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Black money: conheça o movimento que fomenta o empreendedorismo negro

Os pretos e pardos representam 51% dos donos de negócios no Brasil, e têm seus pedidos de crédito negados três vezes mais que os brancos.

Por Juliana Américo
Atualizado em 2 abr 2021, 14h15 - Publicado em 7 out 2020, 08h00

Existe uma lenda africana que conta a história de um antropólogo. Ao visitar um povoado, ele organizou uma brincadeira com as crianças. Colocou um cesto de frutas embaixo de uma árvore e falou: “Quem chegar primeiro vai ficar com todas as frutas”. Quando o antropólogo deu sinal para as crianças começarem a correr, elas deram as mãos e foram até o cesto. Juntas.

O pesquisador questionou a atitude, e uma das crianças respondeu: “Como um de nós poderia ficar feliz se o resto estivesse triste? Ubuntu”. A palavra Ubuntu, originária das culturas Zulu e Xhosa, significa “sou quem sou porque somos todos nós”, e exprime a ideia de que a cooperação é a chave para a harmonia.

Resgatar esse princípio é algo fundamental hoje. Em 1997, a especialista em finanças Brooke Stephens publicou um estudo sobre a movimentação do dinheiro nos EUA. Enquanto US$ 1 circula por 30 dias dentro da comunidade asiática e por 20 dias na judaica, na comunidade negra esse período cai para seis horas. Resumindo: o dinheiro sai das mãos de trabalhadores e consumidores negros, mas não chega aos empreendedores negros.

Nos EUA, 9,5% dos negócios têm negros como donos. É uma proporção parecida com a de afrodescendentes por lá – 13,5%. No Brasil é parecido. Com uma diferença. Os pretos e pardos representam 56% da população brasileira. E também formam a maioria dos empreendedores. Segundo a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) de 2014, 51% dos empreendedores são afrodescendentes. Entre os microempreendedores, o número sobe para 56%, de acordo com o Global Entrepreneurship Monitor (GEM). Só tem um detalhe: o rendimento médio mensal dos empreendedores negros é de R$ 1.370, contra R$ 2.745 dos empreendedores brancos – uma diferença de 50%.

Outra comparação. Nos EUA, empreendedores negros sofrem mais para obter crédito. Nos EUA, um estudo do Fed, o Banco Central deles, mostrou que mais da metade dos negros donos de negócios tiveram pedidos de empréstimo negados – uma taxa duas vezes maior do que entre empreendedores brancos.

E no Brasil é pior. Empresários negros têm os seus pedidos de crédito negados três vezes mais do que os brancos, de acordo com o Small Business Administration (SBA), o Sebrae dos EUA. Mais: um estudo realizado em 2019 pela organização PretaHub, em parceria com o instituto de pesquisas Plano CDE e o banco JP Morgan, mostrou que 32% dos empreendedores negros tiveram crédito negado sem uma explicação plausível.

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(Arte/VOCÊ S/A)

Foi exatamente o caso do publicitário Sérgio All. O paulistano, de 45 anos, começou a empreender cedo – aos 16 foi trabalhar em uma loja de departamentos, mas sua vocação era empreender. No final dos anos 1990, desenvolveu, junto com alguns amigos, um buscador de dicas sobre games. “Quando eu era mais novo, não existia essa ideia de empreendedor. A gente era ‘sonhador’. Mas o negócio deu certo, e conseguimos um público de quase 30 mil pessoas”, conta o empresário.

Em 1999, Sérgio vendeu a sua parte do negócio de games e abriu uma agência de comunicação que produzia sites. Seis anos depois, viu a necessidade de investir em novos equipamentos para expandir a empresa. O empreendedor foi até o banco onde tinha uma conta havia mais de dez anos. Apresentou sua proposta e solicitou um empréstimo de R$ 50 mil. Recebeu um sonoro “não”, e saiu da agência com as mãos vazias. “Era um valor compatível com as minhas movimentações financeiras. Isso me deixou muito frustrado. Nesse dia, eu saí do banco falando que ia abrir um banco.”

E foi o que ele fez. Sérgio criou, em 2017, sua própria instituição financeira: a Conta Black, um banco digital voltado para clientes negros.
“O setor bancário é um clube fechado e eu precisava estar envolvido com pessoas do segmento. Uma coisa que eu aprendi na publicidade foi a fazer network. Então, ao longo do tempo, eu fui me relacionando com pessoas que foram me auxiliando e abrindo portas.” Mesmo assim, dinheiro continuou sendo um problema e Sérgio precisou partir para o desapego: se desfez de algumas coisas, juntou as economias e investiu no novo negócio.

