Acusação de insider trading com AMER3 tempera pregão devagar na B3
Plano de ajuste fiscal anunciado por Haddad é bem-vindo – mas o foco em aumentar a arrecadação em vez de cortar gastos não emocionou a Faria Lima, que quer padrão Merkel de austeridade.
O Ibovespa teve um pregão de queda lânguida – fechou o dia em -0,84%, sem grandes emoções. De manhã, nossos investidores acompanharam o comportamento dos índices de Wall Street – que abriram em queda por causa dos balanços de Bank of America, Wells Fargo, Citbank e JPMorgan, divulgados logo antes da abertura. Os bancos demonstraram preocupação com a recessão prevista para 2023.
Depois do almoço, Nova York pôs a melancolia de lado e passou a subir. O índice de sentimento do consumidor, publicado pela Universidade de Michigan, foi de 59,7 em dezembro para 64,6 em janeiro, ante uma previsão de 60,7, e a expectativa de inflação para os próximos doze meses caiu de 4,4% para 4% (a mais baixa em quase dois anos). Mais uma pista de que o Banco Central deve pisar no freio da taxa básica nas próximas reuniões do Fomc.
O Ibovespa, porém, continuou no vermelho até o final do dia. O minério de ferro subiu (3,40% na bolsa de Dalian, a US$ 113,30 a tonelada) e o petróleo também (1,49%, a US$ 85,28 o barril), mas as altas nas cotações dessas commodities não fizeram grande coisa pelos papéis da Vale, das siderúrgicas e das petroleiras, que flertaram com altas e baixas e fecharam quase todas próximas à estabilidade.
Na semana, as notícias são boas: o índice da B3 fechou em alta de 1,79%, após rir na cara do perigo bolsonarista – o sentimento geral, entre investidores, foi de que os atos do domingo passado não representaram uma ameaça real à estabilidade da democracia brasileira. PETR4 e VALE3 subiram 2,93% e 2,50% de segunda para hoje, um sinal de animação contida com o reaquecimento econômico da China.
O mercado gostou da disposição de Haddad em pôr rédeas no déficit – se o novo plano anunciado pelo ministro funcionasse de maneira platonicamente ideal, o país terminaria o ano com superávit de R$ 11 bilhões –, mas não se entusiasmou muito com a maneira como a Fazenda pretende fazer isso: aumentando a arrecadação em vez de diminuir os gastos.
O Barclays destacou, em um relatório, que 80% do ajuste fiscal dependerá de dinheiro extra entrando na conta por meio de aumento de impostos e multas cobradas de devedores – e só 20% serão oriundos de cortes. E a Faria Lima, claro, só ficaria realmente feliz com o padrão Angela Merkel de austeridade.
O banco britânico manteve a previsão do déficit de 2023 em 1,1% do PIB – R$ 110 bilhões –, estimativa com que o próprio Haddad concorda: o ministro sabe que imprevistos acontecem, e que dificilmente o plano sairá do papel exatamente como calculado.
Caso AMER3
No fundo do poço, tem uma mola: a campeã das altas foi – ela mesma – AMER3, com 15,81%. Trata-se de uma pequena correção de rumos após o deus-nos-acuda de ontem, quando todos venderam os papéis aos baldes.
Mas é pequena mesmo, não se iluda com a porcentagem: um ganho de 15,81% em um papel de R$ 2,72 (como o que rolou hoje) significa que ele chegou ao final do dia valendo R$ 3,15. Enquanto, isso uma queda de 77% em um papel de R$ 12 (o que rolou ontem) transforma o pobrezinho em R$ 2,72. Para a ação voltar a valer R$ 12 um dia, ela precisaria subir 280%. Isso aí é uma missão para São Judas, o santo das causas impossíveis.
Lemann que o diga: o homem mais rico do Brasil perdeu R$ 1,5 bilhão em um dia. Os parceiros dele no 3G Capital, Beto Sicupira e Marcel Telles, perderam juntos R$ 1,8 bilhão. O trio detém 40% das ações das Americanas (e esse não é o único problema que eles têm em mãos: as ações do Burger King no Brasil caíram quase 70% desde o IPO, e a Ambev não vem bem na bolsa em longo prazo. Entenda melhor neste texto.)
