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Brechós atraem moderninhos e podem desbancar lojas de roupas tradicionais

Foi-se o tempo em que lojas de roupas usadas eram sinônimo de produtos velhos e com cheiro de naftalina. Os brechós estão em pleno crescimento e podem ultrapassar varejo de moda em 2024.

Por Bruno Carbinatto | Ilustração: Bárbara Tamilin | Design: Brenna Oriá | Edição: Alexandre Versignassi
Atualizado em 13 jul 2021, 16h38 - Publicado em 7 jun 2021, 14h46

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o início do século 19, um alfaiate português de nome Belchior abriu uma loja no Rio de Janeiro para comprar e vender produtos usados. Deu certo – e outros negócios do tipo foram surgindo com o nome de “loja de belchior”. O termo aparece inclusive no conto Ideias de Canário, publicado por Machado de Assis em 1889.

Como a língua evolui por linhas tortas, “belchior” logo se transformou no que conhecemos hoje como “brechó”. Lá fora, o modelo tinha se consolidado nos tais “mercados das pulgas” que se espalharam pela Europa devastada por guerras e pobreza nos séculos 19 e 20, onde se vendiam roupas com qualidade questionável. Mas a verdade é que fazer a revenda de itens usados existe desde que gente é gente.

Apesar da idade milenar desse tipo de comércio, foi só recentemente que os brechós começaram a quebrar a imagem ligada a produtos velhos, mofados e cheios de pulgas. Nos últimos anos, o mercado de segunda mão tem aumentado exponencialmente, no Brasil e no mundo: em 2019, as vendas de usados pelo globo cresceram 25 vezes mais rápido do que o setor varejista como um todo, segundo relatório da ThredUp, uma empresa de capital aberto americana com foco em vendas de usados.

Usando dados da GlobalData, a ThredUp estima que o dinheiro movimentado pelo setor saltará de US$ 28 bilhões (em 2019) para US$ 64 bilhões em 2028. No mesmo período, o montante dos setores da fast fashion – o varejo tradicional de vestuário, com venda de peças novas que rapidamente perdem seu uso – terá um crescimento muito menor: de US$ 36 bilhões para US$ 43 bilhões.

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Em 2019, entre todos os itens usados comprados pelos brasileiros, roupas e calçados ficaram em segundo lugar, de acordo com uma pesquisa da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas, atrás apenas de celulares e eletrônicos. Mais de 90% dos consumidores afirmaram ter ficado satisfeitos com a compra. No mesmo ano, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) estimou que havia 13 mil pequenos negócios no país focados na venda de produtos usados.

A tendência de crescimento em 2019 era clara, como os dados mostram; e aí veio a pandemia. O baque até foi sentido pelos brechós, principalmente os pequenos. Mas o setor em geral viu na crise uma oportunidade de crescer, especialmente no meio digital, por dois motivos: com grande parte do mundo entrando em quarentena, as pessoas tiveram tempo para fazer uma boa limpeza no guarda-roupa e aproveitar para ganhar alguns trocados vendendo as peças antigas; ao mesmo tempo, com a crise, o consumidor buscou reduzir gastos – e recorreu à compra de peças seminovas.

Tanto que a compra e venda online de usados cresceu 27% em 2020, contra uma queda de 23% no varejo como um todo. A expectativa da GlobalData é a de que a tendência de alta nos brechós online se intensifique, mesmo com o eventual arrefecimento da pandemia.

Eles preveem uma alta de mais de 33% na venda de roupas usadas até o final de 2021, contra um modesto repique de 8% no varejo tradicional. Mais: apostam também que o brechó de rua deve pegar uma carona na tendência e subir 40%.

O novo “cool”

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pandemia pode até ter acelerado a ascensão dos brechós, mas o fenômeno começou antes – e tem a ver com uma transformação no mundo da moda. Acontece que as novas gerações estão cada vez mais conscientes do impacto ambiental e social da indústria de vestuário. Buscam um consumo mais sustentável. Os millennials (nascidos entre 1980 e 1996) e a geração Z (pós-1997) já correspondem a 46% da população global – o mercado não pode ignorar as tendências dessa fatia de consumidores.

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(Bárbara Tamilin/VOCÊ S/A)

E elas são bem claras: 90% dos jovens da geração Z acreditam que as empresas precisam lidar com problemas ambientais e sociais, e não teriam problemas em deixar de comprar de uma marca que não se comprometesse com essas ideias, segundo dados da consultoria McKinsey. A preocupação com o social é uma adição especialmente recente que os diferencia dos millennials, ainda focados nas questões ambientais.

Nada disso é à toa: a indústria da moda é responsável por cerca de 10% das emissões globais de carbono, e quase 20% do consumo de água. A moda consome mais energia do que a aviação e o transporte marítimo juntos. Na questão social, não faltam histórias de grandes empresas da moda envolvidas em escândalos relacionados a condições precárias para trabalhadores da manufatura. Em certos casos, análogas à escravidão.

