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Por que parece que as pessoas estão ficando cada vez mais irracionais?

Em seu novo livro, o psicólogo Steven Pinker mostra como os humanos, mesmo racionais por natureza, são suscetíveis a narrativas estúpidas.

Por Bruno Carbinatto
Atualizado em 27 Maio 2022, 19h23 - Publicado em 8 abr 2022, 06h23

A racionalidade humana foi posta em prática na pandemia. Em menos de um ano, conseguimos desenvolver vacinas eficazes contra a doença emergente, um tempo recorde. Um feito.

Ao mesmo tempo, teorias da conspiração malucas que pregavam que as vacinas carregavam microchips com a marca da besta, ou que a Covid-19 sequer existia e tudo não passava de um plano mundial para reduzir a população, se espalhavam rapidamente e conquistavam milhões e milhões de adeptos.

Como é possível que a mesma espécie que tem feitos geniais, como a invenção de vacinas, seja a mesma que cai em mentiras tão claramente irracionais? 

Em seu novo livro, o psicólogo e cientista cognitivo canadense Steven Pinker tenta responder essa e outras questões. De forma simples e recorrendo sempre a exemplos práticos, o autor destrincha o tema da racionalidade – explicando o que ela é, quais seus limites e como crenças e vieses cognitivos funcionam como obstáculos ao pensamento lógico.

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Em uma das partes do livro – a mais aguardada pelos leitores, segundo o próprio autor – Pinker tenta responder a dúvida: “Por que parece que as pessoas estão ficando cada vez mais irracionais?”. No trecho a seguir, ele explica como humanos, mesmo racionais por natureza, são suscetíveis a narrativas estúpidas.

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(Arte/VOCÊ S/A)

Capítulo 10.4 – A psicologia dos textos digitais apócrifos

Uma vez que tomemos consciência de que os humanos podem ter crenças que não tratam como verdadeiras em termos concretos, podemos começar a entender o paradoxo da racionalidade — como um animal racional consegue admitir tantos disparates. Não que os adeptos de teorias da conspiração, os compartilhadores de fake news e os consumidores de pseudociência sempre interpretem seus mitos como mitológicos. Às vezes, eles atravessam a fronteira com a realidade, gerando resultados trágicos, como o Pizzagate, os antivacinas e a seita do Portal do Paraíso, cujos 39 devotos cometeram suicídio em 1997 como preparação para que suas almas fossem levadas por uma espaçonave que acompanhava o cometa Hale-Bopp. Mas predisposições na natureza humana podem se associar a verdades mitológicas para fazer com que seja mais fácil engolir crenças estranhas. Vamos dar uma olhada em três gêneros.

A pseudociência, os assombros paranormais e a charlatanice médica acionam parte de nossas intuições cognitivas mais profundas. Somos dualistas intuitivos, com nossa percepção de que a mente pode existir separada do corpo. Isso nos ocorre naturalmente e não só porque não podemos ver as redes neurais subjacentes às crenças e aos desejos de nós mesmos e de outrem. Muitas das nossas experiências realmente sugerem que a mente não está atrelada ao corpo, entre elas: sonhos, transes, experiências fora do corpo e a morte. Não é um grande salto para as pessoas concluírem que mentes podem se comunicar com a realidade e umas com as outras sem precisar de um meio físico. E assim temos a telepatia, a clarividência, almas, espíritos, reencarnação e mensagens do além. 

Somos também essencialistas intuitivos, com nossa percepção de que seres vivos contêm substâncias invisíveis que lhes dão forma e poderes. Essas intuições inspiram as pessoas a sondar seres vivos em busca de suas sementes, drogas e venenos. Mas a mentalidade também faz com que elas acreditem na homeopatia, na fitoterapia, em purgantes e sangrias e rejeitem adulterantes estranhos, como as vacinas e os alimentos geneticamente modificados.

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E ainda somos teleólogos intuitivos. Exatamente como nossos planos e artefatos são projetados com uma finalidade, somos dados a pensar que o mesmo se aplica ao mundo vivo e não vivo. Desse modo, somos receptivos ao criacionismo, à astrologia, à sincronicidade e à crença mística de que tudo acontece por um motivo.

Supostamente, uma formação científica deveria sufocar essas intuições primitivas, mas por várias razões seu alcance é limitado. Uma é que não se renuncia facilmente a crenças que são sagradas para uma facção religiosa ou cultural, como o criacionismo, a alma e um propósito divino; e elas podem estar bem protegidas no interior da zona mitológica das pessoas. Outra é que, mesmo entre os muito instruídos, o entendimento científico é raso. Poucas pessoas sabem explicar por que o céu é azul, ou por que as estações do ano mudam, muito menos o que é a genética populacional ou a imunologia viral. Em vez disso, quem é instruído confia no estabelecimento científico sediado em universidades: seu consenso é suficientemente bom para elas.

