Meu pior emprego
Eu precisava de um trabalho. Encontrei um trabalho, e descobri que estava numa prisão.
O expediente começava às 8h03. Oito e três mesmo, nem antes nem depois. Deu 8h04, dançou: você tinha que ir para a rua e ficar esperando até a hora do almoço para voltar. O minuto de atraso acabava contabilizado como meia falta. E o contracheque chegava R$ 12,30 mais magro – metade de um dia (era 1999, isso dá R$ 60 em dinheiro de hoje).
Meu computador só funcionava como máquina de escrever. Não tinha internet. E não porque era 1999. Mas porque os donos da empresa não gostavam. Achavam que “tirava o foco do trabalho”. A única máquina conectada ali não era de ninguém: ficava no meio do escritório. Mas era melhor não usar.
Para garantir que ninguém sairia do eixo, os donos mantinham câmeras de vigilância lá dentro. Ai de quem levantasse da mesa para conversar. Celular, então, dava justa causa: a ordem era deixar numa cesta na recepção quando você chegasse.
E ficavam monitorando mesmo: uma vez vi a porta da sala de um dos donos entreaberta e parecia a cabine de vigilância de um presídio, cheia de telas. Tinha o carcereiro também. O cargo dele era “gerente geral” ou algo assim, mas o cara não tinha nenhuma função realmente administrativa. Era só um capitão do mato, com a função de fazer com que todo mundo ficasse das 8h03 às 18h03 quieto e com a cara enfiada no monitor, sem cogitar nada que não fosse trabalho.
Nada mesmo, porque a liberdade de ir e vir também tinha sido revogada. Marcou médico no meio da tarde? Tomava uma falta. Precisava resolver alguma coisa no banco? Falta. A mãe morreu? Bom, aí não sei se abonavam a falta, mas talvez você só soubesse o que aconteceu com a sua mãe quando o relógio passasse das 18h03.
É que, além de ficar sem celular, a gente não podia receber chamadas no telefone da empresa. Ligava para lá, caía na menina da recepção. E ela fazia a triagem das chamadas que podiam chegar até os nossos ramais. Se fosse claramente de trabalho, ok. Se não, esquece. “Mas e se a minha mãe precisar que eu leve ela pro hospital?”, perguntei para o carcereiro no primeiro dia. “Veremos caso a caso”, ele disse.
O único jeito de falar comigo naquela época era ligar lá dizendo que era de uma das empresas com quem eles tinham algum negócio.
Opa. Não, não. Engano meu. Meu telefone não recebia chamadas. Só o do meu chefe, o Alê. Você tinha que ligar na recepção e pedir para falar com ele. Aí o Alê passaria a ligação para mim – sem triagem, porque o cara não era psicopata. Mas era melhor ser rápido no telefone. Se você ficasse muito tempo, podia levantar alguma suspeita para as câmeras.
O único lugar sem câmera era o banheiro. Só tenho certeza de que realmente não filmavam lá dentro porque um dia o carcereiro se viu obrigada a chamar todo mundo para um comunicado:
– Não quero que se repita o incidente do banheiro.
– Mas o que aconteceu?
Ele balbuciou:
– Cocô. Jogaram cocô no azulejo.
Alguém tinha tacado o próprio número 2 na parede de um dos banheiros do lugar. Nota: era um banheiro de outro andar, que o povo da minha área não podia usar – é, eles gostavam de proibir tudo o que fosse proibível. Mas isso não impediu que o meu pessoal entrasse para o rol de suspeitos – os homens e as mulheres, apesar de o banheiro ser masculino.
– Cocô. Jogaram cocô no azulejo. Vamos evitar, ok?
“Ok. Vou evitar ao máximo. Prometo que daqui para a frente vou tacar cocô na parede só de vez em quando. Beleza?”
Era o que eu devia ter respondido. Mas fiquei quieto. Ficamos todos quietos. Um pouco para segurar a risada, um pouco por medo de ser o próximo a perder a sanidade e virar o novo Pollock escatológico da firma. Fazia só nove meses que eu trabalhava lá e já estava ficando meio pancada. Uns caras ali tinham completado 10, 12 anos. Aí só tacando cocô mesmo.
Nosso jeito de manter a cabeça mais ou menos no lugar era juntar esforços para burlar as regras do presídio. A empresa era democrática – igualitariamente vil com cada um dos funcionários. A existência de um inimigo comum tão poderoso deixava a equipe coesa. E a gente acabou mais unido que o time de trenó da Jamaica. Tinha o lance do telefone, com o Alê recebendo as chamadas falsas e repassando para a gente. Mas o grande trabalho em equipe mesmo era na hora de usar o celular.
Ninguém estranhava se você não deixasse um aparelho na cesta recepção, já que os celulares ainda não eram onipresentes há 20 anos. Para poder entrar com um bem escondido no bolso, comprei o menor aparelho da época, o StarTac. Custou R$ 700 – R$ 3.300 de hoje, mais do que o meu salário. Mas valeu: passava tranquilo pela triagem do carcereiro. Quando eu precisava usar, começava o trabalho em equipe.
Tinha um almoxarifado num anexo do escritório. Sem porta, mas fora do campo de visão das câmeras. Eu ia para aquele cantinho com o StarTac. O Paulo, que sentava pertinho da porta, ficava de butuca. Se o carcereiro entrasse, ele falaria alto algum código, tipo “Acabou o tonner!”. Como proteção extra, o Alê ficava na entrada do almoxarifado fingindo que estava lendo algum relatório. Se o cara chegasse, teria que passar por ele. E eu teria uns segundos a mais para desligar.
Foi numa dessas chamadas clandestinas que consegui a minha alforria. Tinha mandado um currículo para outra empresa, e me ligaram. Atendi o celular escondido no almoxarifado e marquei a entrevista – para as 19h, porque não podia me dar ao luxo de perder os R$ 12,30 que a meia falta descontava. Deu certo.
Quando voltei lá para pegar as contas, o carcereiro estava me esperando na recepção, com os papéis para assinar. Achei que ele me receberia com sangue nos olhos. Mas não. Pela primeira vez eu vi o sujeito com um olhar pacífico. Ele parecia feliz. Talvez por estar se livrando de um funcionário metido a rebelde. Talvez porque se livrar daquela empresa fosse seu desejo mais secreto. Um desejo que ele só podia comunicar para alguém que já não estivesse mais lá dentro, e apenas com os olhos.