Por isso, não só comprar peças usadas deixou de ser algo malvisto como se tornou cool, descolado. Jogar roupas conservadas no lixo é quase que um atestado de culpa. O perfil médio do consumidor de peças de roupas usadas, diga-se, é formado por mulheres jovens, entre 18 e 45 anos, de classe média e antenadas nas discussões socioambientais.

Negócios de sucesso

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uem está no ramo há tempos percebe a mudança de perto. É o caso de Denise Pini, fundadora do brechó Capricho à Toa, na capital paulista. O negócio começou com um bazar, em 1978, no porão da casa da empreendedora – para complementar a renda enquanto ela fazia faculdade. No início, as vendas eram feitas com toda discrição possível – já que, na época, vários clientes temiam ser vistos por conhecidos comprando produtos de segunda mão. “Muita gente tinha nojo até de tocar nas peças”, relembra Denise. Em 1991, a marca surgiu formalmente como uma loja e hoje conta com um estabelecimento de três andares e reposição diária de 1.300 peças únicas no varejo físico e 300 no e-commerce, que começou na pandemia.

33% é o crescimento esperado das vendas online de usados em 2021, contra 8% do varejo tradicional.

Foi também apostando nas vendas online que o Brechó Fashion Carioca, no Rio de Janeiro, conseguiu passar pela crise. Apesar de ter um ponto físico em um shopping, a aposta para as vendas hoje é o online, segundo Manu Farias, à frente do negócio há oito anos. Nesse tempo, ela percebeu o preconceito diminuir gradualmente. “É um negócio muito democrático. Tenho tanto cliente que entra na loja para comprar blusinha de R$ 39,90 como quem procura bolsa de R$ 6 mil”, diz.

Com o crescimento recente, a empreendedora espera expandir seu negócio e, eventualmente, cobrir o setor de moda masculina também – um desafio, porque “quando um homem compra uma camisa, usa até estragar”, brinca Manu.

Se os homens ainda são um segmento difícil de ser conquistado pelos brechós, outro grupo se destaca como cliente ideal para esse tipo de negócio: as crianças (bem, os pais delas). Quem tem um pequeno sabe: eles crescem rápido, e perdem roupas a uma velocidade quase que financeiramente insustentável – o consumo de usados ajuda nesse sentido.

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O brechó Giralook, fundado em Belo Horizonte em 2015 por Daniela Repoles Carvalho e seu marido, atua no ramo infantil. “Frequentávamos muito os EUA e percebemos que eles já tinham os brechós enraizados na cultura. Decidimos apostar nessas ideias inovadoras”, conta Daniela. O negócio cresceu 100% durante a pandemia e hoje conta com uma média de 130 mil vendas mensais. Com o crescimento, a marca virou franquia e pretende abrir mais lojas na região Sudeste.

Também se deu bem nos últimos anos quem percebeu o potencial de crescimento dos brechós com antecedência. Foi assim com Bira Rodrigues Rosa e Aline Rodrigues Rosa, um casal de empreendedores que já atuava no varejo de moda – primeiro como vendedores, depois como supervisor comercial e gerente. Ao constatar o potencial das roupas usadas, o casal decidiu apostar na abertura de um brechó, que nasceu em 2016, com 20 peças, na sala do próprio apartamento da família em Campinas (SP).

Deu certo: hoje, o Único Brechó é um dos maiores do interior paulista e conta com uma loja física de 800 m². O negócio foi tão bem que o casal também abriu um projeto chamado “Seu brechó, Seu sucesso”, em que presta consultoria gratuita para outros pequenos empreendedores que querem entrar no ramo.

Dos pequenos aos grandes

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as engana-se quem pensa que o fenômeno dos brechós está apenas nos pequenos e médios negócios. Recentemente, a bolsa de valores brasileira ganhou um brechó para chamar de seu – ou mais ou menos isso. É o Enjoei, marketplace que surgiu em 2012 como um blog e, hoje, permite que qualquer um compre ou venda seus produtos que enjoaram de usar. A empresa fez sua estreia na B3 em novembro de 2020, e, até o fim de maio deste ano, as ações valorizaram cerca de 9%. Do primeiro trimestre do ano passado para o primeiro deste, o número de novos vendedores na plataforma cresceu 118%; o de compradores, 107%.

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(Bárbara Tamilin/VOCÊ S/A)

Nos seus primeiros passos, a empresa ainda patina para tentar conquistar os investidores. O prejuízo líquido do Enjoei em 2020 foi de R$ 31,13 milhões, déficit 50% maior que o de 2019. A empresa argumenta que o resultado é devido ao aumento das despesas para ampliar a equipe e captar novos usuários. Em tempo: nada mais natural para uma empresa jovem e com ambições de crescimento severo.

