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Trabalhar mais por menos: a dura realidade de entregadores dos aplicativos

A pandemia da covid-19 expõe a fragilidade da relação entre entregadores e plataformas de delivery Uber Eats, iFood, Rappi e Loggi

Por Fernanda Colavitti
Atualizado em 21 ago 2020, 16h20 - Publicado em 21 ago 2020, 14h59

Há quatro anos, quando começou a prestar serviços para aplicativos de delivery, o motofrentista Rosalvo Brito de Fonte, de 42 anos, afirma que ganhava, em média, 1.300 reais por semana, trabalhando diariamente das 7 às 18 horas, com uma pausa no horário do almoço. Porém, desde o início da pandemia da covid-19, o entregador paulista teve de aumentar sua jornada de trabalho — mas passou a ganhar menos. Segundo ele, o motivo foi o bloqueio, sem justificativa, por parte da Loggi, uma das empresas com a qual trabalhava. “Era a que proporcionava a maior renda. Hoje, trabalho até as 23 horas e, mesmo assim, não consigo fazer mais de 800 reais por semana”, diz.

Trabalhar mais e ganhar cada vez menos se tornou uma realidade para diversos entregadores de aplicativos durante o surto de coronavírus. Isso porque, embora as medidas de isolamento social tenham elevado a demanda por delivery — de acordo com declarações da Rappi, o número de pedidos aumentou 30% durante a quarentena —, isso não se traduziu em maior renda para os trabalhadores dessas plataformas.

Segundo uma pesquisa da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (Remir Trabalho) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), realizada com 298 entregadores das cidades de São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Curitiba, entre os dias 13 e 27 de abril, 59% deles tiveram queda nos ganhos durante a pandemia. O estudo ainda mostrou que 62% dos entregadores passaram a trabalhar mais de nove horas por dia — antes da crise sanitária esse percentual era de 57%.

A combinação dessas questões com o maior risco de contaminação pelo coronavírus — uma vez que as entregas foram classificadas como serviço essencial, mas há reclamações quanto à falta de kits de higiene, como máscaras e álcool em gel — expôs (mais uma vez) a fragilidade da relação entre os trabalhadores de plataformas digitais e as startups de delivery. Como resultado, diversas manifestações de ciclistas e motoqueiros começaram a acontecer país afora. Uma das maiores ocorreu no dia 1o de julho, quando os entregadores de aplicativos como ­iFood, Rappi, Uber Eats, Loggi e James Delivery marcaram uma paralisação nacional reivindicando aumento no pagamento das corridas e maior distribuição de equipamentos de proteção individual (EPIs). Houve protestos em cidades como São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Fortaleza, Salvador e Recife.

(Ilustração: Guilherme Henrique/VOCÊ S/A)

Mais corridas e mais acidentes

Entre as justificativas para a diminuição do valor pago aos motociclistas, mesmo fazendo mais entregas, está o aumento no número de pessoas desempregadas que recorreram às plataformas para sobreviver durante a crise. Dados consolidados pela consultoria Análise Econômica mostram que, do total de trabalhadores informais no Brasil, os que prestam serviço para aplicativos de entrega de refeições saltaram de 250.000 pessoas em 2019 para mais de 645.000 em junho de 2020. Um crescimento de, aproximadamente, 158%. De acordo com Franklin Lacerda, diretor da consultoria Análise Econômica, existe um conjunto de fatores que explicam por que essas plataformas se tornaram uma alternativa em meio ao desemprego. “Porém, o principal é que se trata de uma opção que conta com um investimento inicial baixo e é acessível para um grupo cada vez maior”, afirma Franklin.

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Embora não existam dados sobre a quantidade de entregadores contaminados e mortos pela covid-19, uma das consequências do aumento no volume de pedidos e de motofrentistas circulando é visível: mais acidentes. Segundo informações do governo de São Paulo, entre abril e maio de 2020, 39 motoboys morreram durante o trabalho. O número é quase o dobro dos registrados no mesmo período de 2019 e de 2018, quando 21 e 22 vieram a óbito, respectivamente. “O aumento dos acidentes é reflexo da falta de capacitação dos entregadores”, diz Edgar Francisco da Silva, presidente da Associação Brasileira dos Motofrentistas (AMABR). Ele salienta que, embora algumas cidades, como São Paulo, tenham legislações que regulamentam a profissão de motofrentista, com uma série de exigências (como a realização de cursos, autorizações municipais e uso de equipamentos de segurança), os aplicativos vêm cadastrando há algum tempo profissionais que não são regulamentados.

