Conheça a história da maior bolha financeira do Brasil
Ela estourou em 1971, após anos de euforia sobre o crescimento do mercado acionário no país. Neste trecho de “Crises Financeiras”, Roberto Teixeira da Costa, 1º presidente da história da CVM, conta bastidores do período.
Quando comparada ao mercado acionário dos EUA, a bolsa brasileira ainda vive sua primeira infância. A Nyse, bolsa de valores de Nova York, possui quase 2.400 empresas listadas. Seu principal índice, o S&P 500, movimenta em média US$ 3,9 trilhões (R$ 19 tri) por dia. No Brasil, a B3 conta com 437 companhias – só 18% da colega americana. E o Ibovespa, nosso principal índice, movimenta diariamente uma média de R$ 30 bilhões.
Por lá, tickers de ações fazem parte do vocabulário da população e a bolsa é destino de grande porcentagem de suas economias. Aqui, o mercado financeiro tem se expandido em ritmo acelerado, mas ainda engloba uma parcela pequena dos brasileiros: são 4,6 milhões de CPFs cadastrados na B3, só 2% da população.
Apesar de existir desde 1890, ano de criação da bolsa do Rio, o mercado financeiro por aqui só ganhou alguma tração na década de 1960. Na época, o governo promovia reformas econômicas e financeiras para estimular o ambiente acionário do país. Investidores do período se animaram com a ascensão dos negócios, no melhor estilo “foguete não dá ré”. Um entusiasmo muito fundamentado pelo ufanismo do momento.
Mas não teve jeito: o foguete deu ré – e caiu de boca no chão. Em 1971, a bolha em torno da euforia brasileira estourou, evento considerado a versão nacional do crash de 1929 nos EUA. E deixou os investidores desamparados, já que os mecanismos de proteção ao mercado ainda estavam para nascer: a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) só surgiria em 1976; a Ambima (Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais), em 2009.
Roberto Teixeira da Costa, autor de Crises Financeiras: Brasil e Mundo (1929-2023), acompanhou o amadurecimento do mercado brasileiro de pertinho. Na crise de 1971, ele trabalhava como gestor do fundo Crescinco, o maior da América Latina na época. Depois, em 1977, assumiu como o primeiro presidente da história da CVM.
Em sua nova obra, Teixeira da Costa analisa motivações, conta bastidores e descreve as consequências de diversas crises financeiras da história – Mania das Tulipas na Holanda do século 17, o crash da bolsa em 1929, a crise de 2008… E chega ao mundo de hoje, com os efeitos pós-pandemia e a euforia em torno das criptomoedas. No trecho a seguir, ele conta em detalhes o período de ascensão e queda da bolsa do Rio entre as décadas de 1960 e 1970.
Página 112 – Preparando o caminho para a maior bolha brasileira
O crash de 1971 do mercado brasileiro de ações foi a maior bolha de ativos do país, com efeitos conhecidos: destruição de patrimônios, quebra de investidores e de instituições, perda de confiança num setor relevante para assegurar o investimento das empresas. (…) É uma história que ilustra como se forma uma bolha, até que ponto ela pode crescer e quais são as principais lições que ficam para o futuro.
A bolha de 1971 começou a ser construída num período promissor da economia brasileira. É o que costuma ocorrer com bolhas, em geral alimentadas por crédito, política monetária expansiva e otimismo com o futuro. Ao assumir o governo militar após o golpe de 1º de abril de 1964, o marechal Castelo Branco deu início a uma revolução econômica no país.
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O desenvolvimento do mercado de capitais era prioridade no período Castelo Branco. As bolsas foram abertas a novos membros. Criou-se um ambiente mais competitivo e profissional. Um novo índice de preços foi concebido com metodologia desenvolvida por Mário Henrique Simonsen.
Havia, naqueles idos, duas grandes bolsas no país: a de São Paulo e a do Rio de Janeiro — que então predominava. Como nota Ney Carvalho [historiador e autor do livro A Bolha Especulativa de 1971], “os velhos corretores de fundos públicos” saíam de cena, dando lugar a sociedades corretoras, como previa a legislação.
Nem tudo eram rosas. “Tinha ocorrido uma mudança de geração, e o mercado passou a ser dominado por jovens, mas ainda sobressaíam, como antes, inexperiência e empirismo.” Poucos faziam análise técnica ou fundamentalista de investimentos. (…)
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A construção da bolha avançou em 1969. Nem um congelamento de preços baixado no governo Costa e Silva afetou negativamente as ações. Em janeiro, a Light lançou um vultoso underwriting, que balizou a viabilidade das grandes subscrições.
Em São Paulo e no Rio foram lançadas, em junho daquele ano, as ações da Siderúrgica Riograndense, do grupo Gerdau (…). O sucesso da operação foi enorme. Cotada a 1,15 cruzeiros no lançamento, a ação chegou a valer 25 cruzeiros em maio de 1971, com valorização superior a 2.000%.
