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A origem do dinheiro: uma breve história de 4 mil anos

Couro, penas, peixe seco, sal grosso, pinga, tabaco. Tudo isso já foi moeda corrente. Mas a que deu certo mesmo foi outra: o dinheiro falso – uma criação da Grécia Antiga que você carrega na carteira até hoje.

Por Alexandre Versignassi
Atualizado em 21 Maio 2021, 12h55 - Publicado em 13 nov 2020, 13h35

Dinheiro é um mecanismo engenhoso: permite que a manicure compre seis pãezinhos sem ter de fazer as unhas do padeiro. E dá para resumir sua essência em uma palavra: fé. Basicamente a fé de que você vai conseguir trocar os papéis que estão na sua carteira ou os números que aparecem no site do seu banco por coisas para comer, vestir e morar. Mas essa é uma noção incompleta.

Dinheiro só é algo digno desse nome quando obedece a dois critérios:

  1. Ser uma coisa que todo mundo queira.
  2. Não ser algo muito abundante. Se não for escasso, não vale nada. E, se não vale nada, não é dinheiro.

Pense numa coisa que todo mundo quer o tempo todo. Água, por exemplo. Não dá para viver sem, então ela cumpre muito bem o critério 1. Só que ela não obedece ao item 2 – é só ir à beira do rio ou ao filtro da cozinha e pegar o quanto quiser. Muita abundância para que ela sirva como dinheiro.

Agora pense em comida. Aí é diferente. Por boa parte da história da humanidade, ela se encaixou perfeitamente nos dois critérios. Primeiro, todo mundo aprecia comida, claro. Segundo, nunca foi simples produzi-la a partir da terra. Caçar, então, pior ainda. Comida sempre foi algo relativamente raro.

Por isso mesmo, foi a primeira coisa a servir como dinheiro. E não só antes da invenção da moeda. Mas antes do surgimento do ser humano. Os chimpanzés estão aí para provar. Os machos dão carne para as fêmeas em troca de sexo. Não é exatamente um comércio, no estilo toma lá dá cá. Dividir o resultado de uma caçada com as macacas é um dos agrados que os machos fazem para tentar conquistá-las. Trata-se da comida, a moeda mais antiga do mundo, pagando pelo serviço mais antigo do mundo.

E quando o ser humano apareceu na Terra as coisas não mudaram muito. Isso que chamamos de humanidade começou há 2 milhões de anos. Foi quando um animal bípede, de cérebro grande, capaz de usar armas e dominar o fogo se multiplicou pelo mundo. Era o Homo erectus, um humano de feições amacacadas que deixaria dois descendentes antes de acabar extinto. Alguns dos erectus que saíram da África, sua terra natal, e foram viver no frio da Europa evoluíram até virar neandertais. Os que ficaram onde tinham nascido acabaram dando origem a outra espécie de grande macaco: nós, Homo sapiens.

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Foi há 200 mil anos. O fato de estarmos aqui até hoje não é grande coisa se comparado aos 2 milhões de anos que o erectus sobreviveu e mesmo aos 400 mil anos que o neandertal aguentou. Mas, ainda assim, não foi fácil chegar aqui. E isso só aconteceu por um motivo: aprendemos a sobreviver a uma das maiores crises econômicas de todos os tempos. E ela aconteceu há cerca de 12 mil anos, bem antes de o próprio dinheiro surgir. Pois é, não precisa ter dinheiro no meio para que aconteça uma crise econômica. Existem vários jeitos de definir uma, mas vamos focar na mais essencial: elas acontecem quando não conseguimos produzir tudo o que precisamos para manter nosso modo de vida.

Um pouco antes de essa crise começar, estávamos em pleno aquecimento global. E isso era ótimo. Tratava-se do fim da última Era Glacial, que tinha deixado meio mundo sob temperaturas abaixo de zero por 100 mil anos. Geleiras deram lugar a rios, paisagens brancas ficaram verdes, a quantidade de animais aumentou… Era um paraíso para grandes predadores. E esse era precisamente o nosso caso: armado até os dentes com lanças, atiradeiras, facas de marfim e um cérebro gigante, o Homo sapiens se firmava como o maior predador que já tinha existido. Havendo o que caçar, crescíamos e nos multiplicávamos à vontade. E agora havia bem mais caça do que na Era do Gelo.

Armado até os dentes com lanças, atiradeiras, facas de marfim e um cérebro gigante, o Homo sapiens se firmava como o maior predador que já tinha existido.