Segundo o instituto de pesquisas Locomotiva, o país conta com 45 milhões de desbancarizados, que movimentam R$ 871 bilhões por ano. São essas pessoas que a Conta Black pretende atingir – 69% desse público é negro. “São pessoas que não têm como comprovar renda, não têm um perfil bancário anterior ou estão endividadas. Então, tiramos o obstáculo de análise financeira. Só analisamos a documentação para evitar fraudes. Também buscamos oferecer educação financeira”, explica. Além do microcrédito, a fintech permite abrir contas de pessoas físicas e jurídicas, fazer pagamentos, saques, transferências, emissão de boletos e cobranças. E oferece um cartão de crédito pré-pago. Com uma equipe de 15 pessoas, o banco digital soma 3 mil contas abertas. E 80% dos clientes são negros. O objetivo é fechar o ano com 50 mil clientes.

O espaço para crescer é amplo, de fato. De acordo com o instituto Locomotiva, os negros movimentaram R$ 1,7 trilhão em 2018 – 24% do PIB. E o Conta Black não está sozinho. Já existem outras quatro instituições financeiras voltadas à população afro: a D’Black Bank, a Grana Preta, a Ubuntu Finanças e a Firgun.

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Esse tipo de iniciativa é parte de um esforço maior: o de que negros ajudem negros a levantar seus negócios. O conceito nasceu nos EUA, lar de 90 instituições financeiras voltadas para negros. E começa a ganhar terreno no Brasil. Não são apenas os bancos digitais. O black money brasileiro também conta com aceleradoras – instituições que investem em startups – voltadas aos empreendedores negros.

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(Arte/VOCÊ S/A)

É o caso do PretaHub, que já acelerou dez empresas em nove Estados – de vestuário, cosmético, alimentação e produção de vídeos. Boa parte delas criadas por negros para atender ao público negro. “A população negra empreende há 13 décadas, desde o processo de abolição, mas sempre foi algo ligado à necessidade. O empreendedorismo era visto menos como um negócio e mais como uma forma de sobreviver. Mas nos últimos 20 anos nós vimos um salto – da necessidade para a oportunidade. Hoje existe um mercado de consumo focado nas especificidades da população negra e empreendedores que estão produzindo para atender essa demanda”, diz Adriana Barbosa, presidente do PretaHub.

Outra aceleradora é a Fa.Vela (Fundo de Aceleração para o Desenvolvimento Vela) – que acelerou 500 empreendedores em 25 municípios de Minas, Espírito Santo e Pará, e organiza programas para educar novos donos de negócios. Para João Souza, cofundador do Fa.Vela, essa nova realidade, mais promissora para o empreendedorismo negro, já é bem percebida entre os jovens das periferias. “Hoje, quando você olha para esse pessoal, você percebe que estão escolhendo o futuro deles, e escolhendo criar negócios simplesmente porque podem. E essa consciência foi construída graças à luta do movimento negro.”

Outra fomentadora ligada ao movimento negro é o ÉdiTodos. Trata-se de um fundo que recolhe doações de pessoas, empresas e family offices (os escritórios que administram as fortunas de grandes empresários) e direcionam o capital para empreendimentos da comunidade negra.

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(Arte/VOCÊ S/A)

Back in black

Tramita no Senado o Projeto de Lei 2538/2020, que visa criar uma política nacional de apoio ao empreendedorismo negro. Entre as propostas de desenvolver estratégias e ações para o fortalecimento e desenvolvimento das iniciativas de negócios, há a criação de uma “Rede Nacional de Micro e Pequenos Afroempreendedores”, além de tornar mais fácil o acesso ao crédito.

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O projeto também destaca a necessidade especial de apoio às mulheres negras que empreendem. Tal como acontece com a população como um todo, elas representam hoje a metade das donas de negócios no país, somando um contingente de 4,7 milhões de empreendedoras.

Não se trata aqui apenas da questão econômica. O fato é que muitas mulheres encontram nos negócios uma forma de fugir da violência doméstica. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2018 revelam que 61% das 1.206 mulheres vítimas de feminicídio eram negras; já no Ligue 180, de 2016, das mulheres que registraram casos de violência doméstica, 60% eram negras. “Essa é uma realidade nas periferias, e muitos de nós vimos as nossas mães empreendendo para sair de um ciclo de violência. Para escapar da dependência financeira do marido e proteger os filhos. Às vezes, essa é a única oportunidade que aquela mulher tem para sobreviver, e não virar mais uma nas estatísticas”, diz João, do Fa.Vela.

Alex Barcellos, do ÉdiTodos, completa: “Foram elas que consolidaram a construção da periferia. A primeira economia que você conhece é a da sua mãe; é ela quem dá o dinheiro, que fala se pode comprar ou não. Ela é o primeiro contato que se tem com o empreendedorismo – quando vende doce ou salgado para trazer uma renda para dentro de casa, por exemplo”.