Nem o derrame cerebral que afastou Costa e Silva da presidência da República atrapalhou o mercado. Dois dias depois de o presidente ser substituído por uma junta de três ministros militares, o índice IBV atingia 928 pontos. Em dois meses, a Bolsa registrou alta de 50%. Cedeu um pouco no final do ano, para 820 pontos, mas o clima era “favorável ao jogo”.
O governo não perdeu tempo. Ganhou com as facilidades propiciadas por um mercado de ações mais forte para vender papéis de estatais e captar recursos. “O fato nunca discutido é que o grande beneficiário das turbulências, o maior captador de recursos do público então em histeria financeira foi o Estado brasileiro, suas diversas empresas e ramificações”, lembra Ney Carvalho.
Em 1969 foram iniciadas vendas de participações acionárias do Tesouro na Vale do Rio Doce, que precisava de recursos para financiar o investimento na extração de minério na Serra dos Carajás. A operação foi bem-sucedida e estendida à Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e aos papéis da Cervejaria Brahma que estavam em posse do Tesouro.
O poder público foi, segundo Ney Carvalho, o “principal beneficiário da orgia especulativa de 1971”, por exemplo, ao vender ações para aumentar o capital de bancos como o Baneb (do estado da Bahia), do Banespa (do estado de São Paulo), do Banestes (do Espírito Santo) e do Banco da Amazônia (Basa). (No caso do Basa, quando as ações foram a mercado a Bolsa já estava em queda.)
Um clima de euforia era nutrido pela propaganda oficial, enquanto se propalavam bordões como “Brasil, ame-o ou deixe-o”.
Em 1970, ano que iniciou fraco para o mercado de ações, começaram a ser oferecidas ações ordinárias nominativas da Petrobras, em vendas efetuadas por estados e municípios de todo o Brasil. As vendas foram facilmente absorvidas. Entre agosto e setembro, o índice voltou a ganhar tração, subindo 12% num mês e atingindo 1.260,4 pontos. No encerramento de 1970, o IBV atingiu 1.652 pontos, alta anual de 104%.
Um clima de euforia era nutrido pela propaganda oficial, com destaque para a construção da ponte Rio-Niterói e da Transamazônica, enquanto se propalavam bordões como “Brasil, ame-o ou deixe-o”, “Ninguém segura este país” e “Ritmo de Brasil grande”. Vencer a Copa do Mundo de 1970 deu impulso à euforia — o Brasil conquistava em definitivo, com o tricampeonato, a Taça Jules Rimet. (…)
Assim começou 1971, o ano do crash.
Em janeiro de 1971, o noticiário esquentava. No dia 5 de janeiro, a Bolsa do Rio negociou 15,19 milhões de ações num valor equivalente a a US$ 10 milhões, recorde histórico. O IBV atingiu 1.910,9 pontos (…). A revista Business Week tratou a Bolsa do Rio como “uma das mais ativas do mundo e certamente a mais espetacular”.
Ney Carvalho escreve que “o mercado de ações foi, realmente, a grande coqueluche de 1971. A Bolsa era o modismo da época e estava em todas as atitudes, reuniões, conversas e notícias de jornal. Há exemplos interessantes dessa tendência, inclusive no meio artístico”.
O estágio da euforia
Músicas e livros com alusões ao mercado surgiam e conquistavam fãs. E festas pipocavam. Como relata Ney Carvalho, um documentário sobre a Bolsa foi feito pelo cineasta Antônio Carlos da Fontoura, tendo como pano de fundo o escritório do corretor Carlos Barroca. Chico Buarque compôs a “Bolsa de amores”, que foi interpretada por Mário Reis, cujo irmão era corretor na Bolsa do Rio. A letra, enviada à censura em 20 de julho de 1971, quando as cotações já caíam, foi vetada. O disco saiu com onze faixas, seis de um lado e cinco do outro. Mário Reis se recusou a substituir a música censurada.
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Aproveitando o modismo, a editora do escritor Fernando Sabino relançou a crônica de Carlos Drummond de Andrade com nome sugestivo: A Bolsa & a Vida. Também foi relançada a obra do visconde de Taunay O Encilhamento: Cenas Contemporâneas da Bolsa do Rio de Janeiro em 1890, 1891 e 1892. (…)
A febre das ações continuou em março de 1971, com recordes sucessivos e com o IBV atingindo 2.517,01 pontos.
[Bolhas são], em geral, alimentadas por crédito, política monetária expansiva e otimismo com o futuro.
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Cresciam os negócios e o número de empresas com ações cotadas, que passou de 26 em 1967 para 92 em abril de 1971. Era um indicador de que a Bolsa cumpria seu papel como mecanismo de capitalização das empresas, favorecido pela liquidez proporcionada pelo mercado secundário.
