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Em três anos, mercado de cannabis pode movimentar R$ 4,6 bilhões no Brasil

Desde dezembro do ano passado, a venda de remédios à base de maconha foi regulamentada no Brasil. Essa novidade cria um promissor mercado ligado à erva

Por Diego Braga Norte
Atualizado em 23 mar 2020, 14h00 - Publicado em 23 mar 2020, 14h00

Aos 9 anos, a administradora Cristina Taddeo, hoje com 45, foi diagnosticada com uma doença nefrológica (que afeta os rins). Sua vida mudou completamente e ela enfrentou uma rotina de medicamentos diários, consultas e exames. Em 2002, aos 28 anos, sua condição se deteriorou e Cristina teve de adicionar sessões de hemodiálise em seu dia a dia. Mas algo a diferenciava dos outros pacientes.

“Embora seja comum ter náuseas e dores, eu era a única na sala do hospital que não passava mal durante o tratamento”, afirma Cristina. O motivo? Ela tomava um óleo feito à base de maconha. “Descobri pesquisando por conta própria e preparava na minha cozinha [algo que na época e ainda hoje é considerado ilegal]”, diz.

Depois de cinco meses fazendo hemodiálise, Cristina precisou se submeter a seu primeiro transplante de rim (o segundo seria em 2013), e mesmo o sucesso da cirurgia não evitou os efeitos colaterais. “Eu tinha dores agudas provocadas pela reação do corpo ao órgão novo e muita indisposição. Foi aí que intensifiquei o uso do óleo”, diz.

O potencial terapêutico da administração dos princípios ativos tetraidrocanabinol (THC) e canabidiol (CBD), ambos presentes em diversas espécies da planta da maconha, foi descoberto pela ciência no final dos anos 90.

Acontece que o corpo humano produz naturalmente substâncias endocanabinoides, semelhantes àquelas encontradas na Cannabis, para estimular receptores espalhados no cérebro, órgãos, tecidos, glândulas e células imunológicas. Essas estruturas auxiliam na homeostase, que é a manutenção de um ambiente corporal interno estável, apesar das alterações no ambiente externo. Quando processos terapêuticos ou doenças, como os de Cristina, interferem nesse equilíbrio, os princípios ativos da maconha ajudam a potencializar artificialmente a homeostase.

A melhora notável foi o estalo para Cristina perceber que poderia ajudar outras pessoas. Por isso, há 17 anos, criou a BeHemp, fundação que auxilia pacientes com doenças que podem ser beneficiados pelo canabidiol. Para criar a fundação, a empreendedora investiu dinheiro do próprio bolso e contou com a ajuda da família.

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“Antes, já havia empreendido com franquias de balada, roupas e outros negócios, mas apenas com a BeHemp consegui realização pessoal e profissional”, diz. Atualmente, a instituição auxilia cerca de 600 famílias com medicamentos, acompanhamento médico e visitas aos pacientes, tudo gratuitamente. “A dinâmica da família muda quando uma pessoa tem uma doença crônica. O paciente sofre e seus familiares também”, explica.

Em 2018, dois anos após a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizar a importação de remédios com THC, Cristina criou a HempCare Pharma, companhia revendedora de medicamentos, suplementos, cosméticos e alimentos feitos de Cannabis. Há um mês, Cristina fundou outro negócio, o Dr. Hemp, clínica médica especializada em tratamentos com Cannabis medicinal. “Percebi que poderia ganhar dinheiro e gerar impacto social”, diz. Hoje, a HempCare vende, em média, 600 produtos por mês, e a Dr. Hemp está com a agenda lotada até o final de março.

Ilustração: Davi Augusto (VOCÊ S/A)

Novo mercado

Atualmente, cerca de 40 países já autorizaram a maconha para fins terapêuticos — inclusive os Estados Unidos, nação que liderou o combate à planta no século 20. Por lá, onde cada unidade federativa tem a liberdade de formular as próprias leis, 33 dos 50 estados americanos mais o distrito federal já regulamentaram os remédios à base de Cannabis. E, com a liberação para uso medicinal (e algumas vezes recreativo) no mundo, começa a surgir um novo e crescente mercado de negócios ligados à erva, que atrai profissionais e empreendedores.

Só em 2018 o mercado global de maconha movimentou 18 bilhões de dólares. De acordo com um relatório da consultoria New Frontier Data, feito em parceria com a The ­Green Hub, aceleradora brasileira de startups de Cannabis, apenas no Brasil essa indústria pode movimentar outros 4,6 bilhões de reais nos próximos três anos.