A abundância de vegetais também ajudava. Antes, catávamos as frutas e os grãos que apareciam de vez em quando e pronto. Agora, com solos mais férteis, o ser humano foi percebendo que podia ele mesmo plantar alguma coisa para ter o que comer nas épocas de caças magras. Não que fosse fácil. Continuávamos obrigados à mesma vida nômade dos tempos glaciais. Montávamos acampamento, ficávamos até que os animais começassem a rarear, e aí era ir embora e tentar a sorte em outro lugar. Claro que não era bom viver sempre sob a ameaça da escassez, por isso começamos a usar a cabeça para mudar as coisas, para fincar o pé em um lugar só.

O arroz com feijão de certos povos dessa época que viviam no Oriente Médio era carne de gazela. Mas eles não saíam matando qualquer uma que encontrassem: preocupavam-se em caçar só os machos da espécie. Fazia todo o sentido. Num bando de cem gazelas, bastava meia dúzia de machos para inseminar todas as fêmeas. Depois nascia uma nova geração inteira, e o estoque de comida continuava lá, bonitinho, mesmo depois de uma matança deslavada. Nobel de caça para eles.

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Só teve um problema: faltou levar em conta a teoria da evolução. Esses povos, que os cientistas de hoje batizaram de natufianos, preferiam os machos maiores, já que eles tinham mais carne. Burrada. Sobravam só os mirradinhos para as fêmeas – justamente os que elas rejeitariam em condições naturais (elas têm esse comportamento instintivo porque machos menores geram filhotes pequenos, mais vulneráveis). Mas tudo bem: as fêmeas acabavam transando com eles mesmo assim. Aí vinha a geração seguinte, os natufianos chegavam lá e caçavam os menos miudinhos. Ficavam só os nanicos. Em poucas gerações, o que sobrava eram minigazelas, que não davam conta de alimentar os bandos de humanos.

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Gazela em Ezus, Israel, pertinho da faixa de Gaza: cuidado com as mirradinhas 🙂 (Dorit Bar-Zakay/Getty Images)

Esse é só um exemplo de como nossa sofisticação trabalhou contra nós. O fato é que a presença humana levou espécies à extinção, ou perto disso, em várias partes do mundo. Mas o problema mesmo começou depois, quando, por volta de 10 mil a.C., a temperatura do planeta oscilou de novo. O clima ficou mais frio e seco por séculos. Plantas e animais morreram. Nem bem nossa espécie tinha aproveitado o fim da Era Glacial e já estava numa gelada mais uma vez.

A saída? Usar a cabeça de novo: que tal, em vez de deixar as gazelas se reproduzirem livremente, aprisionar algumas na aldeia e fazer com que produzissem seus filhotes ali? Também seria uma boa abater os machos menores primeiro e deixar os grandes viverem tempo o bastante para procriar à vontade. Assim, as gazelas ficariam maiores a cada geração, certo? E plantar sementes? Por que não tentar isso em grande escala para garantir tudo o que era preciso de uma vez?

Desnecessário dizer que ninguém saiu pensando coisas assim do dia para a noite. Mas ideias como essas foram borbulhando entre vários povos. Cada um desenvolveu sua agricultura e sua pecuária a seu tempo. Com o perrengue do resfriamento global, as técnicas criadas nos tempos de bonança foram se desenvolvendo. Com o turbo ligado. Plantar sementes e tentar criar animais não eram mais um luxo (se é que um dia foram). Agora, fazer isso ou não fazer equivalia a escolher entre viver ou morrer de fome.

Mas outra surpresa estava a caminho: essa época de vacas magras durou pouco, pelo menos geologicamente falando. Coisa de mil anos. Depois disso, o clima melhorou de novo, com terras mais férteis e montes de animais pastando por aí. E agora? Acabar com essa chatice de plantar capim-guiné, ver boi abanar rabo e voltar aos tempos mais aventurosos das caçadas? Nem a pau.

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Cultivar sementes e criar animais já valia bem mais a pena àquela altura. As técnicas de agricultura tinham evoluído nos tempos duros. E agora que o clima estava bom, em se plantando, tudo dava. A oportunidade e o talento se tornaram aliados: para aqueles sujeitos, cultivar uma horta era como imprimir comida direto da terra. Algo mágico. E as criações de animais, então? Depois de gerações de cruzamentos entre os bichos mais carnudos, elas forneciam uma quantidade de calorias que a caça jamais teve como prover – um boi ou um porco doméstico, por esse ponto de vista, são entidades tão artificiais quanto um computador.

Depois de milênios reproduzindo só as crias mais gordas, esses animais viraram espécies bem diferentes de seus ancestrais selvagens. Transformaram-se em usinas de carne. Se a mesma seleção artificial fosse feita com pessoas, os bebês chegariam a cem quilos aos dois anos de idade – é indigesto pensar nisso, mas foi graças a essas técnicas de criação que conseguimos comida para chegar até aqui.

