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A pandemia segue firme, mas não há mais estado de calamidade pública. E agora?

No papel, isso fez com que empresários, desde o início de 2021, não pudessem mais usufruir de um pacote de medidas para manutenção de empregos. Mas, em certos casos, elas podem ser negociáveis.

Por Luiz Guilherme Migliora, da Veirano Advogados
13 abr 2021, 16h40

É realmente interessante como a realidade jurídica pode se distanciar, perigosamente, da realidade pura e simples. Em 20 de março do ano passado, foi promulgado o Decreto Legislativo n° 6, que previa “a ocorrência do estado de calamidade pública, com efeitos até 31 de dezembro de 2020”. Na mesma data, foi publicada a Medida Provisória 927, que dispunha sobre “medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020”.

O Decreto e a MP proveram empregadores com diversos mecanismos para navegar os mares revoltos do início da pandemia e conseguir fôlego para atravessar o que, àquela época, se imaginava ser uma tormenta que nos atingiria por alguns meses. Com o reforço das medidas previstas na MP 936, com suspensões e reduções de jornada em contratos e com a efetiva participação do governo no pagamento da conta, parecia que essa travessia seria possível sem maiores percalços. Ledo engano. A tempestade era mais grave e longa do que se previu.

A pandemia se instalou em nossas vidas e entrou num ritmo frenético de aceleração no final do ano, levando-nos a mais de 300 mil mortes e médias diárias de óbitos absolutamente assustadoras. Vivemos uma briga sem sentido entre governantes sobre se podemos ou não trabalhar, como se essa fosse uma opção quando o vírus mata 3 a 4 mil pessoas por dia. Portanto, estamos não apenas em plena pandemia, mas no seu mais triste e grave momento. Nada de novo até aqui.

O que pode ser novo e assustador é o fato de que, nada obstante essa realidade que se escancara aos nossos olhos, sem cerimônia, legalmente falando não estamos mais em estado de calamidade pública porque o Decreto Legislativo que a estabeleceu determinou, sabe-se lá com base em quê, que em 31 de dezembro de 2020 ela terminaria. Faltou combinar com a realidade.

Nesse universo paralelo do direito, empresários se veem na posição esdrúxula de viver uma pandemia mais severa do que nunca, mas de não poderem usufruir das medidas que visavam à manutenção de empregos e enfrentamento da calamidade previstas na MP 927. Isso por que, não se esqueçam, a calamidade acabou em 31 de dezembro de 2020. E aquelas medidas tomadas para ajustar as atividades de empresas à pandemia e viabilizar sua continuidade com menos riscos? Como ficam sem a proteção da MP 927?

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Nada como um exemplo para entender o drama que vivem os empresários nesse particular. Empregados que trabalham embarcados, na indústria de petróleo, por força de lei específica (L. n° 5.811/72), podem trabalhar até 12 horas por dia e até 15 dias consecutivos. Tudo isso para atender às necessidades de uma atividade muito peculiar desenvolvida a muitos quilômetros de distância da costa.

Pois bem, com a pandemia, e durante o estado de calamidade, houve um movimento quase unânime das empresas para aumentar o número de dias em que cada trabalhador permanece embarcado, de 15 para 21 dias consecutivos. A ideia, com isso, era diminuir os riscos de movimentações que certamente proporcionam picos de contaminação, bem como os custos das quarentenas implementadas pré e pós-embarque, com vista a proteger os empregados e suas famílias. Isso foi feito, naturalmente, com base no artigo 2º da MP 927, que previa a possibilidade de acordo individual entre empregador e empregado para regular condições de trabalho, prevalecendo sobre outros “instrumentos, normativos, legais e negociais.”

Passado o prazo fixado para a calamidade, sem que se tenha combinado isso com a pandemia, temos hoje pandemia sem calamidade, o que equivale a ter condições especiais de trabalho sem norma legal que as autorize. No caso do aumento da duração do trabalho embarcado, de 15 para 21 dias consecutivos, as empresas, na grande maioria, mantiveram essa prática, por ser mais adequada à diminuição dos riscos decorrentes das trocas de turno na pandemia e por possibilitar a implementação de quarentenas pré e pós-embarque, mas se viram desprotegidas. Afinal, a Lei 5.811/72 não contempla essa hipótese e, historicamente, o Ministério Público do Trabalho (“MPT”) se opõe à extensão dos dias de embarque por ausência de previsão legal.

E então? Embora a legislação seja incapaz de acompanhar os acontecimentos, isso não é verdade quando se trata das instituições, especialmente aquelas comprometidas com o bem-estar dos trabalhadores e com a proteção de empregos em uma época tão desafiadora. Em atitude elogiável, o MPT tem se pronunciado a favor da possibilidade de as empresas negociarem e preverem essa extensão provisória dos períodos de embarque por meio de negociações com os sindicatos das categorias.

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Palmas para o MPT!

Claro que a solução é mais complexa do que aquela prevista na MP 927, que autorizava o acordo individual, mas ao menos aponta para uma solução. Dos sindicatos, espera-se que sejam sensíveis ao momento e colaborem com a manutenção de empregos e redução dos riscos para os trabalhadores. Claro que a eliminação, pela Reforma Trabalhista, de fontes de custeio para os sindicatos não ajudou em nada, representando desafio adicional nas negociações coletivas, mas isso é tópico para outro artigo e reflexão. Hoje, tem-se que trabalhar com as ferramentas disponíveis e a negociação coletiva é a melhor delas. Além desse exemplo, cabe falar rapidamente de outros acordos formalizados sob a égide da MP 927 e da calamidade, que precisam ser revistos e convalidados para evitar que sejam declarados inválidos, resultando em contingências trabalhistas.

Como fazer isso?

Primeiro, deve ser lembrado que a CLT já prevê, desde a reforma de 2017, mecanismos para validar contratos individuais – e esses mecanismos devem ser considerados neste momento. A figura do empregado hiperssuficiente, adotada pelo parágrafo único do art. 444, é relevante neste contexto. Esses empregados podem negociar livremente os temas listados no art. 611-A da CLT com seus empregadores, com força de negociação coletiva, prevalecendo sobre essas. Portanto, muito do que se implementou por meio da MP 927 pode ser ajustado com empregados hiperssuficientes, com segurança, após o término do período de calamidade.

Basta formalizar. Por outro lado, há situações de validade de acordos individuais previstas a CLT que se aplicam a todos os empregados, como, por exemplo, a possibilidade de contratação de banco de horas por meio de acordo individual com o empregado, desde que seu prazo para a quitação dos créditos e débitos seja de no máximo seis meses (art. 59, §5º da CLT). Assim, qualquer acordo de banco de horas estabelecido sob a égide da MP 927 pode ser regularizado por meio de acordo individual, observando o limite de prazo para a compensação de horas.

Por fim, deve ser lembrado que, nada obstante a calamidade prevista no Decreto Legislativo n° 6/2020 tenha expirado, ninguém em sã consciência acredita nisso. Portanto, para qualquer situação, uma negociação coletiva com o respectivo sindicato, considerando que vivemos uma calamidade de fato e assim declarando como motivação do acordo tenderá a ser prestigiada pelo Judiciário Trabalhista, sensível ao momento que vivemos, na solução de litígios futuros acerca da validade desses acordos.

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