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O cancelamento dos coaches

Coaching quântico, reprogramação de DNA e outras fraudes estigmatizaram o ofício dos coaches. Mas não falta gente séria no mercado. Aprenda a separar o joio do trigo na hora de procurar por esse tipo de ajuda. E saiba qual é o caminho das pedras caso você queira abraçar a profissão.

Por Alexandre Carvalho
Atualizado em 19 mar 2021, 17h29 - Publicado em 19 mar 2021, 13h17

“Esse Raul, ele é seu coach?”. O interrogatório de uma mãe vem em tom de preocupação e suspeita. O filho desconversa, mas a mãe insiste: “É que ultimamente você anda colocando meta para tudo”. Acuado, o rapaz diz que Raul seria seu namorado. Mas não é isso que preocupa a família.

Quando o pai resolve abrir sua mochila à força, como quem procura por drogas, o que acha é Ritalina, medicamento para foco e produtividade. Aí não tem como disfarçar: o filho tem passado por sessões de coaching com o tal Raul e – vergonha! – quer ser coach também. A mãe se desespera: “A gente não gastou uma fortuna na sua educação para você cair na lábia de um coach”.

Mas o filho bate o pé: “Não tem nenhum problema nisso. Aliás, vocês precisam mudar o mindset de vocês”. Mindset… Ao ouvir o termo em inglês para mentalidade – um dos jargões usados e abusados no mundo corporativo –, o pai perde a paciência, e o couro come.

Esse falso drama familiar, claro, é um esquete do grupo Porta dos Fundos satirizando os estereótipos criados em cima da figura do coach, esse profissional que o cidadão médio não sabe muito bem o que faz – e decidiu cancelar, num tsunami de memes. Não foi só comédia.

Em janeiro deste ano, o Fantástico apresentou um quadro com ênfase na banalização dos coaches, repleto de imagens de um auditório lotado para um evento motivacional e menções a “especialidades” bizarras, como “coach de reprogramação de DNA para abundância”. Ou “coach quântico”.

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“Coach quântico”: conversa fiada, com 0% de ciência. (Fernando Molina/VOCÊ S/A)

Poderia ainda ter falado em “coach de animais” (não no sentido de adestramento), “coach de gratidão financeira”, “coach de constelação familiar”… Tem até homem se dizendo “coach de empoderamento feminino”. Na maioria das vezes, claro, é a mais pura picaretagem. Na reportagem, um entrevistado disse ter largado a faculdade para virar coach de técnicas infalíveis para conquistar mulheres. Algo que lembra o papel de Will Smith no filme Hitch, Conselheiro Amoroso.

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Nesse dia, o filho de 5 anos da coach Eva Bomfim, de Salvador, graduada em Letras e com formação em coaching pelo instituto Appana Território de Aprendizagem, estava vendo o programa também. O menino ficou intrigado: “Mamãe, é isso que você faz?”. A profissional, que atende de executivos a pessoas com dificuldades de comunicação e de relacionamento, precisou explicar que não era nada daquilo.

Mas Eva tem consciência de que o programa da Globo, apesar de escolher focar nos maus exemplos, tinha suas razões: há de fato muito embusteiro à solta, o que tem sido determinante para uma visão negativa (e desinformada) da profissão. “Confesso que já passei por algumas crises, de repensar se me apresento como coach”, diz Eva. “Normalmente começo falando que trabalho com processos de transformação, preparando pessoas para mudanças, atendendo quem está passando por momentos desafiadores, falo dos benefícios. Até que, no fim da conversa, me sinto segura para dizer: ‘então… isso é coaching’. É quando a pessoa se surpreende positivamente.”

Formado em Engenharia e pós-graduado em Psicologia Positiva, Gustavo Castro, do Recife, tem uma estratégia semelhante. Ele deixou um emprego na Unilever há cinco anos, após migrar de uma área técnica para o setor de desenvolvimento de pessoas. Foi quando conheceu o coaching, buscou formação na área e decidiu trabalhar exclusivamente com isso.

“Acho que o termo coach está comprometido no nosso país”, ele acredita. “Comecei a ter bastante cuidado na hora de me apresentar, para que a pessoa possa me conhecer e entender minha formação, minha carreira, antes de ter contato com um termo que, na cabeça dela, pode estar deturpado.”