Com os vegetais não foi diferente. Trigo, cevada, milho, arroz – os pilares alimentícios da nossa espécie – nunca existiram na natureza, pelo menos não da forma como você os conhece. Esses vegetais são tão domesticados quanto bois e porcos, fruto de seleção genética, de colocar só as plantas que melhor produziam grãos para se reproduzir, numa tentativa de obter mais comida em menos espaço. Tudo por tentativa e erro, terminando num grande acerto.

Claro que isso também não aconteceu de uma vez só. Cada população foi desenvolvendo sua agricultura e sua pecuária de um jeito particular. Devagar e sempre. Mas nos lugares mais férteis as coisas foram bem rápidas. A região em torno das margens dos rios Tigre e Eufrates (onde hoje ficam partes da Turquia, do Iraque e da Síria) era uma delas. Formava a parte principal do Crescente Fértil, local onde o cultivo de sementes e a criação de animais explodiu para valer entre 10 mil a.C. e 9 mil a.C.

Numa parte do Crescente, tinha alguém plantando uvas e azeitonas. Cem quilômetros rio abaixo, uma criação de porcos. Mais para cá, uma de ovelhas e cabras. Mais para lá, uma de bois. Ao norte, fazendeiros cruzavam duas espécies de trigo-selvagem, quase sem valor nutritivo, e obtinham trigo de pão, o cultivo mais importante da história. “Essa diversidade toda convivendo bem perto permitia acesso rápido a basicamente tudo o que eles precisavam: carboidrato, proteína, óleo, leite, tração animal, fibras para tecer roupas”, diz Jared Diamond, geógrafo e biólogo da Universidade da Califórnia.

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Você conhece o resto da história: sem ter de passar o dia caçando, a humanidade arrumou tempo livre para criar a escrita, a matemática, construir cidades… Mas essa é uma explicação simplista. O legado mais profundo da agricultura foi outro. Ela criou o dinheiro.

Dinheiro de argila

A imagem bonitinha de cada um produzindo em sua horta para a sociedade é um tanto ordinária. Não tem a ver com a realidade. O que a agricultura fez foi levar as desigualdades sociais a um patamar inédito. Numa tribo de caçadores, os homens mais fortes e os líderes mais astutos obtinham vantagens, mas um sujeito não tinha como estar tão acima do outro. Eles praticamente não estocavam comida – caçavam de dia, comiam à noite e acordavam para caçar de novo.

Até dava para acumular uma certa riqueza, na forma de armas melhores, prioridade na divisão de comida e de mulheres – isso acontece em todas as sociedades que mantiveram o modo de vida caçador-coletor até hoje, como tribos na Amazônia e na África; por isso os antropólogos deduzem que no passado não foi diferente. Esse grau de desigualdade poderia ser péssimo para quem acabasse mal armado, mal-amado e mal alimentado.

Só que, ainda assim, estavam todos mais ou menos no mesmo barco. Se a caça fosse boa, todo mundo comia. Se fosse ruim, todo mundo morria. Se você conseguisse mais carne que os outros, até podia usá-la como dinheiro para pagar algum favor, seguindo o exemplo dos chimpanzés. Mas no dia seguinte começaria do zero novamente. Sem que haja a possibilidade de acumular uma quantidade razoável de riqueza, a ideia de dinheiro não se aplica.

Mas as plantações mudaram essa história. Quem possuía terras férteis tinha o poder. Comia, bebia e vestia o que quisesse. E estava em condições de produzir muito mais do que precisava. Quem não era dono de seu pedaço de chão estava numa pior. Eram cada vez mais territórios ocupados pelas fazendas, e praticamente não havia mais o que caçar em certas regiões. O que fazer, então? Trocar trabalho por comida. Isso tinha dois lados.

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Primeiro, o ruim: um grande fazendeiro podia facilmente ter dúzias de escravos fermentando seu vinho, assando seu pão e construindo sua mansão de pedra em troca de migalhas – bastava manter um exército de seguranças bem alimentados para evitar um motim e estava tudo certo.

Agora, o lado bom: homens que antes viveriam correndo atrás de gazelas por aí estavam fermentando vinho, assando pães e construindo casas. Surgiam os primeiros trabalhos altamente especializados. Deu tão certo que nunca deixamos de viver assim, fosse sob o sistema de governo que fosse.

