Conheça o Pix e saiba como ele vai mudar a forma que você usa seu dinheiro

Sistema de pagamentos instantâneos do Banco Central promete um novo gás para a economia.

Texto: Luciana Lima | Ilustrações: Victor Vilela | Design: Juliana Krauss


Pode parecer assustador agora que todo mundo tem internet banking na palma da mão. Mas não faz tanto tempo, quem quisesse transferir dinheiro de uma conta para a outra tinha apenas duas opções: emitir um cheque ou realizar um DOC (Documento de Ordem de Crédito) fisicamente, em uma agência bancária mesmo. Levava dias até que a transferência acontecesse de fato.

E essa demora tinha uma razão muito simples: a compensação, isto é, a verificação das informações dos clientes e do saldo disponível em conta era um processo manual. Demandava o envio de uma montanha de papéis, que circulavam para lá e para cá entre bancos e as chamadas câmaras de compensação.

Tudo isso mudou em 2002, quando o Banco Central lançou o novo Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB). O projeto milionário, que levou dois anos para ser concluído, consistia em um sistema de comunicação e processamento de dados totalmente integrado entre os bancos e o BC. Era o fim, de vez, da papelada. Entre as novidades, também estava a Transferência Eletrônica Disponível (TED) que, nas palavras do próprio Banco Central, possibilitaria “enviar dinheiro entre contas de Parintins (AM) e Santana do Livramento (RS) em um único dia”.

A digitalização do SPB foi um capítulo decisivo para uma revolução no setor financeiro. Startups como Nubank, Stone, PagSeguro e Neon, que se tornaram gigantes e hoje são uma pedra no sapato dos grandes bancos, só conseguiram tal proeza por conta da criação desse sistema.

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A segunda revolução

Dezoito anos depois do SBP digital, outra grande transformação deve alterar completamente a forma como enviamos e recebemos dinheiro, ou compramos um sorvete na barraquinha da esquina. É o sistema de pagamentos instantâneos (Pix), previsto para chegar em novembro deste ano – todas as instituições bancárias com mais de 500 mil clientes serão obrigadas a oferecer o Pix.

Com ele, será possível enviar dinheiro para outra pessoa, ou para um estabelecimento, via celular, de forma tão simples quanto mandar um Whats. Para realizar transações não será necessário mais informar número de agência e conta. No Pix, esses dados serão substituídos por CPF, CNPJ ou celular, à escolha do usuário. Estabelecimentos comerciais poderão gerar QR Codes próprios, para receber pagamentos por aproximação. E pessoas físicas também: bastará sacar o celular e abrir o QR Code para transferências.

Uma das maiores mudanças será a rapidez. Para concluir uma transferência bancária bastarão apenas 10 segundos – hoje pode levar horas. As movimentações vão acontecer 24 horas por dia, sete dias por semana. TED e DOC têm restrições de horário e só acontecem em dias úteis.

Outro ponto importante é o custo. O Pix será gratuito para pessoas físicas, incluindo transferências entre diferentes instituições bancárias. De acordo com a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), hoje é preciso desembolsar, no mínimo, R$ 10 em taxas de TED e DOC – fora os casos de clientes agraciados com pacotes de isenção de tarifas.

Para fazer uma transferência, você não precisará mais informar o número da conta. Bastará o celular ou o CPF.

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Por ser mais barato e mais rápido, é consenso, inclusive entre os bancos, que a chegada do Pix será a morte do DOC e do TED. Mas outra característica dele, sua interoperabilidade, ou seja, sua capacidade de transferir recursos entre diversos tipos de contas, inclusive as jurídicas, trará impactos maiores.

Pagamentos via boleto e cartão de débito também devem virar objeto de museu. “Como será aceito por todos, o Pix tem potencial de se tornar uma língua franca, e se consolidar como única forma de pagamento”, afirma Carlos Netto, CEO da Matera, empresa de softwares para fintechs.

Taxa zero

Quem ditará o quão rápido isso vai acontecer serão os usuários e os donos de estabelecimentos. Porém, alguns fatores podem servir como um empurrão a mais. O primeiro é a inclusão digital dos brasileiros. De acordo com uma pesquisa da Fundação Getulio Vargas, existem cerca de 230 milhões de smartphones no país. E o Brasil tem 211 milhões de habitantes. Ou seja, há mais de um aparelho por cidadão.

Os pagamentos com cédulas de papel ainda seguem na liderança. Segundo um estudo realizado pelo Banco Central em 2018, que ouviu 2 mil pessoas entre consumidores e donos de estabelecimentos, elas ainda eram o meio mais comum. Mas o cartão de débito vem ganhando terreno. Dados da Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs), divulgados em agosto, indicam que o volume de pagamentos com cartão de débito teve um crescimento de 12,5% no primeiro trimestre de 2020, totalizando R$ 170 bilhões.

