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Guia dos Dividendos

Alexandre Versignassi, autor da coluna, é jornalista, diretor de redação da Você S/A e autor do livro "Crash – Uma Breve História da Economia".
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Um imposto sobre os dividendos seria menos doloroso do que parece

No mundo real, mesmo uma taxa de 20% pode significar uma queda de menos de 5% para quem reinveste com disciplina. Entenda os motivos.

Por Alexandre Versignassi
Atualizado em 28 ago 2023, 22h48 - Publicado em 19 ago 2021, 13h44
Guilhotina
 (Tiago Araujo/VOCÊ S/A)
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Singapura, Hong Kong, Estônia, Letônia e Brasil. Essa é a lista de países que não cobram impostos sobre dividendos. Note que os dois primeiros são cidades-estado dedicadas ao mercado financeiro, e os dois últimos, anões cuja população somada equivale à de Belo Horizonte (3 milhões). Pois é. Entre os países relevantes, somos o único a isentar de taxas os lucros que as empresas distribuem entre seus acionistas.

EUA e China, que não costumam concordar em muitos assuntos, praticam o mesmo imposto nessa área: 20%. Idem para o Japão. Na Alemanha, são 26%. França, 34%. Chile, 35%. Canadá, 40%.   

Dito isso, não surpreende que um ponto central no plano de reforma tributária seja justamente acabar com a isenção sobre os ganhos com proventos de ações. “20 mil proprietários de capital receberam  R$ 400 bilhões em dividendos e tiveram isenção de  R$ 50 bilhões,  R$ 60 bilhões”, disse Paulo Guedes, que negocia a reforma com o Congresso.

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(Laís Zanocco/VOCÊ S/A)

Essa negociação consiste num debate entre o Executivo e o Legislativo, até que se chegue a um texto final para a reforma. Só então ocorre a votação pelos parlamentares, e a eventual mudança na lei (o que pode ficar para 2022).

Guedes apresentou um texto inicial para a reforma no final de junho. Previa-se ali uma alíquota de 20%, a exemplo dos EUA. Mas ainda era um texto cru. Porque o normal é, sim, cobrar impostos sobre dividendos. Mas não de todo mundo.

A imagem que Guedes evocou, a dos “proprietários de capital que ganham bilhões”, traz uma certa distorção. Ela implica que só meia dúzia de ultrarricos recebem dividendos. Não é por aí, ministro.

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Há 3,9 milhões de pessoas físicas na bolsa brasileira. Boa parte delas recebe alguma coisa a título de dividendos. E a participação de pessoas da classe média na bolsa segue em crescimento acelerado – só em 2020, o número de brasileiros que investem diretamente em ações cresceu 92%.

Nos EUA, ações são tão populares quanto a caderneta de poupança é por aqui. 180 milhões de americanos (55% da população) investem em papéis de empresas. E aí vem o pulo do gato: só o 1% mais rico paga os tais 20% de imposto sobre dividendos. 45% dos investidores americanos pagam menos (15%), e mais da metade fica isenta – veja mais aqui.

Não são só os EUA que praticam esse tipo de escalonamento, claro. No Canadá, o IR sobre dividendos envolve uma conta complexa. Lá também só os mais ricos pagam o teto (que, dependendo do Estado canadense onde vive o contribuinte, chega àqueles 40%). Para o andar de baixo, porém, não faltam benesses. Há até imposto negativo: se você ganha aquém de certo patamar, recebe um dinheiro extra sobre o que tiver entrado na forma de dividendos. Aí sim 🙂

No fim das contas, cobrar impostos sobre proventos é uma questão de justiça tributária. O salário médio mensal no Brasil é de  R$ 3 mil. Quem ganha isso gasta basicamente tudo o que entra com moradia e alimentação. E mesmo assim já sofre com um corredor polonês de impostos: a cada saco de feijão, 17% do valor na etiqueta de preço é imposto. A cada frango resfriado, 26%. Cerveja, então, melhor nem falar que já dá dor de cabeça antes do primeiro copo (são 42%).

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O ato de reaplicar os ganhos com dividendos dilui o efeitos dos impostos no longo prazo. (Laís Zanocco/VOCÊ S/A)

Para fazer justiça tributária, porém, é preciso ser… justo. Não faz sentido um pequeno investidor que recebe  R$ 1 mil por ano em dividendos pagar o mesmo imposto de um tubarão que levante R$ 1 milhão. E a proposta original de Guedes não diferenciava uma coisa da outra. Tratava rendas desiguais de forma injustamente igual.

