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Real Digital: o Pix dos investimentos?

As moedas digitais de BCs são uma solução em busca de um problema? Entenda os argumentos pró e contra, e descubra por que o Banco Central brasileiro decidiu seguir um caminho único no mundo com a Drex.

Por Tássia Kastner | Design: Kauan Machado | Colagens: Tiago Araujo | Edição: Alexandre Versignassi
Atualizado em 21 ago 2023, 00h29 - Publicado em 11 ago 2023, 06h19
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 (Tiago Araujo/Fotos: Getty Images/VOCÊ S/A)
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ChatGPT você já conhece. Meses depois do sucesso estrondoso da tecnologia, o criador da ferramenta anunciou uma certa Worldcoin, criptomoeda imaginada para “permitir o acesso de todos à economia global”. Não é a primeira vez que uma tech se aventura no mundo cripto – nem se trata da iniciativa mais ambiciosa.

30% da população mundial já utilizava algum serviço do Facebook em 2019, o ano em que Mark Zuckerberg anunciou o plano de lançar sua própria cripto, chamada Libra. Ali, pela primeira vez, bancos centrais do mundo todo tiveram medo de que a tecnologia surgida com o Bitcoin pudesse de fato ser usada para criar uma moeda de uso internacional – e fora dos braços do Estado.

Aí os BCs reagiram: proibiram a Libra de ir para frente. Mas, em paralelo às barreiras regulatórias, começaram a pensar algo inusitado: produzir suas próprias criptos. A esses projetos, deu-se o nome de “moedas digitais de bancos centrais” (CBDCs na sigla em inglês). Seria a versão digital do dinheiro que você tem na carteira. Ou melhor: que você costumava ter.

Desde a criação do Pix, o uso de dinheiro em espécie caiu 11% no Brasil. Mesmo antes dele, 30% do volume de transações já rodavam em cartões de crédito e débito Em outras palavras, a gente já vive num mundo de dinheiro digital. 

Não à toa, o debate sobre as CBDCs virou um fla-flu. De um lado, entusiastas afirmam que esse é o único caminho para defender a moeda nacional, e de quebra modernizar a economia. Do outro, há um coro cada vez mais sonoro afirmando que moedas digitais de BCs não serviriam para nada. Não só: criariam efeitos colaterais mais deletérios do que os eventuais benefícios que poderiam trazer. 

Afinal, as CBDCs são uma solução em busca de um problema? Para entender esse debate, vamos primeiro examinar as entranhas do sistema financeiro.

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(Tiago Araujo/Fotos: Getty Images/VOCÊ S/A)

O que é dinheiro

Olhe o saldo no app do seu banco: R$ 700, R$ 1 mil, R$ 3 mil? Tecnicamente, o Banco Central não chama essa grana de dinheiro, mas de depósito. E esse depósito, você sabe, o banco usa para dar crédito a quem bate à porta querendo financiar uma casa, um carro, um iPhone. Isso é chamado de dinheiro de banco. E ele é diferente do dinheiro de banco central. Esse é só o de papel mesmo: você só tem quando vai até um caixa eletrônico fazer um saque. 

Em condições normais de temperatura e pressão, ninguém pensa nessa diferença. Natural. A única coisa que importa é que você trabalhou, recebeu por isso, o dinheiro está no banco e você poderá usá-lo quando quiser. Num improvável cenário de colapso de todo o sistema bancário, porém, esse dinheiro some, pois já foi emprestado para alguém. Essa é a grande diferença entre dinheiro de banco e dinheiro do BC, as notas de papel. É por isso que países em crise viveram corridas bancárias: as pessoas voam aos caixas para sacar cédulas antes que seja tarde. Aconteceu nos EUA da década de 1930 e na Argentina do século 21.    

Existe também um segundo tipo de dinheiro de banco central, aquele que o BC empresta para as instituições financeiras na forma de reservas bancárias – um colchão de recursos para garantir que todo mundo tenha um mínimo de dinheiro “para valer” em caixa. Dá mais ou menos 10% do total de empréstimos que a instituição financeira concedeu a seus clientes.

Esse montante tem também uma segunda função: balizar o custo do crédito no sistema financeiro. O BC não empresta reservas de graça. Ele cobra a taxa Selic. Os bancos também trocam empréstimos entre eles todos os dias, sem precisar bater na porta do BC para fazer a conta fechar. Esses empréstimos também acontecem pelo valor da Selic, e a lógica é óbvia: se o banco A cobrar do B um percentual maior, o B vai até o BC pagar mais barato.