Era trabalho em troca de comida? Era. Mas tudo bem: a comida acabou desempenhando exatamente o mesmo papel que o dinheiro tem hoje. Se você fosse um padeiro ou um construtor de casas melhor que os outros, tendia a receber um naco maior do excedente de grãos e de carne do seu patrão, o latifundiário (figura que com o tempo ganharia o nome de “rei”). Desse jeito, você poderia acabar com mais alimentos do que poderia consumir. Teria seu excedente particular. Aí, se quisesse ter seu próprio padeiro e vestir casacos de pele, trocaria um pouco desse excedente por serviços e produtos assim. Quem fizesse casacos de pele melhores poderia vender tantas peças que teria seu excedente também. E a coisa não acabaria mais – como de fato não acabou.

Você pode imaginar que carregar sacos de comida por aí para trocar por outros produtos não era lá muito prático. Mas os babilônios, povo que viveu no Crescente Fértil há 4 mil anos, criaram uma forma de driblar isso. E, de quebra, inventaram duas coisas que você conhece melhor ainda: as cédulas e os bancos.

Bom, não eram exatamente cédulas nem exatamente bancos. Você depositava os sacos de grãos que recebia em silos de armazenamento mantidos pelo rei (os “bancos”) e ganhava em troca um tablete de argila em que vinha gravada a quantidade de mercadorias deixada lá. Esses tabletes podiam ser considerados “cédulas”. Cédulas porque as pessoas passaram a pagar por serviços e a comprar coisas com eles. Era dinheiro puro. Se tivesse montes desses tabletes no cofre de casa, você seria rico. Poderia comer, beber e vestir o que quisesse.

Imagem sem texto alternativo Tablete de argila sumério: um “vale grãos” que servia como moeda corrente. (PHAS/Getty Images)

Os mais abonados, inclusive, aprenderam a fazer com que tabletes gerassem mais tabletes sem ter de fazer força: emprestavam a juros. Se você precisasse de dez tabletes para comprar uma vaca, um desses banqueiros da Antiguidade poderia emprestar, mas exigindo que você pagasse 12 tabletes lá na frente, com uma parte dos lucros que conseguisse com o leite da nova Mimosa.

Era um esquema sofisticado. Até juros compostos eles já cobravam. Juro composto, vale lembrar, é aquilo de pagar uma taxa de 1% ao mês que, ao fim de um ano, não terá somado 12%, mas 12,7%. E que, ao fim de vinte anos, não vai dar 240% (o número de meses em duas décadas), mas 989% (!). Quase dez vezes o valor financiado.

Funciona assim: se você deve 100, o 1% incide só sobre os 100. No mês seguinte, será 1% sobre 101. E por aí vai. Parece pouco, mas, depois de um bom tempo, você está com uma dívida de lascar. Qualquer semelhança com o que acontece quando você financia um carro ou compra um apartamento não é mera coincidência. No fundo, nunca deixamos de ser babilônios.

Ouro, prata e tabaco

Os tabletes da Babilônia podiam até ser uma ideia genial. Mas não foi a que vingou. É que o lastro do dinheiro acabava estragando. Grãos, uma hora, apodrecem. Aí os tabletes de argila não valiam mais nada. Para que o dinheiro virasse dinheiro mesmo, era preciso que ele estivesse sob a forma de algo que durasse muito e que, de quebra, respeitasse aqueles dois pré-requisitos que a comida preenchia: ser algo relativamente raro e que todo mundo quer.

O sal cumpria esse papel. Seu valor intrínseco era o seguinte: num mundo sem geladeiras, o que fazer para preservar a carne? Salgá-la. Então era um produto com demanda praticamente tão garantida quanto a comida em si. E relativamente raro também, já que o processo para extraí-lo do mar ou de minas não é simples.

Além de não apodrecer, ele tinha uma bela vantagem sobre os grãos: era fácil de transportar. Desse modo, era tão natural que assumisse o papel de dinheiro que isso acabou mesmo acontecendo em várias culturas da Antiguidade. Deu tão certo que até hoje seu patrão paga você em sal, pelo menos etimologicamente falando. “Salário” era a remuneração que legionários romanos recebiam na forma de sal, e a palavra ficou.

Couro, peixe seco, penas de certas aves, conchas bonitas, pinga. Praticamente qualquer coisa que muita gente quisesse e não fosse fácil de obter já foi usada como dinheiro. Até depois da invenção do dinheiro. E até no tempo e no espaço em que o nome dele já era “dólar”.

No estado americano da Virgínia, por exemplo, o tabaco foi a moeda corrente mais usada desde a sua fundação como colônia, em 1607, até duzentos anos depois, quando os Estados Unidos já eram um país rico e estabelecido. Era com tabaco que as pessoas faziam compras, pagavam impostos… E compravam suas esposas: “Os galantes rapazes da Virgínia corriam para o porto quando um barco chegava de Londres, cada um carregando um rolo do melhor tabaco nos braços, e traziam de volta noivas jovens e virtuosas”, descreveu um cronista da época, o reverendo Parson Weems. “Além de galantes, os jovens deviam ser fortes, já que os rolos pesavam mais de cinquenta quilos”, comentou Robert Chalmers, um economista do século 19.

