável. É até fácil de entender: são empresas menos sujeitas a pagamentos de multas e sanções governamentais.

Resta saber quem vai conseguir separar as empresas que são realmente comprometidas com a causa ESG das que colocam uma maquiagem da moda. 

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