Hand Talk, a startup que ajuda na comunicação com surdos
Era para ser só um projeto de faculdade. Mas o Hand Talk, um app que traduz a escrita para a Língua Brasileira de Sinais, se tornou um grande negócio.
No Brasil, 10,7 milhões de pessoas têm deficiência auditiva. Desse total, 2,3 milhões possuem surdez severa: escutam apenas sons acima de 71 decibéis, o equivalente a um aspirador de pó.
Acontece que a surdez limita o acesso à educação, uma vez que o sistema de ensino não está adaptado para receber deficientes auditivos graves. De acordo com um levantamento do instituto de pesquisa Locomotiva, somente 7% dos surdos chegam a frequentar uma faculdade. 15% passam pelo ensino médio e 46% ficam só no fundamental. Pior: 32% não têm grau algum de instrução.
Boa parte desses não sabe ler. É que a alfabetização depende em grande parte da fonética, dos sons das palavras. Quando não é possível relacionar som e escrita, as palavras se tornam algo abstrato. Até existe um alfabeto gestual, você sabe: aquele com um sinal de mãos para cada letra do alfabeto. Mas ele traz dois problemas.
Primeiro, não serve para os que não puderam aprender o alfabeto tradicional. Segundo, mesmo para os que aprenderam, a comunicação por essa via é lenta. Por isso, os surdos usam majoritariamente Libras, a Língua Brasileira de Sinais, na qual um gesto já significa uma palavra ou uma frase – o que torna a comunicação tão ágil quanto a linguagem fonética.
Só há um porém. A Libras não ajuda na hora em que uma pessoa surda precisa se comunicar com uma sem deficiência – pelo simples fato de que a imensa maioria delas é analfabeta em Libras.
É essa barreira que o Hand Talk pretende derrubar.
A startup produz um app homônimo, que funciona como um Google Tradutor para Libras. O usuário grava um áudio ou escreve um texto, e um intérprete virtual (são duas opções, o Hugo e a Maya) faz os movimentos na língua de sinais.
O maior desafio foi mostrar que a acessibilidade também é uma oportunidade de negócios, não apenas filantropia.
Ronaldo Tenório
É quase uma Pedra de Roseta (o registro arqueológico que permitiu a tradução dos hieróglifos egípcios para o grego). Afinal, ele ajuda quem não sabe Libras a se comunicar com pessoas surdas de forma instantânea, sem o intermédio da escrita – que parte dessa população não domina.
Ele também tem um dicionário dividido por temas, como cores, frutas e animais; além de uma seção com vídeos educativos, também separados por temas. Ou seja: também é uma mão na roda para pessoas sem deficiência que queiram aprender Libras.
A Hand Talk foi criada em 2012 pelos alagoanos Carlos Wanderlan, Ronaldo Tenório e Thadeu Luz. A ideia mesmo surgiu em 2008, quando Ronaldo estava cursando publicidade. Na época, um professor pediu para que os alunos desenvolvessem um produto inovador. O estudante, então, decidiu apresentar um projeto que ajudasse na comunicação entre pessoas com e sem surdez. “Até então, eu nunca tivera contato com ninguém com deficiência auditiva. Mas percebi que existia uma barreira de comunicação entre os surdos e os ouvintes.”
Ronaldo, porém, ainda não tinha pretensão de levar o projeto para frente, mesmo porque não havia tecnologia disponível para a criação de um app tradutor de Libras. O próprio Google Tradutor ainda era uma novidade: tinha sido lançado só dois anos antes.
O conceito foi para a gaveta e Ronaldo abriu uma agência de publicidade depois que se formou. Na época, ele trabalhava com o programador Carlos, que foi fazer um curso de desenvolvimento de aplicativos em Belo Horizonte. Quando voltou, ele queria colocar o que aprendeu em prática e Ronaldo viu a oportunidade de retomar a ideia do Hand Talk.
Eles passaram quatro dias prototipando o aplicativo. Faltavam só os vídeos animados em Libras. E foi aí que Thadeu, que é arquiteto especializado em animação 3D, entrou no projeto.
Da gaveta para a ONU
A decolagem da empresa foi rápida. Em 2012, os sócios se inscreveram num desafio de startups organizado pelo investidor-anjo João Kepler – que já apoiou mais de 500 startups – e saíram da sua primeira apresentação com R$ 170 mil de investimento. “Foi aí que a brincadeira ficou séria.”