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A boa notícia é que o texto final da reforma deve vir mais equilibrado lá na frente. A redação desse texto está a cargo de um deputado federal, Celso Sabino (PSD-PA). Cabe a ele trocar figurinhas com o Ministério da Economia para buscar um consenso.

“Estou conversando diariamente com Paulo Guedes. Esse assunto de dividendos já está pacificado, na isenção de R$ 20 mil”, disse Sabino numa entrevista à CNN no final de julho. Ou seja: a ideia é que quem tire até  R$ 20 mil por mês na forma de dividendos não pague impostos por isso. Legal. O próprio Guedes já disse que também não pretende taxar os proventos de fundos imobiliários, “para não destruir essa indústria”. Valeu, ministro. Mas o assunto não para por aí.

O fim do JCP

Outro ponto da reforma em debate é o fim dos juros sobre capital próprio (JCP).

JCP e dividendos são, no fundo, a mesma coisa: fatias dos lucros que as empresas distribuem a seus acionistas. A diferença está na tributação. Você já paga imposto sobre o que cai na sua conta na forma de JCP – coisa que hoje não acontece com os dividendos.

São 15% de taxa para o governo. E note bem: várias empresas pagam a maior parte de seus proventos na forma de JCP mesmo. Para dar uma noção melhor, levantamos os dividendos pagos nos últimos dez anos pela Vale e pelo Banco do Brasil. A mineradora pagou 62% de seus proventos na forma de JCP. O banco estatal, 83%. É que existe uma vantagem no JCP: o acionista paga imposto sobre esse valor. Mas a empresa não.

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Na real, o juro sobre capital próprio é um fóssil dos tempos de hiperinflação – e que só existe no Brasil. As origens dessa jabuticaba remontam a 1978, ano em que a inflação anual fechou em grossos 40%.

Quando a inflação está alta, os juros dos investimentos de renda fixa também ficam gordinhos. E o dinheiro do caixa das empresas fica aplicado em renda fixa, rendendo juros, de modo que a inflação não corroa o caixa da companhia.

Pois bem. Empresas pagam impostos sobre seus lucros. Mas faria sentido arcar com taxas sobre aquilo que ela ganhou na renda fixa, a título de correção monetária? O governo Geisel entendeu que não, não faria sentido. E isentou as companhias de pagar imposto sobre esses redimentos.

Tratava-se de um mecanismo racional até 1993 (ano em que a inflação brasileira chegaria à sua marca recorde, 2.477%). Dali em diante, com o IPCA domado para níveis terráqueos pelo Plano Real, não havia mais motivo para a manutenção da regra.

O governo FHC, porém, interpretou que as empresas mereceriam alguma compensação por agora ter de pagar imposto também sobre o que ganhassem com a renda fixa. Então rolou aquele movimento clássico: o de mudar tudo para que nada mude.

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Em 1995, as empresas passaram a ter o direito de contabilizar arbitrariamente uma parte de seus lucros como se fossem juros que ganharam na renda fixa, com a condição de que distribuíssem essa grana aos acionistas.

Nascia ali o “juro sobre capital próprio”, que nada mais é do que um dividendo pago sobre uma grana que a companhia não contabilizou como lucro – e que, portanto, fica isenta de imposto sobre lucro (hoje em 34%).

O que rola, como dissemos aqui, é outro imposto, aquele de 15%. E quem paga não é a empresa, mas o acionista (o dinheiro do JCP já cai na sua conta com os 15% descontados na fonte).

A empresa pode distribuir o quanto quiser na forma de dividendos. Pode ser 0%, caso todo lucro seja reinvestido (ainda que a tradição no Brasil seja pagar um mínimo de 25%). Pode ser 100%.

Com o JCP é diferente. É que essa grana entra no balanço como despesa. E não se paga imposto sobre despesa. De novo: a coisa se torna um lucro isento de impostos. Seria benesse demais liberar geral tal boiada contábil, certo? Certo. Então há um limite. Hoje, esse limite é de 4,6% do “patrimônio líquido”.

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Patrimônio líquido é o dinheiro que a empresa tem em caixa, seus imóveis, suas máquinas, suas ações guardadas em tesouraria. Ou seja: tudo o que pode ser convertido em dinheiro, caso seja necessário.

As grandes pagadoras de JCP, então, são as empresas mais parrudas, com muito capital para chamar de seu: Vale, Ambev, bancos, o setor de telecomunicações. O patrimônio líquido do Banco do Brasil, por exemplo, é de  R$ 30 bilhões. Se o BB tiver  R$ 1,5 bilhão a repassar para seus acionistas, pode distribuir tudo na forma de JCP. Sem galho.

