Sorria, você está no Big Brother do Chefe

O uso de ferramentas que monitoram o computador dos funcionários disparou durante a pandemia. Entenda como essas tecnologias funcionam – e até onde as empresas podem ir com a espionagem.

Texto: Luciana Lima | Ilustração: Camila Gray | Design: Tiago Araujo

Você está em home office e a companhia resolve instalar um software no seu computador. Com ele, o seu chefe vê todos os sites que você está acessando, sabe exatamente quantas horas por dia você passou no Facebook ou naquela planilha do Excel. Mais. Ele recebe, em tempo real, um gráfico com a movimentação do seu mouse e, a cada 30 segundos, printscreens das telas em que você está navegando. Pior. De 10 em 10 minutos, a webcam do notebook tira fotos da sua mesa de trabalho. Vai que você resolveu dar aquela dormida depois do almoço?

Se você suou frio com a mera possibilidade de isso acontecer, temos uma má notícia. Todas as ferramentas descritas existem – e já são usadas para monitorar funcionários. A tendência já vem de antes da universalização do home office. Uma pesquisa da consultoria Gartner, publicada em 2019, mostrou que mais de 50% das 239 empresas americanas que eles pesquisaram já adotavam técnicas “não tradicionais” (como as que veremos nesta reportagem) para espionar funcionários. Em 2015, esse número era de apenas 30%.

Cada vez mais empresas de tecnologia se especializaram em fornecer softwares voltados para essa patrulha. A americana TimeDoctor é uma das mais famosas. Cobrando US$ 9,99 por usuário cadastrado, ela promete ajudar “companhias e indivíduos a serem mais produtivos” por meio de capturas periódicas de telas, cronômetro de atividades e pop-ups que avisam quando os funcionários entram em sites não relacionados ao trabalho.

A TimeDoctor também atua no Brasil, e não faltam concorrentes nacionais. Um deles é a mineira fSense. Fundada em 2015, a companhia faz parte do Grupo Arcom, um conglomerado que conta com operações de call center e comércio atacadista em Minas Gerais. Ela nasceu de uma necessidade das próprias empresas do grupo.

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“Na época, não encontramos nenhuma prestadora desse tipo de serviço por aqui. Então fizemos um estudo com organizações americanas para desenvolver uma ferramenta nossa”, afirma Eduardo de Souza Vieira, gerente de produtos da fSense.

Assim como a TimeDoctor, a mineira oferece um painel no qual os gestores acompanham ao vivo os sites que os funcionários acessam e, a cada 30 segundos, captura uma imagem da tela (adeus, WhatsApp Web…).

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(Camila Gray/VOCÊ S/A)

O efeito pandemia

Depois da Covid-19, a procura por esse tipo de serviço cresceu de forma exponencial, claro. De março para cá, as vendas de licenças de uso do sistema da fSense aumentaram em 2.000%. Hoje, 6 mil funcionários de mais de 100 companhias, como Cielo e Net, têm o software da empresa instalado em suas máquinas. “Sem a supervisão presencial, o uso dessas ferramentas se tornou mais aceitável”, afirma Tatiana Iwai, professora de comportamento organizacional e liderança no Insper, em São Paulo.

A FieldLink foi outra que viu a demanda disparar. O produto da companhia paulista monitora a localização dos funcionários via GPS (na versão para celulares). Ele também dá a duração das ligações feitas para clientes, por exemplo.

Criada em 2016, a FieldLink atende grandes empresas, como Itaú, Peugeot e Ifood, e estima que o seu faturamento dobrou em 2020. Acostumada a ser procurada por empresas com grandes equipes comerciais, ela também viu uma mudança no perfil dos clientes. “Escritórios de Direito e até empresas do terceiro setor vieram atrás de nós”, diz Diego Cueva, CEO da FieldLink.

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“Nem sei que tipo de informação eles rastreiam. Agora eu nem entro em aplicativos de música, com medo de ser punida.”

Algumas gigantes de tecnologia quiseram aproveitar a onda – mas acabaram se arrependendo. É o caso da Stefanini. Em agosto de 2020, a multinacional brasileira de TI lançou um conceito inusitado. Batizado de Home Booth, tratava-se de uma cabine de 1 metro de largura por 1,6 metro de profundidade, climatizada e com isolamento acústico, com o objetivo de ser instalada na casa dos funcionários que estivessem em home office.

O Home Booth ainda contava com um sistema de monitoramento digno de Big Brother: biometria facial para permitir a entrada na cabine, além de basicamente todo tipo de controle. Assim que foi divulgada, a ideia se tornou alvo de críticas nas redes sociais. Dias depois, a Stefanini apagou a menção ao projeto do seu site oficial.

Outra que voltou atrás foi a Microsoft. Em outubro de 2020, a empresa lançou o Productivity Score. A ferramenta criava uma linha do tempo com um placar de produtividade dos funcionários, baseado em cinco pilares: comunicação, reuniões, compartilhamento de conteúdo online, colaboração entre as equipes e mobilidade.

Para produzir essas métricas, o software analisaria informações como o número de e-mails enviados por dia e uso de chats internos pelo time. Porém, o mais assustador: ele também seria capaz de monitorar a linguagem corporal e expressões faciais dos empregados durante reuniões virtuais, para identificar o “nível de engajamento” nos encontros (ai de quem bocejasse). A exemplo do que houve com a Stefanini, assim que foi lançado, o Productivity Score recebeu uma avalanche de críticas. Como resultado, em dezembro, a empresa anunciou mudanças no produto, afirmando que a partir dali as métricas deixariam de ser individuais e mostrariam apenas o desempenho da empresa como um todo.