No ano seguinte, a Hand Talk foi selecionada para um programa de aceleração da Artemisia, uma organização que impulsiona negócios de impacto social. No mesmo ano, recebeu o prêmio da ONU de melhor aplicativo social do mundo, vencendo outros 15 mil projetos de cem países. Foi quando a Hand Talk ganhou notoriedade. Desde então, o app já foi baixado 5 milhões de vezes – e o número de usuários que acessam a plataforma todos os meses é de 250 mil.
Os empreendedores colecionaram outros prêmios ao longo dos anos, como o de startup mais inovadora do Brasil e da América Latina. Além disso, as portas se abriram para mais investimentos. Em 2018, a empresa recebeu um aporte de R$ 2,5 milhões da Kviv Ventures, um fundo da família Klein, das Casas Bahia. Um ano depois, foi a vez de impressionar o Google: a Hand Talk recebeu um investimento de R$ 3 milhões e ainda ganhou uma vaga para o Launchpad Accelerator, a aceleradora de empresas da big tech.
Monetizando o negócio
Mas mesmo projetos sociais precisam faturar. E a Hand Talk não é diferente. “No começo, o maior desafio foi mostrar que a acessibilidade é uma oportunidade de negócios, não só filantropia”, afirma Ronaldo.
A solução foi criada em 2014, quando eles lançaram um plugin para sites. De fato. Era, e segue sendo, uma necessidade. Há seis anos, foi sancionada uma lei que obriga os sites a oferecerem ferramentas de acessibilidade para deficientes. Mas um estudo divulgado este ano pela empresa de tecnologia BigDataCorp, em parceria com o Movimento Web para Todos, revela que menos de 1% das páginas brasileiras segue a legislação. E, detalhe: destes poucos sites, nem todos têm ferramentas exclusivas para surdos.
Com o plugin da Hand Talk, fica disponível um botão na página. Quando você aciona esse botão, abre uma janela com o Hugo ou a Maya, que traduz para Libras todos os textos que você selecionar.
A Hand Talk vende esse plugin para empresas que pretendem deixar seus sites acessíveis para deficientes auditivos. “A gente faz a implementação e ainda customiza o avatar do intérprete virtual com roupa da companhia.”
O valor do serviço varia de acordo com o tamanho e tráfego do site; e a startup não abre o faturamento por causa do contrato com os investidores. O fato é que a ferramenta já está funcionando em 600 sites, incluindo de grandes empresas: Chevrolet, Azul, Bradesco, Samsung; além de páginas institucionais, como da Prefeitura de São Paulo.
Novas funcionalidades
A Libras é só uma das 200 línguas de sinais que existem pelo mundo. Há praticamente uma para cada idioma com um número razoável de falantes. De olho nisso, a startup deu mais um passo em seu plano de expansão: ela lançou a opção de tradução para a ASL (American Sign Language, a língua americana de sinais).
R$ 3 milhões foi o aporte do Google em 2019.
5 milhões de downloads desde o seu lançamento.
600 sites já têm o plugin de acessibilidade.
“Esse era um sonho nosso de muito tempo. Quando a gente ganhou o prêmio da ONU, lá em 2013, muitas pessoas pediram a versão para outras línguas. Mas achamos melhor amadurecer a tecnologia aqui no Brasil primeiro, antes de replicar”, afirma Ronaldo. A versão em ASL foi lançada em junho do ano passado e já tem 25 mil usuários mensais.
O plano agora é expandir para cada vez mais idiomas de sinais. Em paralelo, a Hand Talk planeja lançar nos próximos meses uma outra função, batizada de “Motion”. Hoje, o app só permite que os ouvintes recebam a comunicação dos surdos. Se um deficiente, por exemplo, quiser perguntar para o cobrador do ônibus em que ponto precisa descer, ele não consegue.
O Motion muda isso. A ferramenta vai permitir a tradução de Libras para português. Aí sim o app será uma Pedra de Roseta completa.
A tecnologia combina inteligência artificial com um sensor de movimentos, e está sendo desenvolvida pela startup há dois anos. Trata-se de um trabalho complexo, afinal.
A língua de sinais não segue a mesma estrutura da escrita. A frase “hoje está nublado”, em Libras, seria só “hoje nublado”. Também existem palavras que possuem mais de uma opção de sinal, dependendo do contexto – como o verbo “gostar”, que tem seis variações.
Para que a ferramenta forme frases, é preciso uma boa dose de inteligência artificial, alimentada por um vasto banco de dados com vídeos de sinais. Para nutrir essa biblioteca, a Hand Talk lançou uma plataforma colaborativa, chamada “Community”. Usuários e intérpretes podem inserir vídeos e colocar a descrição de cada sinal ali.
Que iniciativas como essa deem à luz um mundo menos silencioso para os surdos.