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O que acontece com funcionários públicos de estatais privatizadas?

Esta deverá ser a gestão com o maior número de desestatizações na história do país. Entenda o que acontece com os funcionários das estatais vendidas

Por Marina Kuzuyabu
Atualizado em 17 out 2024, 12h11 - Publicado em 4 mar 2020, 10h00
Casa da Moeda, no Rio de Janeiro: a estatal responsável pela emissão de cédulas entrou na lista de privatizações do atual governo |  (Germano Lüders/VOCÊ S/A)
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Depois dos governos de Fernando Henrique Cardoso (de 1995 a 2003), esta deverá ser a gestão com o maior número de desestatizações na história do país. Até dezembro do ano passado, a administração de Jair Bolsonaro contabilizava 35 ativos vendidos, concedidos, licenciados ou arrendados à iniciativa privada — o objetivo é chegar a 109. Nos anos em que FHC esteve à frente do país, o número superou 120, com vendas como a da Light e a da Vale.

Para os milhares de funcionários que prestam serviços públicos no Brasil, o momento é de turbulência. Dados do 11o Boletim de Empresas Estatais Federais, produzido pelo Ministério da Economia, apontam uma redução de 22 000 pessoas nos quadros das estatais entre dezembro de 2017 e junho de 2019.

Jaime Luiz Lemos de Albuquerque, de 56 anos, é um dos que perderam o posto no período. Por 35 anos, o administrador trabalhou na BR Distribuidora, subsidiária de postos de combustíveis da Petrobras. Em julho, o governo abriu mão do controle da companhia: vendeu 30% das ações a investidores da iniciativa privada e reduziu sua participação de 71% para 41%.

O que acontece com funcionários públicos de estatais privatizadas?
Jaime Luiz Lemos de Albuquerque, ex-funcionário da BR Distribuidora: após aderir ao PDV, ele virou voluntário numa escola do Rio | Foto: Andre Valentim ()

Coordenador de segurança empresarial, Jaime deixou a BR Distribuidora um pouco antes do ocorrido, por meio de um programa de demissão voluntária (PDV). “Queria trabalhar pelo menos até os 60 anos, mas, diante dos fatos, optei por sair e evitar o risco de uma demissão sem as mesmas vantagens”, afirma.

O profissional diz que tomou a decisão “no escuro”. Isso porque a empresa não divulgou quantas vagas seriam cortadas nem em quais áreas. “Desde o governo de Michel Temer, eu já lidava com a possibilidade de privatização e fui me preparando para esse momento. De qualquer forma, a experiência foi muito ruim, pois sou de uma geração que sempre vestiu a camisa da empresa”, diz Jaime, que hoje ocupa parte do dia ajudando voluntariamente uma escola de Botafogo, no Rio de Janeiro.

Quando Jaime aderiu ao PDV, circulavam boatos de que os cortes atingiriam 30% das pessoas. Informação que o atual presidente, Ra­fael Grisolia, confirmou a VOCÊ S/A. Segundo o executivo, o quadro deve passar de 5 000 para 3 500 trabalhadores, entre diretos e indiretos.

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Falta transparênciaO que acontece com funcionários públicos de estatais privatizadas?O que acontece com funcionários públicos de estatais privatizadas?

Sérgio Lazzarini, professor no Insper e autor de livros como Reinventando o Capitalismo de Estado, ressalta que é fundamental discutir abertamente o porquê de uma privatização, tanto com a sociedade quanto com os servidores diretamente afetados. “O governo atual não esclarece o motivo, apenas diz que precisa vender sob o argumento de que tudo o que é estatal é ruim. Falar isso é ideologia. É preciso analisar o mercado e tomar as decisões caso a caso”, diz.

Do ponto de vista econômico, a defesa do governo é que, uma vez privatizadas, as companhias experimentam um aumento de produtividade e rentabilidade que se reflete na qualidade e no preço dos serviços ofertados. Nesse sentido, o caso da telefonia é emblemático. “Uma linha telefônica custava 2 000 dólares em 1994. Hoje, qualquer pessoa pode ter uma — ou até mais de uma se quiser”, lembra Sérgio.

Chegar a esses resultados, contudo, implica uma série de ajustes de processos e custos, incluindo folha de pagamentos. “Acontecem demissões. Mas, como a meta muitas vezes é de expansão, há também contratações de novos profissionais”, diz o pesquisador.

A italiana Enel, que assumiu em fevereiro de 2017 as operações da estatal Celg-D, distribuidora de energia de Goiás, é um exemplo. Com mais de 50 000 funcionários espalhados pelo mundo, quando comprou a empresa pública, ela tinha 8 357 funcionários. De lá para cá, o número saltou para 10 225.