Em depoimento para o livro Histórias do Mercado de Capitais no Brasil, de Marta Barcellos, o então chefe da Gerência do Mercado de Capitais (Gemec) no BC, Ari Cordeiro Filho, abordou o momento em que a Bolsa começou a cair:
Naquele início de mercado, aconteceram problemas primários com notas promissórias, caso da Mannesmann, e depois vieram esses lançamentos de Sudene, Sudam, muitos deles com distorções sérias. Foram lançamentos para uso dos benefícios fiscais que eram oferecidos. Não havia muita preocupação em termos de informações realísticas sobre os empreendimentos.
Cordeiro citou o caso “do ‘muro da vergonha’, uma empresa que gastou praticamente todo o dinheiro recebido na construção de um muro para esconder que não tinha feito nada no terreno”.
A crise vista por dentro
Com um movimento tão grande e uma demanda por ações tão excitada, avolumaram-se problemas administrativos — referidos por Ney Carvalho como balbúrdia. E a balbúrdia predominava.
A custódia dos papéis era feita nas corretoras, muitas das quais não tinham estrutura para prestar o serviço de guarda, recebimento de bonificações e dividendos, bem como fornecimento de informações atualizadas sobre as posições. As corretoras chegavam a divulgar anúncios convocando os clientes para que exercessem seus direitos sobre os títulos possuídos, sob pena de perder as vantagens. Isso ocorria com ações negociadas no mercado secundário e com ações objeto de subscrição.
Em junho de 1971, o cume foi atingido. O preço máximo foi alcançado no dia 14, quando o IBV atingiu 5.236,3 pontos, alta de 287% sobre janeiro.
O corretor e ex-presidente da Associação Nacional das Corretoras de Valores (Ancor) Alberto Alves Sobrinho, que à época trabalhava na corretora M. Marcello Leite Barbosa, lembra que espertalhões se aproveitavam da confusão para buscar uns trocados no mercado.
Alguns procuravam corretores para fazer uma operação day trade (em que a transação começa e termina no mesmo dia). Mas alguns investidores não tinham as ações que queriam vender. Mesmo assim, se as ações caíssem, procuravam o corretor com pedido para embolsar a diferença entre o preço inicial e o preço final. “De que ações você está falando?”, indagava Alberto Sobrinho a quem queria buscar seus lucros sem ter papéis.
A Companhia Antarctica Paulista publicou anúncio no Rio informando que os serviços fornecidos pela Delfim Araújo Corretora deixariam de ser prestados, pois a representante estava assoberbada “em face do excepcional crescimento de seus serviços administrativos”. Era mais um exemplo da desorganização do mercado. Não havia computadores, e os enormes contingentes de funcionários das corretoras, mesmo trabalhando em fins de semana, não davam conta das tarefas.
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Em junho de 1971, o cume foi atingido. O preço máximo foi alcançado no dia 14, quando o IBV atingiu 5.236,3 pontos, alta de 287% sobre janeiro. Era inverno, e o Rio viveu uma crise de influenza, logo apelidada de “gripe bursátil”. A explicação: na gripe, a febre sempre sobe. Mas a partir dali o termômetro da Bolsa já começava a baixar.
O cronista Zózimo Amaral sentia certo desalento. As reclamações dos clientes que não eram bem atendidos ao demandar ações lançadas em underwritings não eram mais tão numerosas. “Na verdade, aquela semana de meados de junho de 1971 marcava, definitivamente, o topo do movimento de alta e o princípio do fim da bolha especulativa.”
Estourada a bolha, veio a hora de juntar os cacos. Famoso por seus ditos irônicos, o ministro Delfim Netto diria que chegara a Quarta-Feira de Cinzas, quando é tempo de limpar a sujeira deixada nas ruas pelo Carnaval. Mas o então czar da economia brasileira não gostou do que viu no mercado de ações.
Não havia como segurar a queda.
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O desconforto era tão grande que houve, segundo Ney Carvalho, uma ingerência política nas bolsas do Rio e de São Paulo. Marcello Leite Barbosa, famoso corretor carioca e presidente da Bolsa do Rio, afastou-se da Bolsa após participar de uma reunião tida como contrária ao governo e filmada por “arapongas” do Serviço Nacional de Informações (SNI).
Não apenas Leite Barbosa, mas seu filho Marcelinho (…) havia sido crítico do governo na era militar. Somente doze anos depois — e após intensa pressão fiscal comandada pelo Banco Central, pela Receita Federal e pelo Ministério do Trabalho — Leite Barbosa foi inocentado. (…)
João Osório também deixou a presidência da Bolsa de São Paulo, embora nada houvesse contra ele. “Mas o fato passava a ideia de uma faxina nas bolsas, o que, àquela altura, interessava sobremodo ao governo”, afirma Ney Carvalho.
Enquanto isso, o superintendente da Bolsa do Rio, coronel Hugo Coelho, pedia empréstimos para saldar a folha de pagamentos da instituição, folha que havia inflado nos anos de euforia com a contratação de inúmeros companheiros de farda.
Como no crash de 1929 em Nova York, o mercado de ações levou anos para se recuperar. A grande diferença entre os dois episódios é a de que, no Brasil, a economia continuaria crescendo por mais alguns anos, pois dependia pouco do mercado acionário.
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