“Os vieses cognitivos criam mais problemas do que ajudam”, diz especialista em people analytics
Para Deli Matsuo, fundador da Appus, a análise de dados dos funcionários vai permitir com que as empresas tomem melhores decisões na gestão de pessoas
Ex-diretor de recursos humanos do Google para a América Latina, Deli Matsuo fundou a consultoria Appus, especializada em people analytics, há 3 anos em São Paulo. Com clientes de grande porte, como Itaú, Gerdau e Grupo Boticário, a Appus desenvolve soluções tecnológicas e ferramentas analíticas para ajudar as empresas a melhorar a gestão de pessoas. Em entrevista à Você S/A, Deli detalha como está o andamento da aplicação do people analytics no Brasil e mostra como tal tecnologia poderá afetar o planejamento de carreira e o mercado de trabalho.
Como essa ferramenta está sendo aplicada no Brasil?
Ainda está muito no começo no Brasil. O processo de people analytics é longitudinal, o que significa que você tem que coletar dados durante uma série temporal, para criar informação suficiente para fazer uma análise coletiva. Então é esforço de anos, não de um ano. Meus clientes estão apenas começando essa jornada na Appus, há um ou dois anos, e ao longo dos próximos anos eles ganharão informação e capacidade de decisão que talvez seus concorrentes não tenham.
Deixando os processos seletivos mais automatizados e com menos “feeling”, as empresas podem cometer alguma injustiça com os profissionais?
Podem, mas infelizmente o ser humano tem mais desvios do que ele admite. Então os vieses cognitivos que o humano carrega criam mais problemas do que ajudam. Tenho um exemplo que é real e está ao seu redor: se você fizer uma pesquisa, vai descobrir que pelo menos 60% das pessoas estão desengajadas com seu trabalho. Quantas pessoas você conhece no seu ambiente de trabalho que estão não só desengajadas, mas também infelizes? Então tem alguma coisa muito errada. A sociedade vive de um ambiente de trabalho organizado e estruturado, e com esse modelo de trabalho as pessoas estão adoecendo e estão infelizes.
Como fica a questão da diversidade dentro das empresas com um processo seletivo feito com ajuda do people analytics?
É uma questão de filosofia de gestão. Pensa o seguinte: você vai trabalhar numa grande consultoria de gestão. Chegando lá, você descobre que 90% da equipe é composta por homens caucasianos, ricos, que conseguiram frequentar as melhores escolas e universidades, e assim conseguiram um cargo em uma consultoria de grande porte. Então o algoritmo não vai continuar te recomendando esse mesmo tipo de profissional e sim mostrar que a empresa só contrata esses profissionais. Aí se a gestão decide ter mais diversidade, ela vai dar um incremento em contratação de mais profissionais mulheres, negros e de famílias menos abastadas. A decisão vai ser tomada a partir do momento em que você tem consciência do seu viés. Quando você não enxerga o viés, não consegue muda-lo. O ser humano não consegue se lembrar das últimas 50 contratações, mas apenas das últimas duas. Então a tecnologia faz justamente o contrário, revelando o seu viés e te permitindo mudar isso.
O funcionário poderá restringir de alguma maneira o acesso da empresa aos seus dados?
As empresas que tiverem os sistemas mais avançados e maduros de Analytics vão dar a opção de saída para o funcionário que não permitir que guardem suas informações. E eu acho que isso vai acontecer de forma natural. Mas não quer dizer que as empresas não vão poder ter os dados profissionais ali, porque o funcionário é contratado como profissional. Uma das coisas que as pessoas não entendem, por exemplo, é que os e-mails não são pessoais: eles são um canal de comunicação corporativa, então a empresa pode ter acesso aos e-mails corporativos. Mas, por exemplo, monitorar a pessoa de forma agressiva, por onde ela anda ou quanto tempo ela fica no café, talvez ainda não seja adequado.
Como ficam os funcionários psicologicamente diante dessa vigilância constante de suas informações?
Eu não sei ainda como as pessoas vão reagir porque essa análise ainda não começou efetivamente no Brasil. Mas no Google, por exemplo, isso acontece e as pessoas são felizes porque a empresa tem uma preocupação extrema com isso. Acreditamos que os dados coletados são tratados de maneira respeitosa, confidencial e ética. Se a empresa é conhecida por sua postura ética, acho que as pessoas vão reagir bem. O que eu acho que vai acontecer é que isso vai mudando de geração para geração. As pessoas mais maduras, de gerações anteriores, talvez sejam muito mais preocupadas com a maneira com que seus dados são coletados, e as gerações mais novas muito menos preocupadas. Mas imagina que uma empresa consiga monitorar sua vida pelo Facebook. Hoje tem algoritmos de imagem e de texto que conseguem traçar seu perfil comportamental: ver com quem frequência você bebe, ver seu estilo de vida, seu comportamento. E essas informações são abertas porque você publica no Instagram e no Facebook, então a empresa não está necessariamente invadindo sua privacidade: você que está tornando aquilo público. A nova geração tem muito mais conforto em dividir isso com o mundo do que a geração passada. O que a história nos mostra é que as pessoas estão cada vez mais abertas, e não cada vez mais fechadas.
Será que as pessoas vão trabalhar pensando em melhorar seus índices digitais e assim aumentar a competitividade do mercado?
É natural as pessoas se monitorarem como pessoas públicas e tomarem cuidado para não se expor da maneira equivocada, assim como qualquer celebridade faz: quando se torna alguém público, ela começa a tomar mais cuidado. A hora que as pessoas perceberem que os outros se importam com o que elas fazem, vão tomar mais cuidado. É igual o que acontece quando alguém jovem fica famoso: ele fica mais reservado, cuidadoso com o que publica e compra. Se você pensar numa organização, a pessoa que vai virando diretor ou vice-presidente se comporta de uma certa maneira porque passa a ser uma pessoa pública dentro da empresa. Se você o conhece de maneira íntima, vai dizer que é outra pessoa no trabalho, porque durante o dia a dia ele veste uma máscara profissional. Então é natural vestir uma máscara no meio digital.