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Ex-CEO da Lacoste, Rachel Maia conta sua trajetória em novo livro

Conquistar um cargo de diretoria é algo distante para a maioria da população. Imagine, então, quando se é mulher, negra e periférica.

Por Monique Lima
Atualizado em 15 abr 2021, 16h41 - Publicado em 5 abr 2021, 08h00

Rachel Maia foi a primeira mulher negra a ocupar uma posição de CEO no Brasil. Em dezembro do ano passado, mais um marco: primeira mulher negra a ocupar uma cadeira em um conselho de administração em uma empresa brasileira. Esteve na lista da Forbes de executivas mais influentes do país e conheceu Barack Obama. Hoje, aos 50 anos, conta sua trajetória em Meu Caminho Até a Cadeira Número 1.

Caçula de sete irmãos, ela se formou em ciências contábeis e trabalhou durante sete anos na 7-Eleven, uma rede de lojas de conveniência dos Estados Unidos que operou no Brasil nos anos 1990. Para seu pai, um funcionário da companhia aérea Vasp, ter uma filha com um diploma já era a realização de um sonho. Rachel queria ir mais longe. E foi. Trabalhou como CEO de marcas de luxo como Pandora, Lacoste e Tiffany & Co. Hoje tem sua própria consultoria empresarial, a RM Consulting.

Ao contar sua história, a executiva converte os perrengues em momentos hilários, como as aventuras dos anos de faculdade e seu intercâmbio para o Canadá aos 28 anos. Neste trecho do livro, ela narra como embarcou para Vancouver com dinheiro contado e sabendo apenas o verbo to be. Um ano e meio depois, voltou com o inglês na ponta da língua e montou um curso para compartilhar o que havia conquistado.

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(Arte/VOCÊ S/A)

Leia um trecho do livro:

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Capítulo 1
A VONTADE DE EVOLUIR

Na 7-Eleven, atuei como controller. Ainda estava terminando o curso na FMU quando comecei nesse cargo. Formei-me e estava tranquila em meu emprego. Mas, ali, depois de um tempo, percebi que uma faculdade de peso era importante para meu currículo. Entendi que uma instituição de primeira linha e cursos complementares seriam essenciais para continuar crescendo profissionalmente. Acredito que essa seja até uma característica cruel do mercado da época – que tem resquícios na atualidade –, contudo era a regra do jogo. Se você não tem as ferramentas
necessárias, está automaticamente fora.

Trabalhando em uma rede de lojas de conveniência norte-americana, senti também o peso de não saber falar inglês. Meu conhecimento da língua se
limitava ao verbo to be, que tinha aprendido na escola. Ao tratar de números, até me virava com umas mímicas quando necessário, todavia aquilo foi
se tornando um obstáculo e uma frustração que me incomodavam muito. Além disso, sempre amei cantores de língua inglesa como Dionne Warwick, Phil Collins, Michael Jackson, Mariah Carey e Whitney Houston, e não entendia nada de suas canções (embora viajasse em sonhos apaixonados).

Foi quando decidi que moraria um tempo fora, justamente para aprender inglês. Mas, para isso, havia dois grandes obstáculos: o dinheiro e meu pai. (Só hoje entendo que meu pai não era bem uma barreira, suas objeções eram apenas zelo e amor.) Não guardava dinheiro. Além de pagar a faculdade, cada um tinha sua responsabilidade em casa e pagava uma conta, de água, de energia ou de telefone. Meu pai nos supria com a compra do mês, a moradia, os benefícios médicos e todos os cuidados que uma família demanda, porém tínhamos que fazer nossa parte para a manutenção do lar, um membro sempre ajudando o outro. Esse era o lema lá de casa, e que levo para minha vida e de todos à minha volta. O problema da falta de dinheiro, no entanto, foi resolvido quando fechei um ciclo de sete anos e meio na 7-Eleven. Peguei minha rescisão e, aos 28 anos, resolvi que
aquela seria minha chance. Seguiria investindo no crescimento de minha educação, naquilo que eu sabia que faria a roda girar.

Primeiro falei com minha mãe, que temia por nunca ter ficado tão distante de um de seus filhos, todavia achou minha decisão extremamente corajosa. Claro que se preocupou, mas me apoiou – o que foi fundamental para selar minha tomada de decisão. – Quelzinha [como minha mãe me chama até hoje], como é que você vai para lá sem saber falar nada de inglês? – Seus olhos não tinham menos dúvidas do que os meus. – Mas quer saber? Vá. Vá e que Deus te proteja. Isso que você está fazendo é de muita coragem. Então, eu entrego nas mãos de Deus.

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Minha mãe, daquele jeitinho simples, mas com muito significado, me dizia para ir, contudo me assegurava que eu tinha um porto seguro se qualquer coisa desse errado. Nem tudo, porém, seria tão fácil. Ainda precisava convencer meu pai. E foi difícil, ele ficou bravo. Não queria saber de filha morando fora.

– Neste mundão de meu Deus! Você vai se meter nesse país, o Canadá, que você nem conhece. – Embora ele já tivesse passado por lá a trabalho, não confiava em mandar sua filha caçula sozinha para a América do Norte. – Isso me preocupa muito. Eu não quero.

Naquele momento, tive que me manter firme. Disse a ele que, seguindo o exemplo que ele mesmo havia me transmitido, precisava me preparar para o futuro e que aquele seria um passo importante. Depois de um tempo e de muitas conversas, finalmente consegui o aval.