Quando o BC sobe a Selic, o empréstimo fica mais caro porque esse é o preço que os bancos pagam pelo dinheiro que vão emprestar na praça, em outras palavras, é o “custo de produção” deles. Por outro lado, clientes ficam menos dispostos a tomar crédito caro. Quando o BC baixa os juros, o custo do crédito também cai. E ele só consegue operar essa mágica porque pode emitir o tanto de moeda que bem entender para emprestar aos bancos. O nome disso é política monetária. E o dinheiro de banco central é crucial para que ela exista. 

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Já criptos passam completamente à margem dessa dinâmica. BCs não emitem Bitcoins ou Ethereums. Se todas as pessoas decidirem converter seus reais em cripto, esse dinheiro sai da economia bancária e deixa de ser usado no crédito. Os bancos não conseguiriam atuar. E não haveria mais financiamentos – ao menos não da forma como os conhecemos.

O BIS (uma espécie de banco central dos bancos centrais) faz anualmente uma pesquisa com BCs sobre o desenvolvimento de CBDCs – dos 86 consultados em 2022, 93% afirmaram estar engajados no desenvolvimento de alguma moeda digital para chamar de sua. A maioria dos países ainda está em fase inicial de estudos, enquanto 25% já começou desenvolver ou rodar projetos-piloto. Ainda de acordo com o BIS, a expectativa é que 15 CBDCs estejam em funcionamento até o fim da década.

Quando os pesquisadores perguntam por que eles estão desenvolvendo suas CBDCs, as respostas são categorizadas em seis grupos: estabilidade financeira, política monetária, inclusão financeira, melhora nos sistemas de pagamentos doméstico e internacional, e resiliência do sistema. A dinâmica que explicamos nos parágrafos anteriores se encaixa nos dois primeiros grupos, estabilidade financeira e política monetária. 

Acontece que as CBDCs não necessariamente tornam uma economia mais estável ou ajudam no trabalho dos BCs com os juros, ainda que possam funcionar como um instrumento de prevenção. A ideia é que as moedas digitais de banco central sejam tão convenientes e inovadoras que as pessoas não se interessem mais por criptos, e continuem usando o dinheiro oficial do país.

Falta combinar com os russos – no caso, com a população. As quatro CBDCs que já estão em funcionamento no mundo dão sinais pouco animadores: o pioneiro Sand Dollar, nas Bahamas; a eNaira, na Nigéria; o JAM-DEX, na Jamaica, e o DCash, do Banco Central do Caribe Oriental, tiveram adesão pífia até o momento. Lançados de 2020 em diante, não alcançam nem 1% do dinheiro que circula nos seus países. Na Nigéria, 0,5% da população usa a eNaira, e o governo já estuda a refundação do projeto com um novo parceiro tecnológico. Além de não resolver problemas, as CBDCs podem criar outros. Vamos a eles.

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A solução que cria problemas

Moeda digital de banco central é um nome genérico. Por enquanto, não existe uma única moeda digital no mundo que siga as mesmas regras. Cada país trabalha no projeto tentando resolver problemas que identifica internamente, e com redes de blockchain diferentes, que não conversam entre si. 

Há ainda uma divisão de acordo com o tipo de CBDC que será emitida: de varejo, que converte as cédulas em algo digital (mas que não é dinheiro de banco); de atacado, que os BCs usariam nos empréstimos que fazem a bancos, como explicamos antes, e as CBDCs híbridas, que usam os dois recursos. A maioria dos países trabalha com um modelo de varejo ou híbrido.

Só que, ao criar uma moeda digital para as pessoas, os bancos centrais potencializam problemas que desejavam resolver. A ameaça de corrida bancária, por exemplo. Com uma CBDC, ninguém mais precisaria ir até uma agência ou caixa eletrônico sacar reais caso tivesse receio de uma crise sistêmica. 

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(Tiago Araujo/Fotos: Getty Images/VOCÊ S/A)

Daria para converter automaticamente o dinheiro de banco do saldo em moeda digital. Só que isso aceleraria ainda mais o processo de quebra de qualquer instituição financeira, já que banco nenhum tem todo o dinheiro dos clientes no cofre. 

Numa realidade assim, eles teriam de conceder menos crédito, já que essa CBDC de varejo não contaria como dinheiro de banco.  