A falta de legislação, seja quanto aos profissionais, seja quanto à relação entre os entregadores e as startups de entrega, é um problema que volta e meia vem à tona desde o surgimento das empresas da chamada gig economy, ou economia dos bicos. As primeiras startups do tipo surgiram com a crise de 2008, nos Estados Unidos e entraram com mais força no mercado brasileiro em 2014. “Os perigos relacionados à pandemia, como o risco de contágio e a falta de assistência por parte das empresas, são apenas problemas mais visíveis de uma relação trabalhista que já nasceu desigual. A lógica dessas plataformas é diminuir o custo da operação e, para isso, elas pressionam a empresa parceira e o entregador, que tem menor poder de negociação”, afirma o economista Wilson Aparecido Costa de Amorim, professor na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (USP).

E a falta de clareza começa na forma como os entregadores são remunerados pelas plataformas. “Não consigo precisar sequer quanto recebo de cada aplicativo, porque não existe transparência sobre nossos direitos e deveres. Quando os contratos são atualizados, muitos assinam sem sequer ler as regras, porque precisam continuar recebendo pedidos”, explica Edgar, da AMABR.

(Arte/VOCÊ S/A)

O outro lado

Procurada pela reportagem de VOCÊ S/A, a Rappi respondeu, em nota, que passou a oferecer seguro de vida e a distribuir, semanalmente, máscaras e álcool em gel para os entregadores. A empresa colombiana também afirmou que disponibilizou um botão para que os trabalhadores notifiquem sintomas da covid-19 e, em caso de confirmação do diagnóstico, recebam orientações. Segundo a nota, a Rappi criou um fundo que apoiará financeiramente os entregadores que tiverem de parar de trabalhar por causa do coronavírus. A startup afirmou também que, entre fevereiro e junho de 2020, a empresa identificou um aumento de 238% no valor médio das gorjetas e que as quantias pagas são integralmente repassadas aos trabalhadores.

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Já o iFood, também em nota, afirmou que atendeu quase todas as reivindicações do movimento dos entregadores. Entre as ações, a startup citou que, desde o final de 2019, oferece aos trabalhadores o seguro de acidentes pessoais, cobrindo desde despesas médicas e odontológicas até uma garantia financeira para a família em caso de acidente. A companhia também disse que não houve alteração dos valores pagos pelas entregas durante a pandemia e que a startup se baseia em fatores como distância, cidade e modalidade da entrega para definir os preços. Hoje, segundo a empresa, toda rota tem uma taxa mínima de entrega de 5 ­reais, porém a média é de 8 ou 9 reais. No próprio aplicativo, ainda de acordo com o iFood, os entregadores podem conferir o valor de cada serviço antes de aceitar o chamado.

O iFood também explicou que destinou mais de 25 milhões de reais a iniciativas voltadas para os ciclistas e motofrentistas e que, desde o início da pandemia, distribuiu mais de 800.000 itens, como máscaras reutilizáveis e álcool em gel. A empresa reconheceu que poderia melhorar a distribuição dos kits de higiene e, por isso, desde o dia 1o de julho paga aos entregadores 30 reais para que adquiram materiais de proteção. O iFood ainda salientou que disponibilizou gratuitamente um plano de benefícios em serviços de saúde da empresa Avus, aumentou o valor das gorjetas, repassadas integralmente aos entregadores, e, além disso, desenvolveu a modalidade de entrega sem contato. A startup negou que tenha um sistema de pontuação dos entregadores, reafirmou que possui regras claras de desativação de cadastros e que os processos não são revisados de forma automática. A Loggi e o Uber Eats não quiseram falar com a reportagem.

Faltam leis, sobram embates

As manifestações dos entregadores acontecerem justamente durante a pandemia do coronavírus não é sem razão. Isso porque a crise da covid-19 evidenciou como nunca as desigualdades e a responsabilidade social das organizações e colocou a manutenção dos negócios em embate direto com a preocupação com as pessoas. “Certamente, ainda há muito o que se discutir sobre a atuação das empresas do setor de tecnologia no Brasil e no mundo. A pandemia da covid-19 apenas acelerou esse processo, por causa da adoção em massa dos aplicativos”, afirma Franklin, da Análise Econômica.

É inegável que as plataformas como Uber, Rappi e iFood já mudaram totalmente os hábitos de consumo de milhares de pessoas e vieram para ficar — principalmente por atacarem nichos carentes em eficiência. Para que o setor seja sustentável, trabalhadores e startups terão que se acertar. E talvez só a demanda social ajude a fazer isso, como explica Fábio Mariano Borges, professor na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). “Hoje em dia, a maior parte desses trabalhadores é entendida, juridicamente, como profissionais autônomos e está desassistida pela legislação”, explica. “A pressão da sociedade é fundamental para uma equiparação de direitos entre os entregadores e as empresas.”

(Ilustração: Guilherme Henrique/VOCÊ S/A)
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