Peregrinos corporativos: Caminho de Santiago é a viagem da moda entre os executivos
No ano passado, 3 000 brasileiros fizeram o Caminho de Santiago de Compostela. Entenda por que o roteiro voltou à moda entre os executivos e o que eles estão buscando nessa jornada
>>Esta matéria foi publicada originalmente na edição 204 da revista Você S/A, em junho de 2015 e pode conter informações desatualizadas
SÃO PAULO – No dia 25 de junho, depois de 35 dias de caminhada, a paulistana Beatriz Ribeiro, de 34 anos, ex-analista de estratégia de vendas da TAM, concluiu sua jornada a Santiago de Compostela, destino final da tradicional rota de peregrinação na Espanha, onde, a cada ano, 250 000 viajantes se dirigem em busca de autoconhecimento, iluminação espiritual ou apenas para agradecer por alguma graça recebida.
Depois de pedir demissão do trabalho, após quase seis anos de empresa, ela viu no Caminho um desafio para sua vida. “Queria sair da zona de conforto e ampliar meus horizontes”, diz. A rota escolhida pela administradora foi a que começa em Saint-Jean-Pied-de-Port, na França, a cerca de 800 quilômetros de Santiago, a mais popular entre as oito alternativas que levam ao destino. Durante o trajeto, Beatriz dormiu em quarto coletivo de albergues (onde o sono era compartilhado com até 100 pessoas), ganhou muitas bolhas nos pés e uma tendinite que a impedia de flexionar os joelhos e acabou lhe rendendo o apelido de Walking Dead, dado por outros peregrinos que ela conheceu no percurso. Ela ainda nem tinha acabado a jornada quando falou à VOCÊ S/A, mas dizia já ter aprendido algumas lições. “Estou mais forte e dou valor a coisas básicas, como uma cama limpa, um banho quente, um prato de comida”, afirma.
O famoso Caminho de Santiago de Compostela foi moda entre os executivos de 1990 a 1995, após o lançamento do livro O Diário de um Mago, de Paulo Coelho. Nos últimos anos, voltou a encantar profissionais que buscam autoconhecimento, coragem para fazer uma transição de carreira ou apenas aliviar-se da pressão por resultados. Só em 2015 mais de 3 000 brasileiros deverão embarcar para o ponto de partida de uma das rotas que levam à Catedral de Santiago.
Tamanha procura tornou o Brasil o país latino-americano que mais envia visitantes ao Caminho e o quarto país fora da Europa com mais peregrinos. Para Augusto Puliti, da consultoria de recursos humanos DMRH de São Paulo, a volta do interesse dos profissionais por esse destino é resultado do momento de incertezas da economia brasileira e da necessidade de se desconectar da pressão do trabalho. “O caminho de Santiago é famoso por forçar esse exercício de introspecção, de reencontrar seus valores”, diz. Sua hipótese é aprovada por quase unanimidade por quem já fez o trajeto. Um deles é o dentista Marcelo Furia, de 49 anos, de São Paulo, que fez a viagem no ano passado, depois de ser demitido da instituição em que trabalhou 18 anos.
Ele optou por chegar a Santiago pelo chamado caminho português, roteiro de 260 quilômetros, concluído em dez dias. “Fui para me desprender, olhar para dentro de mim”, afirma. O dentista retornou da Espanha em setembro e, de lá para cá, abriu a própria clínica de odontologia, mas diz que as transformações promovidas pela viagem continuam a acontecer. Em 2016, ele começará a faculdade de filosofia. “Essa experiência me ajudou a elaborar melhor as mudanças que eu estava vivendo e repensar minha vida profissional e familiar”, diz.
Mesmo quem não faz grandes mudanças na carreira após a viagem, como Arunas Stalba, gerente sênior da consultoria EY, de São Paulo, acredita que a rota traz lições importantes sobre simplicidade e disciplina. Ele fez o Caminho em setembro de 2012 após duas desilusões: uma no trabalho e outra na vida amorosa. “Pedi demissão do emprego anterior e fui sozinho”, afirma. “Você reaprende a estabelecer metas claras e a cumpri-las, e que só deve carregar com você aquilo de que realmente precisa.”
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Fazer o Caminho de Santiago pode render algo além do autoconhecimento ou equilíbrio pessoal. Para alguns peregrinos, a rota promove melhorias concretas na carreira ou até aprendizados práticos, aplicáveis ao dia a dia do trabalho. No ano passado, depois de 26 dias de caminhada, Cristiane Kinguti, de 26 anos, analista de sistemas da consultoria SH, chegou não só a seu destino como também ao início de um novo ciclo profissional. Ao retornar ao Brasil, ela pensou que seria chamada de louca pelos colegas do escritório – afinal, decidiu fazer o Caminho durante a Copa do Mundo. Mas não foi isso que aconteceu. “Meu chefe começou a me dar desafios maiores, porque nada seria mais difícil do que andar 800 quilômetros”, diz. Pouco depois, Cristiane recebeu um aumento e uma promoção. “Acho que pegou bem no currículo”.
Já o advogado Sergio Monteiro Cavalcanti, de 39 anos, de Recife, que retornou de Santiago em maio, adquiriu durante a jornada experiência em planejamento e execução, que agora pretende aplicar em sua empresa, a Ikewai Investimentos, especializada em desenho de negócios para empreendedores.
Para ele, o aprendizado gerado pela necessidade de prever cada dia de viagem calculando tempo de deslocamento e a quantidade exata de suprimentos – para carregar o mínimo de peso e poupar energia – tem muita semelhança com o planejamento de um negócio, que, quando bem-feito, permite reduzir gastos e evitar desperdício de recursos. “Também ganhei um jeito mais realista de olhar para metas e resultados”, diz Sergio.
Puro marketing?
Apesar de toda a mística que envolve o Caminho de Santiago, há quem não dê muito crédito à peregrinação e veja o trajeto como mais um destino turístico. É o caso de Claudio Caldeira, de 55 anos, gerente de vendas da empresa de sistemas de computação EMC, em São Paulo, que concluiu a peregrinação em maio. Praticante de trekking, ele viu no Caminho um desafio, mas aproveitou a viagem para checar se havia realmente algo mágico na rota, sobre a qual havia escutado muitas histórias. Não foi o que percebeu.
“A Comunidade Europeia vê o Caminho como um turismo barato – não é muito confortável, mas, para quem só pode gastar 30 euros por dia e mora perto, é uma opção”, afirma. Segundo ele, a Cruz de Ferro, um dos pontos mais importantes de reflexão do trajeto, onde os peregrinos devem depositar pedras e fazer seus pedidos, fica lotada de turistas fazendo selfie e piquenique. Empresas especializadas, que fornecem até carregadores de mochilas, desvirtuam o objetivo original da peregrinação – ser um retiro marcado por momentos de sacrifício e superação. “Para mim, se você quer se descobrir ou encontrar uma conexão divina, não precisa viajar centenas de quilômetros até a Europa”, diz Claudio.
“A única coisa que vai ter de diferente é que vai voltar uns 6 000 euros mais pobre”. Apesar disso, ele indica o Caminho para quem quer conhecer paisagens bonitas e gosta de caminhar com um objetivo – o que não deixa de ser um aprendizado para quem tem um plano profissional e sonha em chegar a algum lugar.