Opinião: empresa não pode despedir por justa causa quem recusar a vacina
A avaliação poderá mudar caso uma nova lei ou decisão do governo limite ou exclua a circulação do trabalhador não vacinado em ambientes coletivos.
O Supremo Tribunal Federal decidiu recentemente* que o governo pode promover a vacinação obrigatória da população, mas não pode fazer a imunização à força. As medidas coercitivas devem ser indiretas, como multas e impedimento de frequentar determinados lugares.
Nessa esteira, pergunta-se o que as empresas podem e devem fazer para fazer cumprir a política pública de vacinação. Mais precisamente, se a empresa poderá, em último caso, despedir por justa causa o empregado que se recusar a ser vacinado. A demissão por justa causa seria a última medida depois de uma escalada de medidas educativas e disciplinares, naturalmente. A vacinação contra o Covid-19 seria um precedente para outras vacinas, ou seja, a empresa poderia exigir do empregado a vacinação contra sarampo ou H1N1 e despedir por justa causa aqueles que se recusassem? O problema ganha dimensão social ainda maior.
Em que pesem as respeitáveis opiniões em contrário, parece-me que, por enquanto, a resposta é “não”, as empresas não podem despedir por justa causa um empregado que se recuse a ser vacinado. Mas a resposta poderá mudar com nova legislação.
Dentre as opiniões favoráveis, destaca-se a do Ministério Público do Trabalho, o MPT. Tal opinião apoia-se no binômio da prevalência do interesse coletivo sobre o interesse individual e do dever das empresas de zelar pela saúde dos trabalhadores. O MPT também observa que a hipótese seria apenas se a recusa não fosse justificada por avaliação médica.
Mas também já vimos opiniões contrárias à do MPT, como comentários em abstrato de magistrados do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, TRT2, e do Tribunal Superior do Trabalho, TST. Embora os fundamentos apresentados pelo MPT estejam corretos, parece-me faltar o elemento essencial à justa causa: a falta grave do empregado.
A justa causa não é uma decisão discricionária, deve ser fundada na combinação de três elementos: (i) o descumprimento de um dever legal ou contratual do empregado, (ii) no enquadramento dessa conduta em uma das hipóteses do artigo 482 da CLT, (iii) na ponderação da gravidade ou reincidência contumaz dessa conduta.
De plano, constata-se que, se houver o descumprimento de um dever legal do empregado no âmbito do contrato de trabalho, não será difícil enquadrá-lo como insubordinação grave ou reiterada.
Então, o problema está na constatação do descumprimento de um dever legal. Ao menos nesse momento, não me parece haver dever legal do empregado perante o empregador de vacinar-se. Tampouco me parece que o empregador tenha recebido do a delegação pelo poder público para fiscalizar a vacinação, nem muito menos que tenha autoridade para determinar a vacinação no âmbito da sua atividade.
Trata-se de uma situação inédita, não prevista em lei, dentro de um sistema jurídico codificado, isto é, um sistema que tem a lei como fonte primordial dos direitos e deveres. A inexistência de norma específica permite a aplicação de normas semelhantes ou relacionadas, por analogia, isto é, comparação. Assim, temos (i) a Portaria Nº 597 do Ministério da Saúde, de 8 de abril de 2004, que institui os calendários nacionais de vacinação e (ii) a NR 32 que regulamenta a segurança e saúde no trabalho em serviços de saúde.
A Portaria Nº 597 prevê no artigo 5º, § 5º que os empregadores devem exigir a apresentação do comprovante de vacinação atualizado. Tal previsão sugere que a recusa ou falta de vacinação poderiam impedir a continuidade do contrato de trabalho da mesma forma que podem impedem a sua contratação. Porém, é discutível se a uma Portaria do Ministério da Saúde teria competência para determinar uma causa de impedimento de contratação e até mesmo de despedida por justa causa. Assim, a Portaria parece mais adequada como uma permissão aos empregadores de adotarem a vacinação como critério de seleção do que um obstáculo, um impedimento absoluto. Então, a Portaria é um argumento duvidoso em favor da permissão da despedida por justa causa.
Por outro lado, a NR 32 acena favoravelmente à tese de que a recusa à vacinação não pode ser tratada como justa causa para a despedida do empregado. A NR 32 prevê, dentre outras coisas, que (i) o empregador deve fornecer gratuitamente, programa de vacinação contra determinadas doenças e agentes biológicos, (ii) informar as vantagens, os efeitos colaterais e os riscos pela falta ou recusa de vacinação.
A analogia é imperfeita, mas possível. É imperfeita porque a NR 32 destina-se aos serviços de saúde e determina a obrigação dos empregadores de prover a imunização dos seus empregados para mitigar os riscos inerentes ao trabalho. Mas é possível porque a NR 32 contempla claramente a hipótese de recusa do empregado à imunização, inclusive para doenças contagiosas como a difteria. A norma em questão destina-se à proteção dos trabalhadores contra agentes contagiosos do seu ambiente profissional e ainda assim permite quem qualquer um deles decida não ser imunizado, colocando em risco a sua saúde, mas também a de seus colegas. O balanço entre esses dois dispositivos pende favoravelmente à tese de que a justa causa não seria permitida.
Assim sendo, por ora, considerando o atual conjunto de normas, a recusa do empregado em vacinar-se não parece ser falta grave passível de justa causa. Mas a avaliação poderá mudar se sobrevier lei nova ou ato governamental que limite ou exclua a circulação do trabalhador não vacinado em ambientes coletivos. Haveria uma situação jurídica nova que tornaria inviável a manutenção do contrato de trabalho e que permitiria enquadrar o ato do empregado como falta grave.
Para arrematar, registre-se que há outras situações que podem configurar de justa causa ligadas à pandemia. A vacinação não exclui as medidas profiláticas tradicionais do uso de máscaras, higienização e distanciamento social. Pois bem, estas são medidas ao alcance da autoridade do empregador por expressa determinação da Lei 13.979/2020, artigo 3º-B, e das leis estaduais e municipais que normatizam o funcionamento durante a pandemia. Portanto, se um empregado se recusar a usar máscara a empresa deverá reforçar as medidas educativas e aplicar disciplinares que poderão culminar na sua despedida por justa causa.
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A opinião do colunista não reflete necessariamente a da Você S/A ou do Grupo Abril