Enquanto isso, outras gigantes do varejo de moda já se tocaram do potencial dos brechós – e não estão se deixando passar para trás. A Gucci firmou acordo em outubro de 2020 com a The RealReal, maior plataforma de revenda de artigos de luxo do mundo, para criar um minimarketplace de itens usados da marca italiana lá dentro (um sapato da Gucci passa a aparecer não só na seção de calçados, mas também numa página exclusiva da marca). Além disso, a grife se comprometeu a plantar uma árvore para cada venda concretizada da sua marca na The RealReal – uma jogada de marketing para reforçar o discurso pró-sustentabilidade.

Por aqui, na mesma época, a Arezzo comprou 75% do capital da Troc, o maior brechó online de luxo do país. Na plataforma, pessoas podem anunciar a venda de itens usados de marcas predeterminadas e, caso a transação se concretize, a Troc fica com parte do valor. A companhia, que surgiu em 2017, faturou R$ 10 milhões em menos de três anos, até que foi comprada pela marca de sapatos e bolsas.

Outra plataforma semelhante, mas que aceita itens mais simples, é a Repassa; nela, você primeiro paga para receber a chamada “Sacola do Bem” em casa. Elas são usadas para o envio dos produtos para a empresa, que então fotografa, precifica e anuncia tudo – você fica com 60% do valor da venda deles. Em 2020, a empresa vendeu 250 mil peças – e, no segundo semestre, recebeu um aporte de R$ 7,5 milhões da Redpoint Ventures, uma companhia de investimentos americana.

82% das pessoas já compraram ou estão dispostas a comprar itens usados quando o dinheiro aperta.

Em março deste ano, a marca de lingerie Intimissimi firmou uma parceria com a Repassa para distribuir gratuitamente 2 mil Sacolas do Bem a seus clientes, e divulgar o brechó online. Outras marcas, como C&A, Renner e Malwee, também firmaram parcerias parecidas. Em alguns casos, os clientes ganham crédito e desconto nas lojas caso vendam no marketplace.

Como empreender na área

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icou animado com o crescimento do setor e decidiu abrir um brechó? Calma lá: não é um negócio tão simples quanto parece. Primeiro, é preciso de muito planejamento – e, principalmente, estudo sobre como está o mercado, porque concorrentes não faltam.

“A maior dificuldade dos brechós está na compra de produtos, não na venda”, diz Hugo Hoch, consultor do Sebrae. Afinal, o negócio só funciona se há pessoas querendo vender suas roupas usadas. Nesse caso, é preciso criar métricas para precificar os produtos de forma justa, determinar uma lista de marcas ou tipos de itens que serão aceitos e estabelecer critérios para selecionar apenas aqueles realmente de boa qualidade, segundo Hugo.

Quando se trata de vender, é importante apostar em um atendimento personalizado e humanizado. “O consumidor dos brechós é, essencialmente, garimpeiro: gosta de procurar peças únicas e especiais”, diz Denise, do Capricho à Toa. Trata-se de um diferencial importante em relação às grandes varejistas, que trabalham com produção em massa.

E, se a pandemia obrigou todos os negócios a se digitalizarem, as vendas online ainda são um desafio para brechós, especialmente aqueles que também têm ponto físico e uma alta demanda. Como são sempre peças únicas, pode haver disputa pelo item ao mesmo tempo entre consumidores em suas casas e na loja, por exemplo – a cliente que sair de mãos abanando vai ficar insatisfeita, e pode não voltar mais.

O Único Brechó, de Campinas, apostou numa alternativa: o chat-commerce. Em vez de expor seus produtos em um site, é possível marcar um horário para ser atendido por WhatsApp por um funcionário que expõe ao consumidor as opções como se estivesse na loja física. (Veja mais dicas no box abaixo.)

Seja como empreendedor, seja como consumidor, uma coisa é certa: todos estamos vivendo o momento de virada de um negócio milenar. É a hora de olhar para o guarda-roupa.

Três dicas para empreender

FOCO NAS COMPRAS
Um brechó pode correr o risco de ficar sem produtos rapidamente caso não encontre pessoas querendo vender. Por isso, é bom criar uma carteira de fornecedores mais ou menos fixa, e constantemente atualizada.

ESTUDE O MERCADO
Precificar os produtos é um grande desafio para brechós: precisa ser barato para o consumidor, justo para o fornecedor e lucrativo para o empreendedor. Não há fórmula mágica, mas estudar o mercado para estabelecer métricas pode ajudar.

CUIDADO COM O E-COMMERCE
Como se trata de peças únicas, não há estoque: o que significa que um item pode ser disputado por mais de um consumidor entre a loja física e a online. É preciso pensar em alternativas, como dividir os itens entre as duas opções de venda ou apostar no chat-commerce (veja no texto principal).

Fontes: Hugo Hoch, consultor; Sebrae; donos de brechós ouvidos pela reportagem.

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