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Países que estudam emitir CBDCs de varejo têm colocado em seus projetos um limite máximo de quanto dinheiro cada pessoa poderia ter, uma tentativa de remediar o efeito adverso da nova tecnologia para o sistema bancário – sem o qual, não custa repetir, ninguém nunca mais compraria qualquer coisa a prazo. 

Na Europa, fala-se em 3 mil euros por pessoa. A necessidade de um teto reforça as afirmações de que talvez a CBDC não seja tão vantajosa quanto os entusiastas prometem. E também não resolve problemas dos sistemas de pagamentos dentro do país. Porque isso o Pix já resolveu.

Revolução

O sistema de pagamentos instantâneo do Brasil não é único no mundo – outros países colocaram no ar um serviço semelhante, caso de Índia, Dinamarca e Suécia. O que torna o Pix único é a velocidade de adoção, foram 7 bilhões de transações só no primeiro ano.

Virou uma referência. E faz sentido: até a chegada do Pix, uma transferência bancária poderia custar até R$ 20, pouco importando qual o valor a ser transferido. Havia um problema a ser resolvido, e a ferramenta do BC deu conta do recado. 

O lançamento do Pix ocorreu quatro meses depois de o Banco Central anunciar a criação do grupo de trabalho que pesquisaria o desenvolvimento da CBDC brasileira. Subitamente, o caso de uso mais defendido no mundo para moedas digitais de bancos centrais – melhorar o mercado de pagamentos – já não existia mais.

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Agora, pesquisadores defendem que não faz sentido países investirem em CBDCs para essa tarefa, já que há um jeito mais seguro de realizar pagamentos instantâneos – e sem os efeitos colaterais que vimos acima. 

Peter Bofinger e Thomas Haas, pesquisadores da Universidade de Würzburg, argumentam que sistemas de pagamentos instantâneos são mais convenientes sem a criação de ativos específicos, algo que aconteceria com a implantação de CBDCs. O sucesso do Pix no Brasil serve como prova empírica da tese. 

O próprio Banco Central brasileiro parece concordar com essa afirmação. A revolução do Pix foi tão brutal que o BC precisou mudar completamente o que imaginava da sua CBDC, o “Real Digital”.

O projeto único

O desenho atual do Real Digital é único no mundo. Recentemente, a moeda ganhou nome: Drex. A ideia agora é que ele seja uma CBDC apenas de atacado, aquela usada na relação entre BCs e bancos. Significa o seguinte: você não terá um Real Digital, mas dinheiro de banco tokenizado (ou real tokenizado) e que vai mudar de mãos em uma rede blockchain. Token é o nome alternativo para criptoativo, e que carrega menos estigma.

Esse plano B resolve os problemas de desintermediação financeira que discutimos antes. Por outro lado, ela assume que não há a necessidade de dar à população uma nova forma de pagamento, já que o Pix resolveu essa questão.

“O objetivo do Real Digital é a inclusão financeira”, resume Fábio Araújo, coordenador do projeto no Banco Central.

Isso aconteceria, nas palavras dele, a partir da criação do “Pix dos ativos financeiros”. O foco do BC é replicar o ecossistema de finanças descentralizadas, que o mundo cripto chama de DeFi. 

A ideia é que dentro de redes blockchain dá para colocar mais de um tipo de informação ao mesmo tempo, de forma sincronizada. Imagine uma rua de mão dupla: de um lado da pista vai o dinheiro, do outro, o investimento. O lance é que os dois veículos só podem se deslocar ao mesmo tempo por esse caminho.

Transportando isso para o mundo das finanças pessoais, significa dizer que um investimento só acontece quando, de um lado, a grana está na cara do gol esperando a transferência, e, do outro, o vendedor do investimento já liberou a transação pelo valor combinado. 

Vamos pegar como exemplo os títulos públicos. Hoje, você pode entrar no site do Tesouro Direto e apertar o botão comprar mesmo sem ter saldo na conta. Por outro lado, como a sua corretora precisa confirmar que você tem dinheiro, o processo entre investir e ver o título na carteira leva dois dias úteis. 

Com essa rede blockchain e o Real Digital, a ideia é que essa transação seja instantânea, 24 horas por dia, 7 dias na semana. Estilo Pix.

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(Tiago Araujo/Fotos: Getty Images/VOCÊ S/A)

É exatamente isso que está em teste agora, no projeto-piloto que deve ser conduzido até o fim deste ano. O infográfico da página ao lado ilustra o fluxo de transferência de recursos em estudo pelo BC, e que vai ser executado por bancos e outras instituições financeiras até o final do ano. 