Mas as formas exóticas de dinheiro só vingaram em situações bem específicas (no caso da Virgínia, nem valia a pena trocar a mercadoria por moedas. Como tabaco era praticamente a única coisa que eles não importavam, ficava até mais fácil pagar direto com fumo mesmo). O que viraria o grande veículo universal de troca era outra coisa. Como ensina Eduardo Dusek naquela música politicamente incorreta dos anos 1980: “Troque seu cachorro por uma criança pobre/ Sem parente, sem carinho, sem rango, sem cobre”. Esses versos traçam involuntariamente a história do dinheiro. Depois do rango − a comida, primeiro meio universal de troca −, vem um metal. Foi basicamente o que aconteceu na vida real. E Eduardo Dusek acertou em outro ponto também: o primeiro metal usado em grande escala pela humanidade, aquele que acabaria fazendo o papel que as suas notas de R$ 50 fazem hoje, foi justamente o cobre.

Como ele derrete a uma temperatura relativamente baixa (mil graus) e não é tão raro assim, foi o primeiro metal a substituir pedras e marfim na confecção de armas, por volta de 5 mil a.C. Essas armas eram bem mais eficientes que as antigas, então quem tinha o cobre tinha o poder. Você não possuía seu pedaço de chão? Era só juntar uma gangue com espadas e lanças de cobre e roubar as terras de alguém. Precisava defender sua gleba? Arranjasse seu cobre.

Em tempos de paz, ele também era valioso, fosse na forma de caldeirões e panelas, fosse na de enfeites. Era o mais comum, até. A humanidade produziu mais colares e brincos do que armas.

Então você tinha algo difícil de produzir (vai minerar uma montanha de cobre para ver o que é bom…) e que todo mundo queria. Muito. Com uma vantagem sobre os sacos de grãos, o sal ou qualquer outra mercadoria: durava bem mais. Dava para acumular cobre à vontade, e ele continuaria ali, sem estragar. Se você fosse um soberano antigo e trocasse grãos de seu reino por cobre para fazer espadas e colares, não perdia nada. Num momento de escassez, podia derreter uma parte do metal, transformá-lo em barras e usá-lo para comprar mercadorias de outros reinos (os sujeitos que roubam fios de cobre de cabos elétricos para derretê-los e criar novos fios fazem mais ou menos isso). Desse jeito, não deu outra: a posse de cobre se tornou algo tão seguro quanto a posse de terras. Era algo que podia ser passado de mão em mão por gerações.

Aí deu a lógica. As barras de cobre viraram a primeira moeda universal e, quando começaram a misturar cobre com estanho para fazer um metal mais resistente, bem melhor para a forja de armas, esse derivado também virou moeda: o bronze.

Mas quando falamos em dinheiro o fator raridade é mais importante que o fator utilidade. O ouro não serve para nada além de deixar claro para todo mundo que você possui algo extremamente raro em casa, no pulso ou no pescoço. Ele é tão escasso que, se você reunisse todo o ouro minerado na história da humanidade e juntasse num bloco maciço, teria só um cubo com vinte metros de lado. Isso dá a área de um prédio de nove andares, ou 190 mil toneladas – é o que a Vale extrai de minério de ferro em oito horas.

Todo o ouro minerado ao longo da história caberia num prédio de nove andares. São 190 mil toneladas – é o que a Vale extrai de minério de ferro em oito horas.

Parte desse ouro se perdeu – em naufrágios, por exemplo – ou virou algo mais útil que joias, como partes de peças industriais ou componentes de circuitos. A estimativa é de que 122 mil toneladas do metal continuem circulando na forma de investimento ou de joias. Um Rolex da vida pode ter um pouco de ouro que um dia esteve numa moeda do Império Romano mais outro tanto que já foi o dente de ouro de um minerador do século 19 – que teve o cadáver violado no cemitério por ladrões…

Até as barras de ouro que o nosso Banco Central mantém como uma parte de suas reservas podem ter metal que já esteve na taça Jules Rimet. Mesmo com essa rotatividade toda, sempre foi pouco ouro para a economia do planeta viver em função dele, mas foi precisamente o que aconteceu. E que, de certa forma, continua acontecendo. Em 2010, uma empresa alemã instalou vending machines de barrinhas de ouro no Emirates Palace, um hotel de luxo de Abu Dhabi, e no aeroporto de Frankfurt. São como máquinas de refrigerante em que você pode comprar peças de dez pesos diferentes, entre um grama e uma onça (31,1 gramas). O ouro não só sempre foi dinheiro como ainda vale “mais do que dinheiro”, no sentido de que tende a valorizar acima de qualquer índice de inflação. Só nos dez anos entre 2009 e 2019, o preço do grama de ouro em dólar subiu 49%, contra 17% de inflação da moeda americana.

