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Caso 123 Milhas: não existe passagem aérea programável

Pacote "Promo" da companhia não vendia passagem, mas promessa de viagem. E de maneira insustentável, como mostra o pedido de recuperação judicial.

Por Tássia Kastner
1 set 2023, 13h43
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 (Arte/Fotos: Unplash/Você S/A)
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O colapso da 123 Milhas deixou um número incontável de pessoas sem viajar. Incontável mesmo, já que o pedido de recuperação judicial da companhia inclui um arquivo de 5.400 páginas com a lista de credores, incluindo clientes que compraram passagens e os que venderam milhas para a companhia.

Essa é uma crise que não precisava ter existido. A Hurb implodiu e teve suas atividades suspensas por operar o mesmo tipo de esquema da 123 Milhas: prometer passagens por preços descolados da realidade, alegando que o uso de tecnologia permitiria a oferta de descontos. 

Nas ditas passagens flexíveis, a 123 Milhas prometia bilhetes até 50% mais baratos que os cobrados pelas companhias aéreas. Um exemplo real: uma vítima da empresa comprou sua “passagem promo” por R$ 2,8 mil para o trecho São Paulo-Barcelona, com o plano de voar em setembro. Pelas companhias aéreas, o mesmo ticket sairia por R$ 4,8 mil. O “desconto” foi de 42%. 

A empresa afirmava usar milhas de terceiros na aquisição das passagens, o que permitiria pagar menos que a tarifa regular. E ela comprava essas milhas supostamente por um valor menor.

Além disso, a 123 Milhas dizia ter acesso privilegiado aos sistemas das companhias aéreas, para caçar pechinchas. Um dos motivos alegados para a crise do negócio foi que as empresas começaram a dificultar o monitoramento das passagens com milhas e o uso desses pontos, além da alta no preço dos bilhetes.

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Quem já tentou usar as próprias milhas para emitir uma passagem sabe que na maioria dos casos, os preços em reais ou em pontos mais ou menos se equivalem. Não há desconto na compra com milhas – a única vantagem é tê-las acumulado com os gastos do cartão de crédito ou com trechos já voados.

Só que esse nem era o problema mais grave. O fato é o seguinte: não existe passagem aérea programável. Uma passagem é um contrato entre o passageiro que vai voar e a companhia que prestará o serviço. Ele passa a existir quando você paga pelo bilhete e recebe, em troca, o número de identificação da compra e o localizador do voo. O contrato tem o nome do passageiro, a data de ida e de volta e o número do voo. Isso é algo emitido exclusivamente pela companhia aérea. Se você contratar uma agência de viagem online ou física, o trabalho dessa pessoa vai ser intermediar essa comunicação – o contrato de transporte continua sendo entre a empresa aérea e você, e só existe com a passagem e o localizador na mão.

Quem comprava a “passagem promo” da 123 Milhas não recebia o contrato, ou seja, não comprava uma passagem de fato. Era uma promessa de emissão, apenas.

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O que chegava no email era um aviso de pagamento e um formulário independente, em que o futuro passageiro deveria preencher informações pessoais. O prazo para receber o localizador era de até 10 dias antes da viagem, pouco importando se o voo fosse para dali um mês ou dois anos. Até que o embarque chegasse, não haveria passagem, apenas uma promessa de que um bilhete seria emitido. 

Essa dinâmica de emitir a passagem apenas perto do embarque agravou a crise. Voltemos ao exemplo do voo São Paulo-Barcelona: quando a companhia avisou que não emitiria a passagem, faltando menos de um mês para o embarque, o bilhete mais barato para o trajeto era vendido por R$ 9 mil. O “desconto” para o cliente seria de quase 70%.

Não só isso. A 123 Milhas vendia essas “passagens” com uma antecedência que não existe no mercado de aviação. Há relatos em grupos de vítimas, de clientes que pagaram para voar em 2025. Acontece o seguinte: é impossível saber quanto estará uma passagem aérea daqui dois anos, já que as companhias, por lei, só começam a vender os bilhetes um ano antes do embarque. Como, então, vender uma passagem? E quanto cobrar por ela?

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No lugar de gestão de negócios, havia uma empresa fazendo apostas. E perdendo. Apenas no primeiro semestre deste ano, a companhia acumulou um prejuízo de R$ 1,67 bilhão e um patrimônio líquido negativo – o que significa que ativos da empresa não cobrem a dívida total. Trata-se de um negócio insolvente.

Não à toa, clientes lesados passaram a comparar a companhia a um esquema de pirâmide: quando o dinheiro novo que entra é usado para pagar quem estava antes no esquema. Chega uma hora em que não há mais gente o suficiente para entrar na ciranda – e isso certamente foi acelerado pelo descolamento do valor das passagens em relação à tarifa cobrada.

Em recuperação judicial, a companhia afirma que continua tendo um negócio viável e que as “passagens promo” eram apenas um pedaço da operação. 

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Uma reportagem do Broadcast mostrou que, se fosse honrar os contratos de promessa de viagens, a companhia desembolsaria R$ 774,269 milhões em até um ano, valor que saltou mais de seis vezes em um semestre. Considerando a janela de um ano a frente, essa que não se sabe quanto as passagens vão custar, há um rombo de R$ 260,056 milhões.

Eis o preço de vender promessas, e não passagens aéreas.

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