Agora, eles podem perder ainda mais dinheiro para fazer uma injeção de capital nas Americanas e salvar a rede. Essa grana extra provavelmente vai entrar na forma de um follow on, ou seja: a varejista vai emitir novos papéis na bolsa para levantar dinheiro.
As agências de classificação de risco rebaixaram as Americanas. Um alerta tardio para quem tinha ações da companhia. Quem sabia antes que o barco ia afundar já estava no bote salva-vidas faz tempo: circula a informação de que os diretores teriam vendido 210 milhões em papéis da empresa, aos poucos, desde o ano passado. O que, somado à afirmação do Rial de que os gestores não queriam falar do problema, levantou suspeitas. O Ministério Público Federal de São Paulo já está apurando o caso.
Também veio à tona a possibilidade de que alguns investidores tenham ficado sabendo do rombo fiscal antes do público geral, e usado o vazamento para fazer insider trading imediatamente antes das ações desabarem.
Dados da B3 mostram que houve um número descomunal de vendas a descoberto (em inglês, short selling) de ações AMER3 no finalzinho do pregão de quarta (11) – ou seja, pouco antes da bomba atômica de US$ 20 bilhões sair nos jornais. E houve outros tipos de aposta contra a companhia, como a compra de opções de venda. Isso também rolou em longo prazo: a quantidade de ações das Americanas alugadas para realizar esse tipo de operação cresceu 580% desde o segundo trimestre do ano passado.
Em português claro, o short selling funciona assim: imagine que você não tem nenhum papel da varejista. Então você pega, por exemplo, cem papéis emprestados de uma pessoa que tem. Esse é o tal aluguel de ações que mencionamos ali atrás. O próximo passo é você vender esses papéis emprestados para alguém – no nosso cenário, por R$ 12 cada um, que era o preço da ação antes do Rial pedir para sair. Legal: você embolsou R$ 1.200 sem mexer um músculo, pagando só uma taxa pelo empréstimo. É como vender um apartamento em que você é inquilino (rs).
Agora, claro, você precisa devolver as ações para o dono original. Caramba, que coincidência: amanheceu o dia seguinte, descobriram um rombo de R$ 20 bilhões nas contas das Americanas e as ações caíram para R$ 3. Puxa, quem poderia imaginar. Agora, você compra as cem ações por apenas R$ 300, devolve para quem emprestou e embolsa R$ 900 de lucro.
Normalmente, fazer short selling é uma questão de sorte. Se as ações tivessem subido, em vez de cair, nosso investidor imaginário se daria mal (entenda mais na matéria de capa de novembro da Você S/A, clique aqui).
O problema é se você já sabe o que vai acontecer, e ninguém mais sabe. Aí, o lucro fica garantido pela informação privilegiada. Isso é crime, e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) vem bater na sua porta. Como um número muito alto de ações – bem acima da média histórica do papel AMER3 – foram alugadas para short selling instantes antes do desabamento cataclísmico de 77%, os analistas suspeitam que gente bem-informada tenha se aproveitado da fofoca para lucrar na bolsa.
Se você não sabia de nada e mesmo assim fez venda a descoberto de AMER3 na quarta, parabéns: nem precisava ter chegado até o final do texto. Seja feliz no happy hour.
Bom descanso e até semana que vem!
Maiores altas
Americanas (AMER3): 15,81%
Magazine Luiza (MGLU3): 7,52%
Minerva Foods (BEEF3): 4,67%
Carrefour (CRFB3): 2,50%
SLC Agrícola (SLCE3): 1,50%
Maiores baixas
BRF (BRFS3): -6,54%
Alpargatas (ALPA4): -6,13%
CVC (CVCB3): -5,93%
Azul (AZUL4): -5,36%
MRV (MRVE3): -5,27%
Ibovespa: -0,84%, aos 110.916 pontos, na semana, alta de 1,79%
Em NY:
S&P 500: 0,40%, aos 3.999 pontos, na semana, 2,25%
Nasdaq: 0,71, aos 11.079 pontos, na semana, 3,89%
Dow Jones: 0,33%, aos 34.302 pontos, na semana, 1,90%
Dólar: 0,12%, a R$ 5,10, na semana, -2,48%
Petróleo
Brent: 1,49%, a US$ 85,28. Na semana, 8,5%.
WTI: 1,88%, a US$ 79,86. Na semana, 8,3%.
Minério de ferro: 3,40% na bolsa de Dalian, a US$ 113,30 a tonelada