Gustavo atende pessoas físicas e empresas de pequeno e médio porte, meios nos quais a onda recente contra a profissão criou mais estigma e preconceito. Situação que é bastante diferente da dos profissionais cuja clientela é formada, predominantemente, por grandes companhias. Esses coaches costumam ser procurados por gestores de Recursos Humanos, interessados em desenvolver competências nos líderes da organização ou acelerar uma maturidade de liderança em alguém recém-promovido a chefe, entre outros objetivos.

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(Arte/VOCÊ S/A)

São contratantes já habituados à cultura do coaching como alternativa de aprendizagem, que têm um histórico de casos positivos na empresa e sabem diferenciar o joio do trigo. Gente que busca profissionais como Luciana Rovegno, de São Paulo, especialista em coaching executivo, com 12 anos de experiência nessa área, e que concentra quase todos seus atendimentos em líderes de grandes organizações – de gerentes a CEOs.

Ela não percebe rejeição ao trabalho por parte de seus clientes, mas também não se vê blindada. “Quando ganhei minha nova credencial de coach, um avanço entre os meus reconhecimentos profissionais nessa atividade, divulguei nas minhas redes sociais e, entre os parabéns que recebi, uma prima comentou que se orgulha muito de mim, porque eu seria ‘uma das únicas profissionais sérias na área’. Me senti nivelada por baixo.”

A situação se tornou tão preocupante que, num estudo da PwC divulgado ano passado sobre a atividade de coaching no Brasil e no mundo, 63% dos coaches brasileiros apontam a má fama de indivíduos sem formação que se intitulam coaches como o principal obstáculo para o avanço da profissão (no mundo, 49% pensam assim).

O caso mais emblemático de picaretagem são mesmo os coaches quânticos. O mundo quântico de verdade, o das partículas subatômicas, tem mesmo elementos que parecem mágicos. O maior deles é o fato de a realidade subatômica depender da figura do observador. Uma partícula pode se comportar como um elemento sólido quando há alguém observando (via detectores, em laboratório). Essa mesma partícula muda de realidade quando certos detectores são desligados, e passa a se comportar como algo abstrato – uma onda.

Lindo. O problema é: não falta gente despreparada dizendo que, se o mundo subatômico é assim, o nosso também seria. Sua vida dependeria do seu ponto de vista. E você poderia mudar realidade “com a força do pensamento”, assim como a observação em laboratório altera a natureza de uma partícula. Desnecessário dizer que isso não é ciência. É esoterismo, que busca se passar por ciência para ser levado a sério. Vale o mesmo para a “reprogramação de DNA”. Perdão. Não rola. Quem “reprograma DNA” é vírus. Eles contêm instruções que alteram o código genético das nossas células para torná-las produtoras de mais vírus – e o resultado, você sabe, não é dos mais animadores. Qualquer outro uso do termo “reprogramação de DNA” é puro embuste.

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Também não existe coaching para grandes auditórios. Isso é palestra motivacional. E só.

MAS, AFINAL, O QUE O COACH FAZ?

Vale começar pelo que ele não faz. Nenhum coach sério, com uma vasta formação, sai por aí dizendo que tem uma técnica infalível – seja para ganhar uma promoção na carreira, para perder peso ou para falar melhor em público. Primeiro porque, se existisse técnica infalível, todo mundo seria perfeito. Bastaria pagar o preço de mercado para atingir esse estado.

Por outro lado, o conceito de que pode haver coach para qualquer coisa – de ficar rico a fazer amigos e influenciar pessoas – não é exatamente errado. Porque coaching é uma técnica que pavimenta o caminho para a busca de soluções. São 10 a 20 sessões – geralmente de uma hora cada, mas pode variar – baseadas na escuta atenta por parte do coach, que faz perguntas ao seu cliente (o coachee). As questões são direcionadas para que ele se conheça melhor e reflita sobre os obstáculos que estão impedindo-o de atingir algum objetivo. E essa meta pode ser, por exemplo, libertar-se de uma mentalidade de funcionário mão na massa para se sentir confortável como chefe daquelas pessoas que antes eram suas colegas.