Só tem um detalhe: a cada vez que você paga no cartão, é cobrada uma taxa, a MDR (sigla em inglês para Merchant Discount Rate). Hoje, essa tarifa é, em média, de 2,62% para compras no crédito e 1,62% para o débito, de acordo com a consultoria Roland Berger. Ou seja: ao vender no débito um produto de R$ 100, o comerciante recebe, de fato, R$ 98,32 – e olha que esse desconto já foi muito maior; em 2014, as taxas eram de 3,59% e 2,48% para crédito e débito, respectivamente.

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Uma das justificativas para a existência dessa cobrança é que, no modelo de pagamentos atual, existem vários intermediários: os bancos, que emitem os cartões; as donas das bandeiras (Visa, Mastercard, Elo) e as “adquirentes”, que são as proprietárias das maquininhas (como Cielo, Rede e Stone).

Mas o Pix acontecerá sem a necessidade de nenhum desses agentes. O dinheiro sairá de uma conta para a outra e pronto. Para as empresas, o custo será de R$ 0,01 a cada dez transações. Elas também terão o dinheiro disponível mais rápido do que com o cartão, que demora um dia útil. “A cadeia de valor que hoje envolve várias partes remuneradas será praticamente zerada. Não precisa ponderar muito para concluir que a maioria dos estabelecimentos irá incentivar o uso do Pix no débito”, diz João Bragança, gerente especialista em meios de pagamentos da Roland Berger.

Os números comprovam essa expectativa. Pelas regras do Banco Central, apenas 34 instituições seriam obrigadas, de fato, a adotar o serviço – são aquelas com mais de 500 mil clientes. Mesmo assim, 980 empresas pediram para entrar na dança já na primeira fase de implementação do Pix. Na lista, há de varejistas, como Renner e Magazine Luiza, até postos de gasolina. Todo mundo já aposta que o Pix veio para ficar. “O sistema que temos hoje é complexo e caro. A história recente mostra o que acontece com modelos assim: mais cedo ou mais tarde, eles serão impactados por forças disruptivas”, afirma Edson Luiz dos Santos, autor do livro Do Escambo à Inclusão Financeira: a Evolução dos Meios de Pagamento.

Ascensão e queda da maquininha

Fato é que, desde 2010, a vida se tornou mais difícil para as gigantes que controlavam o setor de pagamentos. Na época, o Banco Central decretou o fim da exclusividade entre bandeiras e adquirentes – cartões Visa, por exemplo, só funcionavam com máquinas da antiga Visanet (atual Cielo). Dali em diante, o Brasil vivenciou uma explosão. Foram surgindo fintechs com maquininhas para chamar de suas.

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A PagSeguro, por exemplo, chacoalhou o mercado em 2015, com a Moderninha, uma maquineta sem cobrança de aluguel ou taxa de adesão. Desde então, a empresa teve um crescimento meteórico. Em 2019, a credenciadora do Grupo UOL lucrou R$ 1,367 bilhão, salto de 50% em relação a 2018. Outras cem empresas também entraram no jogo, inaugurando uma batalha de preços que ganhou até nome: guerra das maquininhas.

Foi essa concorrência que diminuiu as taxas do débito e do crédito. Outro efeito foi tirar a liderança de empresas como Cielo (controlada por Banco do Brasil e Bradesco) e Rede (do Itaú). Em 2014, segundo a Roland Berger, as duas dominavam 89% do mercado. No ano passado, esse número caiu para 57%. “Com a chegada do Pix e a substituição dele no débito, a receita será ainda mais pressionada – e as maquininhas por si só perderão valor. As empresas terão de adotar outras estratégias para rentabilizar”, diz João Bragança.

O Pix não muda a vida dos cartões de crédito. Eles vão seguir exigindo a intermediação de maquininhas. Mesmo assim, as receitas com aluguel, venda e taxas sobre transações de maquininhas podem cair de 18% a 63%, de acordo com a Roland Berger, a depender da velocidade com que o Pix se popularizar. No pior cenário, perdem-se R$ 13 bilhões. A Cielo, porém, vê a previsão como alarmista: “Se olharmos para outros mercados que já implantaram sistemas de pagamentos instantâneos, como Índia e Reino Unido, o débito não acabou. No longo prazo, houve uma acomodação de todos os métodos”, defende Francisco Santos, diretor da Cielo Fintech, divisão da empresa dedicada a pagamentos digitais.