A expectativa de crescimento do segmento é tanta que ganhou até um nome: green rush, em alusão a gold rush, ou “corrida do ouro”, que agitou o Oeste americano no século 19.

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Por aqui, desde 2015 pacientes que tenham receita médica e autorização da Anvisa podem importar remédios derivados da maconha. Em quase cinco anos, pelo menos 9 540 pes­soas já trouxeram 78 000 unidades de produtos para tratar problemas como dores crônicas, efeitos colaterais de quimioterapia e de transplantes, e doenças como epilepsia, autismo, mal de Parkinson e neoplasia maligna.

No final do ano passado, a legislação facilitou um pouco o acesso a esses itens. Em dezembro, a Anvisa editou a Resolução no 327, que regulamentou a venda de remédios à base de Cannabis no país. Com a decisão, ficará mais simples importar os medicamentos e os compostos para a fabricação dos produtos em território nacional.

E, ainda que o plantio e a importação da planta (ou de partes dela, como flor, folha, caule e bulbo) in natura continuem proibidos, a tendência é que os preços caiam e o consumo aumente, fomentando o green rush tupiniquim.

“O mercado de Cannabis é muito promissor e cobiçado, e empresas de diferentes setores [universidades, importadoras, farmacêuticas, laboratórios, farmácias, transporte, segurança] já estão se preparando para atuar nesse nicho”, diz Carolina Sellani, analista da Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi).

Falta informação

A própria Abiquifi possui um grupo de trabalho com advogados, médicos, representantes de 14 empresas farmacêuticas e outros profissionais dedicados ao estudo do mercado de maconha medicinal. “Além das questões técnicas, há todo um trabalho de comunicação a ser implementado. As companhias estão se articulando para orientar, informar e educar os trabalhadores do setor”, diz Carolina.

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Nesse sentido, em abril São Paulo vai sediar o Cannabis Thinking, fórum multidisciplinar sobre maconha medicinal, voltado para médicos e profissionais da área farmacêutica. Hoje, dos 450 000 doutores com registro nos diferentes conselhos regionais de medicina (CRMs) brasileiros, apenas 1 100 prescrevem remédios feitos de Cannabis.

Para Renato Filev, doutor em neurociência e pesquisador do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), vinculado à Unifesp, o Conselho Federal de Medicina (CFM) é tímido em sua relação com a maconha e só aconselha o uso em casos de epilepsia. “Há muita desinformação e desconfiança entre os médicos”, diz.

Por outro lado, ele defende que há também curiosidade e demanda por informações de qualidade. “Como o complexo sistema endocanabinoide é uma descoberta recente na medicina, os livros didáticos e as universidades ainda não absorveram totalmente esse conhecimento”, afirma Renato.

O pesquisador acredita que o assun­to fará parte dos currículos em breve e cita que a Universidade Estácio promoveu, no final de 2019, um curso de extensão para médicos sobre o uso de Cannabis. “As vagas esgotaram e houve fila de espera”, diz.

O próprio Cebrid, pioneiro em pesquisas com maconha, desde 2017 mantém um curso online gratuito sobre o tema, que contou com a participação de 3 000 pessoas. Também no ano passado, a Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em João Pessoa, criou a primeira disciplina obrigatória sobre Cannabis nos cursos de medicina e farmácia — o que mostra o interesse por parte da comunidade pelo assunto.

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Há vagas

Mas não são somente os profissionais de saúde que terão de se atualizar se quiserem aproveitar o crescimento do mercado de ­Cannabis. “Até chegarmos a uma cadeia estável, o setor precisará de pes­soas de diferentes áreas”, diz Camila Teixeira, CEO da Indeov, consultoria que representa comercialmente empresas estrangeiras de maconha que desejem entrar no Brasil.

Para ter uma ideia do potencial de geração de empregos, é possível pegar o exemplo da Flórida, estado americano com 21 milhões de habitantes. Dados de 2019 mostram que, desde a regulamentação da maconha para uso medicinal em 2017, o setor criou 15 000 novas vagas de trabalho na região.

No Brasil, não há uma estimativa sobre a quantidade de empregos que serão gerados, mas especialistas acreditam que, somando todas as carreiras — advogados, educadores, técnicos para farmácias e laboratórios, especialistas em comunicação, marketing, relações públicas, transporte, segurança e logística —, o número deve superar centenas de milhares.

“Por causa do alto desemprego no país, não faltam trabalhadores interessados, mas experiência na área ninguém tem. Isso não é necessariamente um problema, porque, assim como ocorre em outros setores novos, as companhias acabam formando os profissionais”, completa José Bacellar, CEO da VerdeMed Brasil, farmacêutica de Cannabis canadense que chegou ao país em 2018 e está com dez vagas abertas.