Os únicos empregados que saíram da empresa, aliás, foram os que aderiram aos planos de demissão e aposentadoria voluntárias. O aumento do quadro acontece por causa de investimentos em tecnologia e em grandes obras, como subestações. “A expectativa é criar, até 2022, 1 200 postos de trabalho”, diz Alain Rosolino, diretor de pessoas e organização da Enel Brasil.

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Mudança compulsória

Um aspecto importante dos processos de privatização é que nem todos os empregados têm estabilidade, mecanismo previsto por lei que garante autonomia ao servidor, evitando que fique exposto a trocas de governo. Só desfrutam desse direito funcionários estatutários ligados à administração direta, ou seja, concursados que prestem serviço em órgãos de Estado ­— como a Presidência da República, os ministérios e a Câmara dos Deputados — e que estejam ocupando o cargo há três anos ou mais.

Os contratados no regime CLT não possuem a mesma prerrogativa. E, quando migrados para o regime privado, podem ser demitidos sem justa causa. Como as organizações que podem ser alvo de desestatização pertencem à administração indireta — caso dos Correios, da Eletrobras e da Casa da Moeda —, elas têm liberdade para fazer novos arranjos de equipe.

Ainda assim, existem regras, como pontua a advogada trabalhista Mariana Machado Pedroso, sócia do Chenut Oliveira Santiago. Segundo ela, reduções salariais só são permitidas quando há diminuição da jornada de trabalho; promoções devem vir acompanhadas de contrapartida remuneratória; e bancos de horas e férias precisam ser respeitados.

Responsável pela construção e manutenção de ferrovias, o engenheiro Sérgio Nunes, de 36 anos, trabalha há seis na Valec. Em março de 2019, a empresa pública subconcedeu o trecho da Ferrovia Norte-Sul entre Porto Nacional (TO) e Estrela d’Oeste (SP) à Rumo, companhia ferroviária e de logística brasileira do Grupo Cosan. Essa medida levou ao fechamento de todos os escritórios locais nos estados de Tocantins, Goiás, Minas Gerais e São Paulo. A unidade da cidade mineira de Iturama, onde Sérgio trabalhava, estava entre elas.

Transferido em setembro de 2019 para Brasília (DF), a quase 700 quilômetros de distância, o engenheiro foi comunicado que teria de mudar de endereço um mês antes — e não teve a opção de escolha. “Meus pais dependem de mim e não estou mais perto deles. Também estou longe de minha filha e da casa que construí. Toda a minha vida estava lá”, afirma.

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De acordo com Sérgio, a Valec ajudou com as despesas da mudança e com a passagem para a capital federal. Mas as viagens para a cidade natal estão pesando no bolso. “Entendo o motivo da transferência e estou me adaptando. Hoje sobrevivo com 1 600 reais, descontadas todas as despesas. A situação está complicada, mas continuo a atuar com projetos e assumi interinamente uma gerência na área de estudos e pesquisas, o que me traz desafios interessantes.”

Apesar de tirar os empregados públicos da zona de conforto, nem todas as mudanças são negativas. Dependendo do grupo que assume a operação, ganham-se novas oportunidades, como participação nos lucros e chance de expatriação, no caso de uma multinacional. “As fronteiras da Celg-D [Companhia de Distribuição do Estado de Goiás], que se limitavam a Goiás, foram expandidas para os cinco continentes em que atuamos”, diz Alain, da Enel.

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Wagner Alves Vilela, ex-funcionário da estatal Celg-D, em Goiás: após a compra pela Enel, o engenheiro passou seis meses na matriz italiana | Foto: Francois Calil (VOCÊ S/A)

Wagner Alves Vilela, de 43 anos, é funcionário antigo da distribuidora de energia e atravessou o processo de privatização. Com 15 anos de experiência em diversas funções na companhia, ele diz ter ficado apreensivo no início. Mas logo aprovou a novidade. Engenheiro especialista, ele foi enviado com um grupo de 20 funcionários à matriz italiana, em Roma, para fazer um intercâmbio de seis meses.

A proposta da multinacional era proporcionar aos trabalhadores uma imersão em suas operações e uma integração mais rápida à cultura da Enel. Desde que se tornou empregado da iniciativa privada, Wagner já mudou duas vezes de departamento, migrando da área de manutenção de obras de baixa e média tensão para a área de contratação de serviços e, novamente, para manutenção de obras. E diz estar satisfeito. “O desafio é grande e o volume de trabalho também. Mas o ritmo agora é mais dinâmico. Antes, as coisas eram definidas pelo governo e havia muita morosidade.”