Nisso, o BB não precisa contabilizar esse  R$ 1,5 bilhão como lucro de fato. Com o eventual fim do JCP, tudo muda de figura. O banco teria de deixar com o governo 34% desse dinheiro –  R$ 500 milhões, no caso.

A extinção desse benefício, então, vai doer mais nas empresas gigantes, as que têm mais bala para usar o benefício do JCP. E isso leva a outra questão.

Se você tem ações de uma companhia “intensiva em JCP” hoje, já paga imposto sobre proventos (os 15%). Então um aumento para 20% não iria doer tanto no bolso.

É possível que essas empresas recorram a artifícios contábeis para pagar menos imposto sobre seus lucros. Elas podem se endividar mais, por exemplo, e descontar do lucro tributável os abatimentos dessas dívidas (se o juro da dívida for baixo, vale a pena). O problema para os investidores: com menos lucros no balanço, menos dividendos elas tendem a distribuir.

Mas tem um detalhe. O mercado não é uma entidade estática. Todas as empresas de capital aberto competem pela atenção dos investidores. Quanto mais gente estiver interessada em ações de uma companhia, mais ela se valoriza (o “valor de mercado” de uma empresa é nada mais que o preço somado de todas as ações dela). Quanto mais valor ela tem, menos paga de juros na hora de fazer dívidas. E maior o tal patrimônio líquido, já que as ações que a empresa tem em tesouraria passam a valer mais dinheiro.

Se quiser manter seu valor de mercado em alta, com todas as vantagens que isso traz, uma empresa que costuma pagar bons dividendos não pode simplesmente fazer um corte abrupto e profundo na remuneração aos acionistas. Se fizer, verá seu valor de mercado desabar.

Mais: a reforma tributária acena com alguma diminuição nos impostos sobre o lucro, de modo que eles caiam gradualmente dos 34% de hoje para 25%. Isso já ajudaria a equilibrar as contas, mitigando parte das perdas com o fim do JCP.

Mas, claro: algum impacto a medida deixará. Os analistas do BTG Pactual estimam que, mesmo com a redução na tarifa sobre o lucro, a extinção do juro sobre capital próprio causará uma queda de 5% a 15% nos lucros das grandes.

Levando tudo em conta, então, qual será o impacto real para quem investe? Não dá para cravar. Para ter alguma noção, porém, fizemos uma simulação aqui, com base nos proventos pagos entre 2011 e 2020 pelo Banco do Brasil. E ela não é desanimadora. Olha só:

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Esta simulação envolve uma carteira inicial de mil ações do BB, na qual o investidor (você, digamos) usou tudo o que caiu na sua conta em dividendos e JCP para comprar mais ações – a forma mais saudável de investir em boas pagadoras de dividendos.

Como as ações do BB custavam  R$ 26,55 em meados de 2011, a jornada começa com um patrimônio inicial de  R$ 26.550. Bom, em 2021, depois de reinvestir todos os dividendos e JCPs, você teria 1.835 papéis – um patrimônio de  R$ 58.355 pela cotação do final de julho.

Nesse caso, o tributo que você pagou sobre os dividendos foi de 0%, e o imposto sobre o JCP, de 15%. Reajustando para os prováveis valores pós-reforma, de 20% em qualquer caso de distribuição de lucros, o patrimônio final cai para  R$ 56.173.

Bacana. Trata-se de uma queda de apenas 3,7% – pois já havia cobrança de 15% sobre 83% dos proventos.

Não é só isso. O ato de reinvestir os dividendos abriga um “fator multiplicador” impressionante, que, no longo prazo, amansa os efeitos de eventuais impostos maiores.

Mesmo um corte “cheio”, de 20%, no valor que você recebe a cada ano se transforma numa queda de apenas 10% no patrimônio final depois de uma década – caso você reinvista com disciplina (se não reinvestir, a perda final será de 20%, lógico – aí não tem milagre).

De qualquer forma: se houver isenção para quem recebe o equivalente a até  R$ 20 mil em dividendos por mês, você só terá de esquentar a cabeça se tiver mais ou menos  R$ 4 milhões em ações de boas pagadoras de proventos (com menos do que isso, não dá para tirar mais de  R$ 20 mil mensais, esquece).

Já se resolverem cobrar 20% de todos, será uma decepção, e um baita desalinhamento com a praxe global. Mas, como vimos aqui, também não seria o fim do mundo. Reinvestindo bonitinho, a magia multiplicadora dos dividendos resiste ao leão do IR. Cortesia da matemática.

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