Os impactos da Reforma Tributária para pessoas com deficiência: avanços e retrocessos
A implementação da Reforma Tributária vai mudar a vida - e as finanças - de pessoas com deficiência. Saiba como.

A publicação da Lei Complementar nº 214/2024, que regulamenta a Reforma Tributária, trouxe mudanças significativas na tributação sobre consumo e, consequentemente, impactos diretos para as pessoas com deficiência (PCDs). Se, por um lado, há avanços na redução de impostos sobre dispositivos de acessibilidade e medicamentos, por outro, novas restrições na isenção tributária para compra de veículos e a exclusão de autistas de grau leve levantam preocupações sobre possíveis retrocessos em direitos já assegurados.
A boa notícia é que a isenção de tributos para a compra de veículos por PCDs foi mantida. No entanto, a nova legislação impõe condições mais rígidas para seu acesso. Agora, a isenção de IBS e CBS se aplica apenas a veículos de até R$ 200 mil, com um limite de R$ 70 mil sobre o qual incide o benefício. Além disso, o direito à isenção só é garantido para PCDs que necessitem de adaptações estruturais no veículo, excluindo aqueles que utilizam câmbio automático sem outras modificações.
Essa mudança impõe uma distinção que pode ser considerada injusta e discriminatória. Veja o exemplo: uma pessoa que teve a perna esquerda amputada e dirige com um carro automático não terá direito ao benefício, enquanto alguém que teve a perna direita amputada (e precisará adaptar os pedais) poderá usufruí-lo. Essa exigência não leva em conta a real limitação funcional da pessoa e foi amplamente criticada por especialistas e entidades de defesa dos direitos PCDs.
Outro ponto controverso é a nova restrição para autistas. Apenas pessoas no grau moderado ou grave do Transtorno do Espectro Autista (TEA) terão direito à isenção tributária, excluindo aqueles diagnosticados com grau leve. Essa limitação colide com a Lei nº 12.764/2012, que reconhece qualquer indivíduo com TEA como pessoa com deficiência, independente da intensidade das suas necessidades de suporte. Além de contrariar princípios da Lei Brasileira de Inclusão (LBI) e da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, essa diferenciação tem grande potencial de ser judicializada e declarada inconstitucional.
Enquanto o cenário da isenção veicular impõe desafios, a reforma tributária trouxe avanços importantes quanto à tributação de produtos e dispositivos de acessibilidade. Conforme a nova lei:
- Itens como bengalas, aparelhos telefônicos próprios para deficientes auditivos, adaptação veicular e outros produtos listados no Anexo V da LC 214/2024 terão redução de 60% nas alíquotas de IBS e CBS;
- Produtos essenciais, como cadeiras de rodas (convencionais e motorizadas), barras de apoio e seus acessórios terão alíquota zero.
A expectativa é que essas medidas reduzam os preços finais e ampliem o acesso a dispositivos que fazem uma diferença significativa na autonomia e mobilidade de PCDs. Outra conquista relevante é a alíquota zero para todos esses produtos quando adquiridos por entidades de saúde imunes que atendam pelo SUS, o que fortalece a política pública de distribuição gratuita.
Para pessoas que necessitam de medicações, o impacto da reforma tributária se assemelha ao das tecnologias assistivas: há benefícios importantes, mas com restrições.
De acordo com o novo regime:
- Medicamentos essenciais, como antirretrovirais, imunossupressores e tratamentos oncológicos, terão alíquota zero;
- Medicamentos em geral e dispositivos médicos diversos contarão com redução de 60% das alíquotas;
- Comprados pelo SUS ou por instituições filantrópicas com CEBAS, esses produtos também serão isentos de tributação.
Se, por um lado, esses ajustes representam avanços na acessibilidade aos tratamentos, por outro, a isenção não abrange todos os medicamentos fundamentais para PCDs, deixando lacunas que podem afetar diretamente aqueles que necessitam de remédios de uso contínuo sem classificação como “essenciais” pela nova legislação.
Possíveis mudanças à vista: pressão popular e discussões no STF
As restrições impostas à isenção tributária de veículos têm gerado forte mobilização de ativistas, advogados e entidades representativas. Atualmente, o PLP nº 37/2025, em tramitação no Senado, busca modificar a legislação para garantir o benefício de forma mais ampla, eliminando a exigência de adaptações específicas e a distinção por grau de deficiência.
Paralelamente, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 7779) foi protocolada no STF para contestar a legalidade da exclusão de autistas em grau leve da isenção veicular. Juristas argumentam que essa diferenciação fere o princípio da isonomia e entra em choque com legislações que garantem direitos universais às pessoas com TEA.
O próprio governo federal já reconheceu publicamente que o texto da reforma “precisa ser aprimorado” para evitar equívocos interpretativos e injustiças, mas até agora essa declaração não teve impacto prático sobre a legislação vigente.
Avanços significativos, mas com pontos de alerta
A Reforma Tributária trouxe benefícios relevantes para as pessoas com deficiência, principalmente na área da acessibilidade, ao reduzir tributos sobre produtos essenciais. No entanto, as novas restrições para a compra de veículos e a exclusão de autistas de grau leve dos benefícios fiscais representam possíveis retrocessos, que precisam ser acompanhados de perto pela sociedade e pelos órgãos competentes.
Diante dessas mudanças, é essencial que pessoas com deficiência, familiares e entidades continuem mobilizados para garantir que políticas tributárias futuras sejam mais inclusivas e justas, corrigindo as distorções que atualmente comprometem o acesso equitativo a direitos fundamentais.
A luta pela acessibilidade deve ser permanente — e a fiscalização da aplicação dessas novas regras, constante.
*Veridiana Selmi, Gerente de Inteligência Tributária da Synchro