Porém, ele assume que a gigante teve de se mexer frente à competição. Um exemplo foi o lançamento de outros produtos, como conta corrente digital, links de pagamento online e até um sistema de big data que oferece serviço de inteligência de mercado para as empresas clientes. Outra novidade é a parceria com o Facebook para o lançamento do WhatsappPay, sistema de envio de dinheiro através do aplicativo de Mark Zuckerberg. Uma semana após o anúncio da chegada da opção ao Brasil, entretanto, o Banco Central barrou o serviço e, desde então, aguardamos cenas dos próximos capítulos.

De acordo com o estudo da Roland Berger, a Cielo seria a mais impactada hoje porque 85% da receita da empresa advém do aluguel e venda de maquininhas, e da cobrança de taxas em cima de transações. Em contrapartida, em companhias como Stone e PagSeguro, essa proporção cai para 47% e 50%, respectivamente. A razão para essa discrepância é uma só: por atuarem com clientes menores, em meio à guerra de preços, essas companhias nunca puderam se dar ao luxo de cobrar taxas elevadas.

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As maquininhas são praticamente gratuitas, e a maior parte das receitas vem do serviço de antecipação de recebíveis. Funciona assim: sua padaria vendeu R$ 10 mil no crédito hoje, mas essa grana só vai cair na sua conta dali a um mês, depois de passar pelo labirinto burocrático das bandeiras e dos bancos. A empresa dona da maquininha, então, oferece para você um empréstimo de R$ 10 mil a ser creditado na hora, em troca de um juro baixinho – eis a “antecipação do recebível”.

Essa modalidade de crédito relâmpago ajuda pequenos negócios a ter capital de giro, e marca uma transformação: a das adquirentes em pequenas instituições financeiras. “Para continuar rentáveis, elas terão de lançar novos produtos financeiros e, no limite, evoluir para um banco”, afirma João Bragança, da Roland Berger.

Um em cada três brasileiros não tem conta bancária. O Pix tem tudo para acabar com isso.

Um exemplo dessa nova era foi a compra da Linx, empresa de gestão de softwares, pela Stone, em agosto, por R$ 6 bilhões. A base comercial da Linx é concentrada em pagamentos e internet banking. Fundindo as duas áreas, a Stone poderá se tornar um banco digital completo, em vez de só uma empresa de maquininhas.

A SumUp, fintech alemã de meios de pagamentos que desembarcou no Brasil em 2013, também é outra que deixou a guerra de tarifas para trás. A empresa, que em 2018 faturou R$ 250 milhões, solicitou ao Banco Central uma licença para operar alguns serviços bancários, como empréstimos, conta corrente e cartão de crédito, em novembro de 2019. A aprovação saiu em março deste ano. “Começamos com uma maquininha de cartão, mas logo percebemos que poderíamos ir além disso”, afirma Fabiano Camperlingo, CEO da SumUp. Segundo ele, seu principal concorrente, atualmente, é o dinheiro físico. “Muitas transações ainda são realizadas em espécie. A chegada do Pix pode incluir essas pessoas dentro do sistema financeiro”, diz.

Mais gente para a festa

A bancarização é um dos efeitos da chegada do Pix realmente. Na Índia, onde desde 2016 existe um sistema de pagamento instantâneo semelhante ao Pix, o número de cidadãos com acesso a uma conta bancária saltou de 35%, em 2011, para 80%, em 2017. Por aqui, mesmo com a proliferação de fintechs, ainda sobram oportunidades. Um a cada três brasileiros não tem conta bancária. Utiliza apenas dinheiro físico, segundo o instituto de pesquisas Locomotiva.

Mesmo invisível, esse grupo movimenta mais de R$ 800 bilhões por ano – 4,7 vezes o volume do cartão de débito.
Até agora, um dos argumentos para excluir pessoas de baixa renda do sistema financeiro era o chamado “custo servir”. Ou seja, a despesa com administração de uma conta corrente não seria rentável, em comparação à receita que esse público gera. Com a chegada do Pix, porém, será possível diminuir essa conta e viabilizar clientes até então abandonados.

Isso já está no radar dos grandes bancos. Até porque eles terão perdas expressivas em outras frentes. Um relatório do Morgan Stanley estima que os bancos brasileiros tenham faturado R$ 2,2 bilhões em transferências e cerca de R$ 5 bilhões em emissão de boletos no ano passado. O fato é que, com mais concorrência, os grandes bancos pensarão duas vezes antes de aumentar tarifas para compensar perdas, como era comum até outro dia. É um novo capítulo na história da economia, que começa a ser escrito neste momento.

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