“Você pergunta o que o cliente quer trabalhar nas sessões. Ajuda esse indivíduo a descobrir o que essa questão significa na vida dele. Vai fazendo perguntas para o coachee entender melhor como se sente em cada situação que descreve”, diz Luciana. “Então, a partir dessas perguntas, ele próprio vai pensando em alternativas. E aí testa isso na prática do trabalho. Depois, volta à sessão e reflete sobre o que fez. Você o ajuda a perceber o que deu certo ou não. E contribui para que ele construa novas estratégias, sempre a partir das próprias conclusões. Isso é coaching.”

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Se dá certo? As grandes empresas reconhecem o coaching como uma importante ferramenta de aprendizagem, principalmente para suas lideranças: 61% dos que procuram esse atendimento são gestores do mundo corporativo, segundo a pesquisa da PwC. Para se ter uma ideia da dimensão do negócio, o coaching já movimenta US$ 2,8 bilhões por ano no mundo e tem uma mão de obra de 71 mil profissionais espalhados pelo planeta. Aliás, é um nicho onde as mulheres são maioria: no Brasil, elas dominam 66% do mercado.

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Para o nível mais alto de certificação, o coach deve comprovar 2.500 horas de atendimento. (Fernando Molina/VOCÊ S/A)

Você pode ter uma visualização melhor do processo assistindo a uma sessão no YouTube. A americana Marcia Reynolds, reconhecida como uma das cinco principais coaches do mundo, faz demonstrações na internet como forma de divulgar o coaching como processo de aprendizagem. Num vídeo de 2018, ela apresenta uma sessão com uma cliente, Aurora Martinez, vice-presidente de uma empresa de tecnologia para educação.

A sessão começa com Aurora, uma mulher na casa dos 40 anos, relatando ter dificuldades em cobrar com firmeza seus colaboradores millennials, sendo que sua empresa tem um ambiente informal (é tech), onde a hierarquia é mais fluida. A coach então pergunta: “Quando você os cobra, o que você gostaria que acontecesse, mas não está acontecendo?”. Basicamente, trabalho duro. Aurora diz que tem receio de pressioná-los com o risco de que eles saiam da empresa – lembrando que os mais jovens não são exatamente apegados à ideia de passar a vida toda no mesmo emprego.

A executiva acha que essa geração quer subir na carreira sem fazer esforço, enquanto ela mesma pensa que é por meio de muito suor e amor à camisa. Daí Marcia faz outra pergunta que já leva a uma reflexão: “O que é mais importante para você: a dificuldade em cobrá-los ou o fato de que as coisas que importam para eles são diferentes das que importam para você?”

Ao longo da conversa, a coach vai fazendo a executiva compreender que se trata mais de um choque de gerações do que uma falha dela como gestora. Aurora lamenta que os millennials não tenham a mesma paixão pelo negócio que ela, e Marcia a faz refletir sobre o quanto desse amor um jovem precisa demonstrar para que ela se sinta satisfeita. A coachee então sai da sessão mais consciente sobre que tipo de pessoa ela quer ter ao seu lado na equipe. E talvez busque desenvolver, em novas sessões, uma maior empatia com esse grupo, já que a diversidade de gerações no ambiente de trabalho é algo positivo. Em suma: não houve uma resposta pronta. Mas uma evolução no autoconhecimento. Isso é coaching.

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NEM MENTORIA, NEM TERAPIA

Repare: essa sessão de Marcia não teve nada de mentoria. Mentor é um indivíduo de grande experiência em determinado assunto, que pode transmitir seu conhecimento para alguém. Geralmente, diante de uma situação complexa mencionada pelo mentorado, o mentor fala de situações semelhantes que ele próprio viveu e como lidou com elas na época – dando exemplos que podem ser aproveitados pelo profissional que precisa de direcionamento.

Também não se pode confundir com consultoria. Por uma diferença básica: o consultor, com base nas informações levantadas junto ao cliente, diz a ele o que fazer para atingir seus objetivos. O coach nunca diz o que alguém deve fazer: ele gera reflexões para que o cliente chegue às próprias respostas.

Já no processo em si, o coaching se assemelha com a psicoterapia. Estão lá o profissional ouvinte, as perguntas que geram autoconhecimento, o mergulho na personalidade, nas vontades e nas repulsas do analisado. Mas há diferenças importantes.