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E os limites?

Verdade seja dita, mecanismos para controlar a produtividade dos funcionários são tão antigos quanto o trabalho em si. O registro de ponto que o diga. Mas o fato é que o cerco está se fechando. “Hoje, temos uma ‘plataformização’ desse controle. Eu não tenho mais um gestor, mas uma tecnologia que me vigia. E isso traz uma série de complexidades”, diz Fabricio Barili, mestrando em Ciências da Comunicação pela Unisinos e pesquisador no tema.

A maior dessas complexidades é óbvia. Qual é o limite para a espionagem? A resposta ainda é difusa. De um lado, a Justiça do Trabalho entende que as empresas podem, sim, fiscalizar tudo o que seja ferramenta profissional, como e-mails e notebooks corporativos. A lógica é simples: esses dispositivos pertencem às companhias, e não aos funcionários.

Outra forma de legitimar a espionagem é por meio do Código Civil brasileiro. Ele prevê que os empregadores são responsáveis por todas as atividades realizadas por seus funcionários enquanto eles estiverem usando os equipamentos e as conexões da empresa. Ou seja, se um funcionário praticar algum crime usando os sistemas da organização (como enviar mensagens de e-mail que configurem assédio sexual ou consumir pedofilia), a companhia pode responder judicialmente pelo ato. Logo, há um grande estímulo para que as companhias monitorem o comportamento online de seus funcionários, e também para que elas demitam quem sair da linha.

2.000% foi o quanto aumentaram as vendas de licença de software da FSense, uma empresa especializada em monitoramento de home office.

“Se o empregado estiver acessando pornografia com o computador corporativo, por exemplo, pode ser demitido por justa causa. E daí a empresa também vai precisar do histórico de sites como prova durante o processo de auditoria”, explica Fabiana Fittipaldi, advogada trabalhista e sócia do escritório PMMF.

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Mas o direito da empresa se limita aos equipamentos e sistemas corporativos. Se o e-mail ou o notebook for pessoal, aí a história é outra – e monitorar essas ferramentas se torna violação de privacidade. “No caso dos equipamentos pessoais, ainda que o funcionário esteja em home office, não é permitido esse tipo de controle”, diz a advogada.

Mesmo que, via de regra, todos os equipamentos corporativos possam ser acessados pelos chefes, isso também não significa que vale tudo. “Não existe uma lei específica, mas capturar a tela dos funcionários pode configurar assédio moral. Uma situação assim indica que o profissional está trabalhando sob extrema pressão”, diz Fabiana.

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(Camila Gray/VOCÊ S/A)

A paulista Bruna (nome fictício), de 32 anos, conhece bem o estresse causado pelo monitoramento excessivo. Formada em Letras e com doutorado em Linguística, a jovem começou a trabalhar para uma empresa de tecnologia em 2020, prestando serviços na área de linguística computacional. Para controlar a jornada de 20 horas semanais, realizada em home office e com contrato de PJ, a companhia pediu que ela instalasse um aplicativo de monitoramento.

A partir do momento em que Bruna se logava no sistema, toda a sua atividade online era rastreada. A movimentação do mouse, períodos inativos e printscreen das telas navegadas iam parar em uma linha do tempo acessada pelos gestores. Se o cronômetro mostrasse que, durante o expediente, Bruna havia passado 30 minutos sem nenhuma movimentação na planilha de trabalho, a empresa descontava esse tempo do pagamento combinado.

“No começo, você cai em várias ciladas. Esquece o aplicativo ligado enquanto vai ao banheiro e acaba sendo penalizada. Se abre um e-mail pessoal, o printscreen captura e você leva bronca também”, diz Bruna. Quem dava uma de espertinho e apagava as imagens tinha o valor correspondente a 10 minutos da jornada de trabalho descontados do pagamento, como multa. “Esse controle gera uma pressão absurda. Eu terminava as semanas exausta, parecendo que havia trabalhado o dobro do tempo”, afirma Bruna.

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“Não existe uma lei específica, mas capturar a tela dos funcionários pode configurar assédio moral. Uma situação assim indica que o profissional está trabalhando sob extrema pressão.”

Segundo aquela pesquisa de 2019 da Gartner, mais de 50% dos funcionários diziam que tudo bem serem espionados, contanto que a empresa explique previamente o que está sendo observado. Mas nem sempre isso acontece na vida real.

Bárbara (nome fictício), de 30 anos, tem um bom exemplo. A empresa na qual ela trabalha, uma exportadora em São Paulo, passou a monitorar os sites e aplicativos que os funcionários acessam. Mas foi tudo na surdina. Bárbara descobriu pela chefe, de maneira informal. “Acho que deveríamos, ao menos, ser avisados. Nem sei que tipo de informação eles rastreiam. As redes sociais já eram bloqueadas, mas agora eu nem entro em aplicativos de música com medo de ser punida de alguma maneira”, diz.

Para o bem ou para o mal, o fato é que o monitoramento veio para ficar. E deu origem a um paradoxo. Num momento em que vários países buscam limitar o acesso de dados pessoais por parte de gigantes de tecnologia, como Google e Facebook, empresas criam seus Big Brothers particulares com ferramentas cada vez mais intrusivas. Para detectar possíveis abusos, talvez valha monitorá-las mais de perto.

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