As amostras do quanto os metais foram importantes no papel de dinheiro continuam em todo canto. Várias moedas de hoje carregam nomes que têm a ver com eles. A libra esterlina, por exemplo. Libra (pound, no original) é meio quilo; e esterlina, o nome de uma liga de prata com 92,5% de pureza. Uma libra esterlina, então, é literalmente “meio quilo de prata da boa”.

Hoje, esse tanto de prata custa bem mais que uma libra esterlina – sai por mais ou menos R$ 150. Mas a referência ancestral continua ali. E põe ancestral nisso. Uma libra esterlina, no sentido de meio quilo de prata pura, era a multa que um cidadão de Eshunna, um reino da Mesopotâmia que existiu 4 mil anos atrás, tinha de pagar se fosse condenado por ter mordido o nariz de um semelhante. Dar um tapa na cara de alguém saía mais barato: um sexto disso – ou um shekel, na linguagem da época. Não por coincidência, a moeda de Israel hoje ainda se chama shekel (mais exatamente, shekel novo – cortaram três zeros em 1986).

Outra vantagem dos metais é que tudo passou a ter preços bem claros. Um documento egípcio de 1000 a.C. que registra a transação financeira para a compra de um boi ilustra isso bem. O animal valia 50 debens (4,5 quilos) de cobre. O comprador, porém, só tinha 5 debens. Então completou o resto em alimentos e vestimentas, como o pessoal fazia antes da ascensão dos metais, só que no documento esses produtos aparecem cotados em debens de cobre também: banha (30 debens), óleo (5 debens) e mais 10 debens em roupas fechavam os 45 que faltavam.

Cada coisa passou a ter um valor traduzido para uma unidade monetária. Então, do mesmo jeito que temos os reais e os dólares hoje, tínhamos os debens de cobre lá, certo? Não.

A maior revolução ainda não tinha acontecido: a criação do dinheiro de mentira. Exatamente o que está na sua carteira hoje.

A moedinha número 1

É difícil saber se você está com uma embalagem de 100 gramas ou de 125 gramas de presunto na mão. Se o objeto em questão é presunto, 25 gramas a mais ou a menos não fazem grande diferença. Mas com ouro, prata ou cobre é outra história. Então, qualquer transação financeira com esses metais tem de envolver uma balança no meio. E aí surgem dois problemas. Um: não é tão simples depender da presença de uma balança sempre que você for comprar alguma coisa. Dois: fica fácil de trapacear, seja na ponta do comerciante, que pode fraudar a balança para ela dizer que o metal do cliente é menos pesado do que é; seja na ponta do consumidor, que pode chegar com metais “sujos”, cheios de outros minérios que não valem nada incrustados lá no meio.

O que fazer, então? Dar um jeito de impedir os dois tipos de trapaça. E um reinado conseguiu fazer isso com uma cajadada só. Foi a Lídia, uma cidade-Estado que ficava na atual Turquia. Por volta de 600 a.C., o governo de lá resolveu acabar com a confusão fundindo metais preciosos na forma de pepitas com peso e grau de pureza predeterminados e imprimindo uma gravura em cada uma das peças, como um selo de autenticidade. Bom, pode ter sido outro o reino pioneiro, mas as moedas mais antigas que os arqueólogos encontraram até hoje são as de lá (quando você receber um troco grande em moedas, já sabe com quem reclamar). A princípio, foi ideia dos lidianos. Uma ideia que mudaria tudo.

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Moeda de electrum (uma liga de ouro e prata) cunhada na Lídia dos anos 600 a.C.: provavelmente, a primeira da história no formato que conhecemos hoje. (DEA/Getty Images)

Quando o dinheiro era comida, você podia plantá-lo ou criá-lo na forma de gado. Quando era sal, dava para filtrar o cloreto de sódio a partir da água do mar. Quando eram peças simples de ouro e prata, tinha como ir minerar para conseguir mais. Mas o ponto é que agora existia uma moeda corrente controlada pelo governo. Isso, de cara, aumenta a confiança das pessoas na hora de fazer negócios. Se você não precisa nem de uma balança, nem de nada, fica bem mais fácil comprar e vender. E, quanto mais negócios, mais rica a sua nação. Bom para todo mundo.

Só que o grande papel das moedas na economia foi outro, bem mais importante. Para entender como a moeda serviu de solução, temos de começar pelo problema que ela trouxe.