A terapia, na maioria das vezes, se concentra em lembranças do passado para fazer com que o paciente descubra as razões de traumas, bloqueios, desejos escondidos no fundo da mente. O coach não está interessado no seu passado. O que lhe interessa é a situação presente e o que vai ser feito para lidar com ela no futuro. De preferência um futuro próximo: empresas não podem esperar anos – como uma terapia costuma exigir – para que um líder adquira determinada competência. Há um foco em resultado que raramente se vê num divã.

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PARA VENCER O ESTIGMA

Livrar-se de um estigma é sempre mais difícil do que construir uma imagem positiva. Mas todos os profissionais sérios concordam numa coisa: é preciso que as pessoas tenham mais exposição a informações corretas sobre coaching. Até para poder diferenciar o que é um trabalho altamente reconhecido pelos RHs das grandes companhias e o que é gente que apenas se apresenta como coach, sem ter condições de exercer esse trabalho – pois não existe ainda uma regulamentação que impeça qualquer um de se vender como tal.

“Entre os maus profissionais, há pessoas mal-intencionadas, que oferecem um serviço que elas sabem que não têm como proporcionar. Mas há outro grupo, talvez maior, de pessoas que, mesmo querendo fazer o certo, colocam o carro na frente dos bois e começam a atender como coach sem ter preparo para isso”, explica Gustavo Castro. “É gente que faz um cursinho online, de final de semana, e acha que já é coach.”

Uma formação sólida em coaching não é algo trivial. O aspirante a coach deve procurar instituições de ensino acreditadas por entidades como a International Coaching Federation (ICF), a mais reconhecida do mundo e que está presente no Brasil. É o caso do Appana, cujo curso de formação em coaching leva sete meses, e da Escola de Coaches, com seu curso de 18 meses. Conforme vai se especializando, o profissional passa a conquistar credenciais da ICF, que indicam o grau de maturidade na profissão – um bom argumento de venda do seu serviço.

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Fuja dos esotéricos. Busque pelos coaches reconhecidos por entidades sérias. (Fernando Molina/VOCÊ S/A)

O nível mais alto é o MCC (Master Certified Coach), e chegar lá demanda muito trabalho. Além de passar em um exame que avalia seus conhecimentos sobre a metodologia e sobre a ética da profissão, o coach precisa comprovar ter exercido 2.500 horas de atendimento. Se a gente considerar uma média de dez sessões de uma hora por cliente, ele precisa ter atendido 250 clientes.

E não para por aí. Para ser um MCC (como Marcia Reynolds), é preciso enviar gravações de atendimentos para a base da ICF nos EUA, que serão avaliadas por um membro certificador – eles têm quem fale português para isso. Esse avaliador vai conferir se o atendimento respeitou as competências do bom coaching: escuta qualificada do cliente; perguntas precisas, capazes de evocar conscientização; se o coach convida o cliente a refletir sobre como usará o novo aprendizado na prática.

Há, no Congresso Nacional, um debate sobre a necessidade de regulamentação da profissão, o que afastaria do mercado os aproveitadores esotéricos e os profissionais sem formação. A ICF, no entanto, acha que o melhor caminho é a autorregulamentação: “Um dos pilares do coaching é a responsabilização, que é o profissional entender que precisa assumir a responsabilidade por aquilo que faz”, pontua Marcus Baptista, vice-presidente da ICF. “Então, por uma questão de coerência, achamos que não faria sentido alguém de fora vir dizer como devem ser os regulamentos. Os mercados mais desenvolvidos de coaching no mundo são autorregulados.”

A questão da regulamentação é mais importante do que pode parecer. Porque há maus profissionais na medicina, na psicologia, na engenharia… Mas mesmo esses passaram por uma formação – ou poderiam ser processados por exercício ilegal da profissão.

No coaching, por enquanto, não existe essa obrigatoriedade. Não é crime, por exemplo, um nutricionista colocar no cartão de visitas que é “coach de wellness”, mesmo que não faça a mais vaga ideia das técnicas de coaching.

Por enquanto, cabe ao cliente ter o discernimento de que um profissional com mais formação, certificações e uma bagagem de anos de prática tende a ser mais capacitado para ajudá-lo a chegar ao que realmente importa – melhorar no trabalho, nos relacionamentos, na autoestima. Tudo, claro, passando pela indispensável revisão de seu mindset 😉

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