Aliás, as contratações já começam a aparecer. A HempCare está em busca de um CEO do mercado farmacêutico e, segundo Cristina, a clínica Dr. Hemp não teve dificuldade para preencher as quatro vagas abertas para médicos quando foi fundada. “Recebemos mais de 30 currículos de profissionais, muitos já com experiência e pesquisas no uso de Cannabis medicinal”, conta.

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Outra companhia que está expandindo é a Entourage Phytolab, criada e presidida por Caio Santos Abreu. Fundada em 2014, a empresa hoje conta com oito funcionários. “Incluindo os prestadores externos, somos em 20 pessoas e estamos com cinco vagas para cargos técnicos”, diz o empreendedor.

Caio Santos Abreu, CEO da Entourage: a pesquisa sobre os usos medicinais da maconha começou por causa do câncer de sua mãe | Foto: Alexandre Battibugli (VOCÊ S/A)

Advogado de formação, Caio iniciou a pesquisa do assunto em 2005 devido a um câncer que sua mãe, Sueli, teve. “Ela fez quimioterapia e passou de 50 para 38 quilos, tinha muitas dores, náuseas, falta de apetite e fraqueza”, conta. Sueli começou a tomar um óleo de Cannabis artesanal, comprado ilegalmente, e a melhora foi evidente. “Ela começou a se alimentar mais, recuperou o peso e revigorou o ânimo. Embora tenha falecido em 2009, os desconfortos causados pela doença foram atenuados”, diz Caio.

Os próximos capítulos

A Entourage Phytolab foi a primeira empresa do Brasil a importar legalmente a planta de maconha para fins científicos, por meio de uma autorização judicial. Para isso, em 2017, firmou uma parceria com a Unicamp e deu início às pesquisas. Importou 10 quilos de maconha canadense de alta qualidade — carga avaliada em 200 000 reais, que ficava em uma câmara fria vigiada por seguranças e câmeras — e desenvolveu medicamentos com tecnologia 100% nacional para tratar a epilepsia. “As vendas do produto devem começar no último trimestre deste ano ou apenas em 2021”, afirma Caio.

Isso porque, antes de ser liberados para venda, os medicamentos nacionais e importados à base de maconha devem ser aprovados e registrados pela Anvisa, processo que pode durar de seis meses a um ano. “Em 2020, a agência terá de lidar com muitos pedidos simultâneos de aprovação e registro, algo que pode fazer com que os produtos não cheguem às prateleiras tão rapidamente”, avalia Sueli de Freitas, especialista da área regulatória do escritório L.O. Baptista Advogados e integrante do grupo de trabalho sobre Cannabis medicinal da Abiquifi.

A regulamentação da Anvisa, porém, não foi o último capítulo dos debates sobre o uso de maconha no Brasil. Em outubro do ano passado, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, enviou um parecer ao Supremo Tribunal Federal para que fosse determinado um prazo para a agência regulamentar também o plantio para fins terapêuticos — atualmente, apenas 40 famílias brasileiras têm autorização judicial para plantar maconha e fazer o medicamento. Em contrapartida, no mesmo mês, o STF adiou o julgamento que definirá se o porte de drogas para consumo próprio é crime — três ministros já votaram pela legalização.

O Canadá, que possui uma das legislações sobre Cannabis mais avançadas do mundo, pode ser um bom exemplo para o Brasil. O país aprovou o uso medicinal em 2001 e o recreativo em 2018. Por causa disso, os canadenses estão largando na frente no mercado de maconha medicinal e, das dez maiores companhias do mundo que atuam no ramo, seis são de lá.

Com 37 milhões de habitantes, o país da América do Norte tem mais de 360 000 usuários frequentes de Cannabis medicinal registrados em seu sistema público de saúde e lidera globalmente a exportação tanto das plantas como do óleo. O Brasil, com seus mais de 200 milhões de cidadãos, tem cerca de 4 milhões de potenciais usuários medicinais, de acordo com o relatório da New Frontier Data. É daí que vem todo o interesse no mercado.

Os remédios são apenas uma parcela do setor, que pode se expandir para uso recreativo, veterinário, têxtil, cosmético e até alimentício. Nos próximos cinco anos, de acordo com diferentes estimativas, de 60 a 80 nações terão autorizado o uso medicinal e/ou recreativo. Com isso, a planta Cannabis caminha para se tornar uma commodity agrícola global, negociada internacionalmente como o café, por exemplo. O Brasil, em razão dos milhões de hectares de terras cultiváveis e da vasta experiência em agronegócio, está muito bem posicionado para se destacar nesse mercado.

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