Imagine um governo que depende de ouro e prata para cunhar suas moedas. Imaginou? Então. Ele precisa minerar o ouro e a prata para fazer dinheiro. Mas, se a mina se esgota, vai um tempão até encontrar outra e extrair metal precioso de novo. Nisso, o suprimento de moedas no mercado diminui com o tempo.

Natural: isso acontecia porque nem todas as moedas ficavam para sempre no mesmo lugar. Se eles comprassem alguma coisa de fora, como o carregamento de vinho do navio de um comerciante estrangeiro, as moedas iam parar em outro país e ficavam por lá mesmo, circulando na forma de metal precioso (já que ouro é ouro em qualquer lugar).

Quando o suprimento de moedas diminui, a economia interna também míngua, já que a população, com menos dinheiro no bolso, compra menos coisas. Se as pessoas vão menos às compras, os produtores ficam com a colheita encalhada (e estragando), os tecelões fazem menos roupas… Em suma, o país fica mais pobre.

E tem mais: quem contraiu dívidas não consegue pagar nunca. Como há menos dinheiro em circulação, o devedor nunca consegue ganhar o que precisava para saldar uma dívida feita quando o dinheiro era abundante. Mas quem emprestou não quer nem saber. Vai atrás do que é dele até as últimas consequências. Daí para o caos é um pulo.

Para evitar uma desgraça, o governo vai lá, minera mais ouro e prata, cunha moedas novas e lança dinheiro virgem na economia. Não é difícil fazer isso. Basta sair comprando coisas − a produção agrícola encalhada, por exemplo. Pronto. O governo enche alguns bolsos, os favorecidos passam a gastar o dinheiro novo na praça e, quando você vai ver, a economia tomou fôlego. De uma hora para outra já começa a circular mais moeda do que antes. Isso reaquece a produção de riquezas. Os devedores conseguem juntar o dinheiro para limpar o nome na praça… Tudo volta ao normal.

Mas quem garante que sempre vai haver alguma mina de onde tirar mais ouro e prata? Ninguém. Mais hora menos hora, as minas se esgotavam. Era o fim. Ou você, governante, começava uma guerra com o país vizinho para saquear ouro dele e colocar suas contas em dia, ou esperava até ver seu povo regredir à barbárie. Mas o fato de as moedas serem cunhadas pelo governo abria perspectiva para uma terceira via. Uma sacada genial, na verdade, que os gregos de Atenas tiveram.

Vinte anos depois de os lidianos começarem a imprimir suas moedas, várias cidades-Estado do mundo grego já tinham copiado a ideia e criado seus próprios dinheiros. Só que na mais importante delas, Atenas, havia uma pedra no meio do caminho da economia. No século 6 a.C., ela vivia o auge de uma crise financeira.

O problema, a princípio, não era dinheiro, mas falta de organização. Desde sempre, uma parcela dos atenienses vivia de plantar trigo e outra de produzir azeite de oliva e vinho. O solo da região, porém, nunca tinha sido bom para produzir grãos. Sempre faltava. No começo, era uma situação confortável para quem plantava trigo. Se alguma coisa é escassa, fica mais cara. Lei da oferta e da procura. Simples. Mas o problema de um começou com a sorte do outro. Os produtores de azeite e trigo estabeleceram comércio com fazendeiros do Leste Europeu (onde hoje fica a Rússia). E lá o chão era outro: em se plantando grãos, tudo dava. Como os camaradas do Leste tinham trigo à vontade, os produtores de azeite e vinho de Atenas exportavam um pouco do óleo e do cobiçado entorpecente que produziam em troca de muitos grãos – e de um ourinho extra, claro. Nisso, quem vivia de grãos ficou sem ter para quem vender. E a sociedade acabou dividida: com os plantadores de oliveiras e videiras lá em cima, ricos, e os de grãos embaixo, vivendo no cheque especial.

No cheque especial mesmo. Fazendeiro que não vende a produção acaba sem capital para plantar de novo e tentar a sorte na colheita seguinte. Então faz o quê? Pede emprestado. Para quem? Para quem tem. Ou seja, para os agora ricos e nobres fazendeiros do outro lado. Mas aí começa aquela história que todo mundo já conhece: o de cima sobe, e o de baixo… afunda.

Os nobres botaram os juros lá em cima. Cruel, mas fazia sentido. Muitos fazendeiros de trigo estavam atrás de financiamento justamente para começar a produzir azeite e vinho e vender essas maravilhas do mundo antigo (e do moderno) no mercado internacional. Se os produtores tradicionais iam financiar seus futuros concorrentes, que cobrassem caro por isso.