Infelizmente para muitos, a fronteira entre o mundo científico e a periferia pseudocientífica é obscura. O mais próximo que as pessoas chegam da ciência na própria vida é de seu médico, e muitos médicos são mais curandeiros do que especialistas em ensaios clínicos randomizados. Na verdade, alguns dos médicos famosos que aparecem em programas de entrevistas no horário diurno são charlatães que promovem com exuberância bobagens da nova era. Documentários da televisão convencional e noticiários podem também esmaecer as linhas de contorno e dramatizar com credulidade alegações como a de astronautas de tempos antigos e videntes que combatem o crime.

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Por sinal, comunicadores de boa-fé que divulgam a ciência deveriam arcar com parte da culpa por não equiparem as pessoas com um entendimento profundo, que tornaria a pseudociência inacreditável em comparação. A ciência costuma ser apresentada em escolas e museus como só mais uma forma de magia oculta, com criaturas exóticas, produtos químicos coloridos e ilusões espantosas. Princípios fundamentais – como o de que o universo não tem objetivo algum relacionado a interesses humanos, que todas as interações físicas são regidas por algumas forças básicas, que corpos vivos são máquinas moleculares complexas e que a mente é a atividade de processamento de informações do cérebro – nunca são pronunciados, talvez porque pareçam insultar sensibilidades religiosas e morais. Não deveríamos nos surpreender com o fato de que a lição que as pessoas aprendem no ensino de ciências seja uma mixórdia sincrética, na qual a gravidade e o eletromagnetismo coexistem com fenômenos paranormais, carma e cura por cristais.

Para entender as imposturas virais, como as lendas urbanas, manchetes de tabloides e fake news, precisamos nos lembrar de que tudo isso proporciona um entretenimento fantástico. São exibidos temas de sexo, violência, vingança, perigo, fama, magia e tabu que sempre agradaram aos interessados nas artes, de alto ou baixo nível. Uma manchete falsa como “Agente do FBI suspeito no vazamento de e-mails de Hillary encontrado morto em aparente assassinato-suicídio” seria um tema excelente para o roteiro de filme de suspense. Uma recente análise quantitativa do conteúdo de fake news concluiu que “as mesmas características que tornam culturalmente atraentes as lendas urbanas, a ficção e, na realidade, qualquer narrativa também atuam na informação falsa online”.

Com frequência, a diversão transborda para gêneros da comédia, entre eles: o pastelão, a sátira e a farsa — “Funcionário de necrotério cremado por engano enquanto cochilava”; “Donald Trump acaba com tiroteios em escolas proibindo escolas”. A QAnon se encaixa em outro gênero de divertimento, o jogo multiplataforma de realidade alternativa. Os adeptos analisam dicas enigmáticas periodicamente deixadas por Q (o hipotético informante do governo), buscam contribuições coletivas de hipóteses e conquistam fama na internet ao compartilhar suas descobertas. Não é surpresa que as pessoas procurem entretenimento. O que nos espanta é que cada uma dessas obras alegue ser concreta.

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Contudo, nossa náusea diante da falta de distinção entre fato e ficção não é uma reação humana universal, especialmente quando se trata de zonas que são remotas em relação à experiência imediata, como lugares longínquos e a vida dos ricos e poderosos. Exatamente como os mitos religiosos e nacionais ficam entrincheirados na corrente dominante quando causam a impressão de fornecer um enaltecimento moral, as fake news podem viralizar quando seus disseminadores acreditam que um valor maior está em jogo, como o reforço da solidariedade do seu lado e o lembrete aos companheiros sobre a tendência à traição do outro lado. Às vezes, a moral nem mesmo chega a ser uma estratégia política coerente, e sim uma sensação de superioridade moral: a impressão de que classes sociais rivais e instituições poderosas, das quais os compartilhadores se sentem alienados, são decadentes e corruptas. 

Já as teorias da conspiração prosperam porque as pessoas sempre foram vulneráveis a conspiração de verdade. Todo cuidado é pouco para os povos que caçam e coletam alimentos. A forma mais letal de combate entre povos tribais não se dá em batalhas campais, mas na emboscada furtiva e no ataque antes de clarear o dia. O antropólogo Napoleon Chagnon relata que os ianomâmis da Amazônia têm a palavra nomohori, “ardil covarde”, para designar atos de traição, como convidar vizinhos para um banquete e depois massacrá-los em determinado momento. Tramas por coalizões inimigas são diferentes de outros perigos, como predadores e relâmpagos, porque elas recorrem à engenhosidade para penetrar nas defesas da tribo-alvo e encobrir os próprios rastros.

A única salvaguarda contra esse subterfúgio de capa e espada consiste em tentar adivinhar antecipadamente o pensamento do inimigo, o que pode levar a linhas de conjecturas complexas e a uma recusa em aceitar fatos óbvios como se apresentam. Em termos de detecção de sinais, o custo de deixar de perceber uma conspiração verdadeira é maior do que o de soar um alarme falso para uma suspeita de conspiração. Isso exige que ajustemos nosso viés mais para o “rápido no gatilho” do que para a extremidade “cautelosa” da escala, adaptando-nos a tentar saber sobre rumores de possíveis conspirações, mesmo com evidências frágeis. 

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(Arte/VOCÊ S/A)
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