O profissional também aprovou o estilo de trabalho da Enel, “mais horizontal”, a possibilidade de integrar times formados por pessoas das mais diversas formações e os resultados dos investimentos feitos pela Enel para aprimorar a estrutura e os serviços. “A companhia está aplicando recursos para melhorar a qualidade dos serviços oferecidos aos clientes. Desde que entrei na empresa, eu sonhava com esse tipo de melhoria.”

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A comunicação interna também o surpreendeu positivamente, tanto pelo número elevado de e-mails quanto pelo conteúdo. “Eles compartilham desde questões do dia a dia até metas e resultados alcançados. Tenho até dificuldade de acompanhar, tamanho o volume de informações divulgadas”, afirma Wagner.

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Mais abertura

Daniele Salomão, vice-presidente de gente e gestão do grupo brasileiro Energisa, que comprou em 2018 duas distribuidoras da Eletrobras, a Eletroacre e a Ceron, diz que desde o início apostou em uma linha de comunicação direta e contínua com os servidores. “Algumas pessoas ficaram espantadas no começo, pois nunca tinham visto a diretora de RH da Eletrobras pessoalmente. Nós apresentamos a empresa, falamos das etapas de transição e esclarecemos os critérios que estávamos utilizando na avaliação dos trabalhadores”, lembra a executiva.

Para entender o perfil das lideranças e os valores preponderantes nas duas unidades, Daniele e uma equipe de consultores desembarcaram em Rio Branco (AC) e em Porto Velho (RO) antes da oficialização da compra. O processo de mapeamento aconteceu em três etapas e envolveu a realização de testes online, exame de personalidade e entrevista de 5 horas de duração com cerca de 70 líderes.

Após a avaliação, a Energisa concluiu que, em vez da meritocracia, reinava uma cultura paternalista, de proteção. “Não havia gestão de consequências e os profissionais se revezavam nos cargos de liderança para conseguir bônus salarial. Quando o bônus era incorporado ao rendimento fixo, uma nova pessoa entrava no lugar”, diz a RH. Para melhorar esse cenário, o foco foi deslocado para o mérito. O plano de remuneração variável passou a ser vinculado a metas. A empresa, que hoje emprega 15 000 pessoas, também mexeu na estrutura de cargos e enxugou a folha salarial, realizando planos de demissão e aposentadoria voluntárias.

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Sem revelar números de desligamentos e substituições, Daniele explica que os admitidos depois da privatização têm um pacote de benefícios diferente dos que já estavam lá, que não tiveram alteração nos rendimentos e benefícios. Com essas medidas, ela afirma que a companhia solucionou a assimetria dos salários públicos, em geral superiores aos da iniciativa privada. “Com um mix de pessoas antigas e novas, reduzimos o custo por indivíduo”, relata.

Marynelle Leite, advogada da área trabalhista do escritório Oliveira e Belém Advogados, pontua que ofertar benefícios diferentes aos admitidos depois da privatização é legal, desde que haja equivalência em termos de qualidade. “Direitos previstos na CLT, como vale-refeição e vale-transporte, não podem ser alterados. Já os benefícios definidos em acordos coletivos, como cesta básica e plano de saúde, são passíveis de renegociação”, diz Marynelle.

Mesmo previstas em lei, as mudanças nem sempre agradam. Na Energisa, houve quem não quisesse continuar. “Tanto em Rondônia quanto no Acre as pessoas crescem idealizando a carreira no serviço público. Algumas preferem ocupar cargos comissionados na prefeitura a trabalhar na iniciativa privada”, diz Daniele. Os que ficaram, porém, ganharam oportunidades novas. A companhia está investindo em cursos de formação técnica e de liderança. “O período não é fácil, pois há muito trabalho. Mas os funcionários estão vendo retorno. Iluminamos uma região do Acre recentemente e foi motivo de orgulho”, afirma.

Joelson Sampaio, coordenador do curso de economia da Fundação Getulio Vargas (FGV), relembra que durante o governo FHC houve muita polêmica com as privatizações, pois era algo novo. Com vários processos concluídos, inclusive nos governos Lula, Dilma e Temer, o professor acredita que o entendimento dos cidadãos tenha mudado, principalmente por causa da melhora de certos serviços. Ainda assim, é indiscutível que as desestatizações trazem desafios. Postos de trabalho redundantes, por exemplo, tendem a ser cortados, gerando demissões. Nesse processo, é fundamental haver diálogo, respeito e transparência com os profissionais que dedicaram a carreira à vida pública.

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