Só que foi mais caro do que Atenas podia suportar. As dívidas dos agricultores pobres cresceram a ponto de ficar impagáveis. Quitar débitos dando uma parte das próprias terras virou algo comum. Os de cima se aproveitaram da situação. Quem devesse demais tinha de dar as mulheres e os filhos como escravos. E foi o que aconteceu. Mas aí já era demais. Embora a escravidão fosse parte da vida no mundo grego, o comum era manter servos estrangeiros, capturados em guerras. Para um ateniense que nasceu livre, nada poderia ser mais degradante do que virar escravo.

Era uma bomba-relógio. Os nobres que governavam Atenas começaram a temer uma revolução popular. A massa de endividados, com medo de ver seus filhos fazendo trabalhos forçados para os ricos e suas mulheres nas camas deles, poderia se levantar contra o Estado e colocar um tirano no trono. Para salvar o pescoço, apontaram um aristocrata conhecido pela inteligência fora do comum para assumir o poder e tentar resolver o problema: Sólon.

A primeira medida, em 594 a.C., foi proibir a escravidão como forma de pagamento de dívidas. Ele inclusive usou dinheiro público para comprar de volta os parentes dos devedores vendidos como escravos para outras cidades-Estado. Isso acalmou os ânimos, mas a essência do problema continuava na mesa: desigualdade acentuada e dívidas. Os agricultores pobres queriam o perdão total dos débitos e uma reforma agrária − um pedaço das terras produtoras de vinho e azeite para eles. Mas tirar dos mais ricos o que de fato era propriedade deles só passaria a revolta para o outro lado, e a estabilidade do governo ateniense continuaria em perigo. Sólon, então, resolveu tratar o perrengue do ponto de vista estritamente econômico.

Em tese, ele poderia usar dinheiro do Estado para comprar a produção dos mais pobres. E eles pagariam suas dívidas com esse dinheiro. Não seria a salvação completa da lavoura, mas faria as coisas voltarem aos eixos. O problema era que o Estado não tinha esse dinheiro todo. Nem o Estado, nem as minas de prata de onde Atenas tirava a matéria-prima para a confecção de suas moedas.

Mas Sólon foi por esse caminho mesmo assim. Como? Com algo que parece malandragem, mas que foi, isso sim, uma sacada tão importante para a economia quanto a teoria da gravidade foi para a física ou a da evolução para a biologia. Pode chamar de teoria da desvalorização. Se bem que nem teoria ela teve tempo de ser, porque foi posta em prática na hora.

A essência da ideia: as pessoas acreditavam nas moedas cunhadas pelo governo justamente porque o Estado garantia que elas eram de ouro ou de prata puros, certo? Sólon desprezou isso. Se o povo confiava nas moedas cunhadas, elas não precisariam ser tão puras assim. O que o Estado dissesse que era dinheiro seria aceito como tal. Mas como colocar mais dinheiro no mercado? Usando moedas falsas.

Mais ou menos falsas, para falar a verdade. Sólon passou a misturar metais mais baratos na matéria-prima das moedas para ter como produzir mais dinheiro. Uma moeda de prata, agora, tinha só 73% do minério. O resto era cobre. Se estava cunhado ali que a moeda pesava 1 óbolo (1,05 grama) de prata, ou 1 dracma (6 óbolos), tudo certo. Aquilo era uma moeda de 1 e pronto. A quantidade de prata que havia mesmo lá dentro não seria tão importante.

Se a população não engolisse o plano econômico de Sólon, seria o fim da moeda. E provavelmente de Atenas. Mas aconteceu o que nenhum analista econômico da época apostaria (caso existisse algum): deu certo. Sólon passou a usar os dracmas com cobre no meio das compras do governo, injetando dinheiro na economia inteira. Com mais dinheiro na praça, mais gente podia comprar coisas. Inclusive trigo. E os agricultores de grãos ganharam um motivo para produzir mais.

A moeda nova também serviu para financiar novas plantações de oliveiras e videiras e para fortalecer o comércio exterior. Quem antes estava sem nada saía da lama. E finalmente podia pagar suas dívidas. Atenas seguiria mais forte e rica do que antes, e o próprio Sólon deixaria pavimentado o caminho para outra medida sua: a criação da democracia.

Tudo graças ao dinheiro falso.

Essa história parece tão sem lógica que seria difícil de acreditar à primeira vista. Mas a maior prova de que aconteceu mesmo está na sua carteira – e no app do seu panco Não tem nenhuma moeda de prata ali. Nem de cobre, nem de nada que valha alguma coisa por si só. Só papel ou, mais normalmente, pixels em uma tela. E. mesmo assim, você trabalha muitas horas por dia para conseguir esses pixels. Cortesia dos gregos.


Este é um trecho do livro Crash – Uma Breve História da Economia, escrito pelo autor deste artigo.

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