– Fico muito preocupado… Mas vai, minha filha. Seja honesta, seja decente e trabalhe pelo que quer.

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E lá fui eu para o Canadá, movida por minha ineficiência em falar inglês com o presidente de minha antiga empresa. Ao invés de me paralisar, minha frustração foi o que fez com que eu me movesse e virasse a página. Sabia que era melhor do que aquilo.

BEAUTIFUL
Tudo muito lindo, tudo muito corajoso. Mas, na prática, lá estava eu, viajando para um país estranho, sabendo apenas o verbo to be. Foi uma saia justa atrás da outra. A bem da verdade, cheguei ao Canadá sem nem saber como chegar ao Canadá… Tinha uma passagem que ia até Houston e, de lá, seguiria para Vancouver. De Vancouver, por fim, tomaria um voo local até Vancouver Island, que era onde ficava a Universidade de Victoria, na qual levaria um ano e meio para eu concluir minha total imersão na língua inglesa.

Sem saber falar nada, me confundi toda. E, para piorar, quando cheguei a Vancouver, minhas malas tinham ido parar no Texas por um erro da companhia aérea. Estava sem grana, porque tinha ido com o dinheiro contadinho. Por mês, precisava pagar 600 dólares canadenses para a família que ia me hospedar, minha host family, sem contar os estudos. Não sobrava, portanto, nenhuma quantia para comprar roupas. Tive que esperar uma semana até minha mala chegar usando a mesma roupa todos os dias – exceto pela calcinha extra e um camisetão para dormir que comprei.

Fazia um frio absurdo. A roupa que estava usando não era adequada para aquela temperatura, então foi um perrengue. Lembro-me de que, no pacote, estava incluso um passeio com a host family assim que eu chegasse, para que me apresentasse a cidade e os pontos históricos. A única palavra que eu dizia era beautiful. Eles me mostravam algum monumento, como os Totem Poles no Stanley Park, carrancas espalhadas pela
cidade como tradição local, e eu dizia: – Beautiful.

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Eles me levavam a um parque, como o Butchart Gardens, um dos lugares mais belos e floridos que meus olhos já viram, e eu: – Beautiful.

Eles me falavam do Granville Island, um mercado público, e das casinhas flutuantes, onde, em vez de carros na garagem, há lanchas, barcos e iates, habitados por abastados, e eu: — Beautiful.

Cheguei num sábado e na segunda-feira começariam as aulas. E lá estava eu, frequentando uma semana inteira de aula com a mesma roupa. O bom de lá é que as pessoas não se importam muito com você – e quase nada com o que você veste. E as primeiras semanas de curso… Meu Deus do
céu! Que tragédia. Eu até apertava os olhos para tentar entender o que aquele professor falava, e nada! “Brisava” em 90% da aula. Nos três meses iniciais, parecia que eu estava em outro planeta. Não entendia quase nada, contudo não deixava de ir nenhum dia para a universidade. Adorava o campus e aquela nova experiência. Além disso, nós, estudantes, podíamos usar todas as dependências do campus diariamente.

Mesmo assim, repeti o primeiro módulo, o que me causou uma dor horrorosa. Nunca havia reprovado em nada. Até hoje essa experiência é algo com que preciso lidar em meu coaching e em minha vida: quando alguma coisa não sai como espero, fico extremamente frustrada. Acho esse assunto muito importante, tanto que, mais adiante, voltarei a ele com mais detalhes.

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Todavia, é preciso prosseguir, e assim o fiz. As aulas iam das oito horas da manhã às três da tarde. Como contei no início deste capítulo, não tinha dinheiro para quase nada extra. No pacote com a família, o jantar estava incluso – aliás, eles adoravam batatas, o que quase sempre era servido. Éramos três pessoas e, por sua vez, três batatas na panela. Logo comparava com as refeições em minha casa, onde a comida era simples, mas em
porções generosas.

Falando sobre referências gastronômicas, adorava aquele frango frito do KFC, que via meus colegas comerem quando íamos passear na downtown area, nas tardes livres da escola. Comecei a fazer faxinas para juntar uma grana extra. Dava graças a Deus quando conseguia alguma por indicação de amigas. Eram 10, 15 dólares, com os quais eu poderia ir ao KFC comer frango aos domingos. Ah, e nem tinha dinheiro para o balde de frango, eram apenas para dois ou três pedaços. Ainda assim, amava aquela oportunidade que a vida estava me dando.

Desse dinheiro da faxina, também poupava para ir, uma vez por mês, ao clube ou à casa de striptease. Em Victoria, naquela época, não existia danceteria. Então frequentávamos ou o Monty’s ou algum clube. Fiquei amiga de todas as meninas do strip. Lá era muito divertido. Achava o máximo assisti-las dançando naqueles postinhos. Mas, para ter aquela diversão, havia me disciplinado: poupava 5 dólares, o suficiente para poder entrar e tomar um drink com meus amigos do curso. Passávamos boa parte da noite ali, apenas olhando e rindo dos clientes.

Quando voltei do Canadá, com o inglês na ponta da língua, não tive dúvidas: montei um curso desse idioma para jovens na paróquia Bom Pastor, que ficava perto de casa e a qual frequentava. Iniciei meus ensinamentos com a tradução de uma música que amo do Phil Collins, trilha sonora do filme Tarzan, “You’ll Be in My Heart”. Poder compartilhar aquilo que havia aprendido foi minha pequena grande conquista pós-Vancouver.

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(Arte/VOCÊ S/A)
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