Para Araújo, a instantaneidade segue a mesma linha do mundo cripto, em que não é necessário esperar o horário bancário – ou da bolsa – para investir. Ele avalia que esse seria um incentivo para atrair novos investidores para produtos regulados, como são as ações, os FIIs e os títulos de renda fixa. Em 2022, a quantidade de investidores que detinham criptomoedas (2% do total) era equivalente àquela com ações na bolsa (2% também), segundo uma pesquisa Datafolha encomendada pela Anbima. 

“[A Drex] Abre a possibilidade de acessar serviços de maneira simples, é isso que a gente gostaria que acontecesse”, afirma.

Para além da instantaneidade, há a avaliação de que as transações poderiam ser mais baratas. A principal justificativa seria a retirada de intermediários do processo, mas, para isso acontecer, as regras de funcionamento do mercado precisam mudar. 

“É potencialmente mais barato, mas é preciso combinar com o resto dos stakeholders [ou seja, o mercado como um todo]”, afirma Fabrício Tota, do Mercado Bitcoin. O Banco Central ainda não se debruçou sobre o tema.

De qualquer forma, o caminho encontrado pelo BC para manter de pé a moeda digital, de alguma maneira, vai ao encontro do que críticos de CBDCs têm afirmado: trata-se de uma manobra para dar alguma utilidade a essa tecnologia. 

A consultoria Oliver Wyman se debruçou sobre os projetos de CBDCs ao redor do mundo. Ao analisar o projeto brasileiro, a empresa elencou um caso em que ela pode ser particularmente útil: o aperfeiçoamento da negociação de ativos não-financeiros, como casa e carro. 

Esse é um setor caro ao Santander, que tem forte atuação no mercado de financiamento a veículos. O banco há anos almeja um instrumento que atrele a transferência da titularidade dos veículos ao pagamento, algo que hoje é impossível. Na prática, o comprador e o vendedor, que geralmente não se conhecem, precisam confiar um no outro para concluir a transação.

Um Real Digital permitiria isso. O carro também teria uma representação virtual na blockchain do BC. Ele também seria um token, registrado ali em nome do proprietário. Quem comprasse o token viraria dono da “versão real” do carro. O Real Digital também seria um token registrado em nome do portador. Se você transferir uma certa quantia em Real Digital em troca do carro “tokenizado”, e o vendedor aceitar, acabou: o carro de verdade já está no seu nome. Sem burocracia. É o que acontece hoje no comércio de NFTs – bastante consolidado, apesar da decadência do hype.   

“O principal ponto [dessa discussão] é se a gente acredita que todos os ativos deveriam estar tokenizados. Se eu acreditar que existem benefícios de tê-los tokenizados, aí as transações deveriam ter uma moeda equivalente [a CBDC]”, afirma Jayme de Moraes, líder de Open Finance e CBDC do Santander Brasil.

Para Moraes, é hora de os bancos de fato criarem utilidade para a ferramenta, algo que ele chama de começar a sujar as mãos de graxa. “O uso efetivo é bastante difícil de prever, vai depender dos casos de uso.” 

Se há algum consenso sobre os ativos financeiros, Leandro Vilain, sócio da Oliver Wyman e ex-Febraban, é mais cético justamente sobre tokenizar casas e carros para as transações de compra e venda, por causa da cadeia intrincada de gente envolvida na transação. “Não é realístico que todos os ativos serão tokenizados”, avalia.

Curiosamente, a utilidade mais importante da CBDC é a que vem ganhando menos atenção: a rede para facilitar as remessas de dinheiro internacionais, que poderia substituir o Swift.

A rede atual tem mais de 40 anos, é cara e as transferências demoram para serem completadas. E há ainda o problema de fuso-horário. Quando um banco está aberto no Brasil, seu par chinês está fechado.

Acontece que, para isso, os bancos centrais deveriam estar trabalhando de forma orquestrada – algo que não está ocorrendo. No fim de junho, o FMI anunciou que planeja investir na adoção de CBDCs de maneira global, mas que os países deveriam convergir para uma única tecnologia.

A pergunta título desta reportagem foi o ponto de partida de todas as entrevistas. Talvez a resposta que melhor resuma o debate seja a de Guto Antunes, líder de Digital Assets do Itaú. “É algo que tem se discutido no mundo, e a sensação que a gente tem é essa também. Não tem resposta. Mas as grandes tecnologias vêm antes do problema.” 

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