Luanna Teófillo, de 39 anos, faz parte das 4,7 milhões de mulheres negras que partiram para o empreendedorismo. Natural de São Paulo e formada em Direito, Luanna estava estudando Linguística na Universidade de Sorbonne, em Paris, entre 2010 a 2012.

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Luanna Teófillo desenvolveu um painel de pesquisa especializado no consumidor negro. (Ilustração: Tiago Araújo/VOCÊ S/A)

Quando voltou para o Brasil, em 2013, ela fundou a Doorbell Ventures, uma startup de desenvolvimento de negócios e, logo depois, a BAP Store, um e-commerce de produtos afro –BAP é a expressão Black American Princess e se refere às mulheres negras de classe média dos EUA. Ela também criou um painel de consumidores – que é uma forma de pesquisa de mercado – especializado no público afrodescendente. “Ele é gerido pelo princípio do Ubuntu – cujo objetivo não é só aumentar a representatividade, mas também fomentar o empreendedorismo direcionado ao consumidor negro.”

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O outro lado dessa moeda é incentivar o consumidor negro a comprar do empreendedor negro – de modo a manter o dinheiro circulando dentro da comunidade. Só tem um problema: não é fácil fazer com que os potenciais clientes fiquem sabendo sequer da existência dessas empresas.

Esse foi o motivo que levou ao surgimento do Clube da Preta. Formado em Administração, Bruno Brigida, de 31 anos, tinha uma corretora de seguros quando começou a frequentar feiras de afroempreendedores. “Eu conversava com os outros empresários e eles sempre relatavam que vendiam bem durante as feiras e no Natal, mas que nos outros meses era muito difícil. Isso foi se tornando uma dor para mim. E eu comecei a pensar em uma solução.”

O paulistano, então, criou um clube de assinatura – daqueles que enviam uma caixa de produtos todo mês para a sua casa. É o Clube da Preta. Nas caixas, chegam acessórios de moda, cosméticos, discos, livros – todos voltados à cultura negra, e distribuídos ou produzidos por empresas das
periferias. Ou seja: os assinantes passam a conhecer cada vez mais afroempreendimentos.

Hoje, são cerca de 120 parceiros e 600 assinantes. “A gente quer atingir pelo menos 1.500 clientes. Esse era o plano para este ano, mas precisamos postergar as metas por causa da pandemia. Agora, em agosto, já voltamos a crescer”, diz Bruno.

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Bruno Brigida e Débora Luz criaram um clube de assinaturas com produtos feitos por afroempreendedores. (Ilustração: Tiago Araújo/VOCÊ S/A)

Um por todos

De acordo com uma pesquisa realizada em 2015 pela ONG Baobá, a maioria dos negócios de pessoas negras está na categoria de microempreendedor individual (MEI), sendo que os setores de comércio, serviço, alimentação, moda e estética dominavam entre os afroempreendedores. Mas esse perfil vem mudando, e os negros estão marcando presença em outras áreas.

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O paulistano Rodrigo Faustino, de 43 anos, decidiu seguir no ramo da educação. Quando ele estava cursando engenharia, lá pelos anos 2000, iniciaram-se as discussões sobre as cotas universitárias para negros. “Na época, as empresas afirmavam que não contratavam negros porque eles não estavam na faculdade. Quando a gente ultrapassou essa barreira, começaram a alegar a falta de inglês. Ou seja, sempre tinha um entrave que impedia a contratação dos negros.”

Ele sofreu na pele a dificuldade de conseguir se colocar no mercado de trabalho por causa da falta do idioma e começou a se reunir com outras pessoas, para estudarem inglês por conta própria. Foi quando percebeu que o material didático oferecido não tinha representantes da cultura afro. “Não havia textos ou filmes sobre negros, e quando tinha alguma coisa de música era do Michael Jackson.”

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Representatividade: Rodrigo Faustino leva a cultura afro para o ensino de inglês. (Ilustração: Tiago Araújo/VOCÊ S/A)

Em 2008, ele fundou a Ebony English School, uma escola de inglês com ensino baseado na cultura negra – ou seja, em vez de Beatles, os alunos acompanham músicas de Marvin Gaye ou Bob Marley; e os textos sobre cultura britânica ou norte-americana são substituídos por obras sobre a África e diáspora negra. “Quando você se vê representado em um assunto que gosta, o interesse aumenta”, diz o empreendedor.

A escola tem hoje oito professores que atendem 150 alunos, e o faturamento cresce cerca de 20% ao ano. Por causa da pandemia, Rodrigo precisou ofertar os cursos de forma online. E foi bom: com isso, a metodologia da escola expandiu os limites da cidade de São Paulo e agora atende estudantes de vários Estados.

A Ebony também tem parcerias com agências de intercâmbio. A ideia, porém, não é levar alunos para os destinos manjados, mas fazer com que eles conheçam lugares como Gana, Quênia, África do Sul, Jamaica, Trinidad e Tobago. Ubuntu.


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