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Mercado plant-based: a ascensão carne sem carne

Entenda a nova indústria de proteínas vegetais, e as oportunidades que ela pode trazer.

Por Bruno Carbinatto | Ilustração: Felipe Del Rio | Design: Laís Zanocco | Edição Alexandre Versignassi
Atualizado em 12 ago 2021, 18h43 - Publicado em 5 jul 2021, 11h13
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ocê se aproxima do açougue no supermercado para comprar as proteínas do mês. Nas vitrines, linguiças, bifes…, mas você não vai escolher entre picanha e filé mignon: pode optar por um naco feito de ervilha colorida com beterrabas ou, quem sabe, um suculento bife de glúten com gordura de óleo de coco.

Parece uma cena distópica de Black Mirror. Não é o caso. Os chamados açougues veganos já são uma realidade em vários locais do Brasil, mesmo que com produtos menos sofisticados do que os descritos aqui. Mas dá para apostar que cenas como essa se tornarão cada vez mais comuns – e talvez até o padrão. É que o crescimento dos produtos plant-based – alimentos feitos com plantas que visam substituir os de origem animal – vem chamando a atenção dos investidores com um mercado consumidor cada vez mais promissor. 

O setor de substitutos de produtos de origem animal em si não é exatamente novo: alternativas vegetais para leites, queijos, manteigas e outros laticínios já existem há algum tempo, criadas para atender principalmente o público vegano. Mas foi só nos últimos anos que análogos vegetais para carne foram criados – prometendo imitar aparência, textura e gosto da versão original.

Para essa missão quase impossível, vale usar de tudo: soja, ervilha, beterraba e glúten são alguns dos ingredientes mais comuns para a produção de hambúrgueres, nuggets, bifes, salsichas e outras “carnes” vegetais, além de óleos e gorduras vegetais e outros condimentos. Em laboratório, pesquisadores testam suas receitas para a produção em série de novos produtos. Esses processados vão parar nas geladeiras de supermercados ou em restaurantes e são cada vez mais comprados – a ponto de chamar a atenção de gigantes do setor alimentício. 

Em pleno crescimento

Nós, humanos, consumimos carne de animais de grande porte há no mínimo 2,6 milhões de anos, segundo os registros fósseis. Hoje, pelo menos 330 milhões de toneladas de carne são produzidas por ano; 80 bilhões de animais são criados e mortos para isso. 

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Apesar de uma queda na produção de 2019 (causada por problemas na cadeia produtiva, e não por uma diminuição na demanda), nada indica que esse número vá diminuir – o consumo de proteína animal cresce em todos os países que observam queda nas taxas de pobreza extrema. Mas tudo sugere que vai desacelerar.

Nos Estados Unidos, de longe o mercado mais avançado de produtos do tipo, o setor de produtos plant-based cresceu 27% de 2019 para 2020 – enquanto o varejo de alimentos em geral cresceu somente 15%, segundo a Plant Based Foods Association.  As carnes de origem vegetal lideraram o aumento do segmento: 45%, contra 20% da subida nas vendas de leites veganos. Ainda é um setor minúsculo comparado com o de seus análogos animais, mas a tendência de crescimento é clara.

No mundo, um relatório da Meticulous Market Research calculou que o mercado de substitutos vegetais terá um crescimento anual médio de quase 12% até 2027, enquanto o setor das carnes de verdade se expandirá em cerca de 4,5% ao ano. O mercado global de proteínas plant-based pode chegar à cifra de US$ 370 bilhões em 2035, projeta a consultoria A.T. Kearney – o que corresponderia a 23% de todo o segmento de carnes no mundo. Bancos como J.P. Morgan e Credit Suisse já chamaram a atenção dos investidores para o setor.

E eles parecem estar ouvindo. Em 2020, o segmento de substitutos vegetais para alimentos de origem animal recebeu o valor recorde de US$ 3,1 bilhões em investimentos, segundo dados do The Good Food Institute (GFI), uma organização internacional que promove o crescimento de setores de alimentação mais sustentáveis. Só o valor do ano passado corresponde a mais da metade de todo o montante investido em empresas do ramo nos últimos dez anos.

27% foi o aumento das vendas de substitutos vegetais nos EUA em 2020, contra 15% do varejo total.

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As chamadas foodtechs, startups especializadas em inovar e otimizar a produção de alimentos de forma sustentável, foram as principais beneficiadas. Entre elas, liderou a americana Impossible Foods, que se destaca como uma das duas principais empresas do ramo e planeja abrir seu capital ainda este ano nos EUA.  Em 2019, a companhia fechou um acordo com o Burger King para comercializar seu produto principal, o Impossible Burger, na rede de fast-food.

A outra grande player do mercado é a Beyond Meat, que já fez seu IPO em 2019 – suas ações valorizaram 163% logo em seu primeiro dia na bolsa. Assim como a concorrente, ela firmou parceria com uma rede de fast-food, o McDonald’s, para vender seus hambúrgueres veganos.

A Beyond Meat surgiu em 2009, e a Impossible Foods em 2011, ambas na Califórnia. Mas as duas demoraram anos para lançar seus respectivos produtos no mercado – já que, praticamente pioneiras, tiveram que desbravar as tecnologias por si só.

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(Felipe Del Rio/VOCÊ S/A)

Desde então, muita coisa mudou. Outras foodtechs surgiram mundo afora – algumas não produtoras de comida plant-based, mas especializadas em pesquisar novas técnicas e ingredientes para vender soluções para empresas do ramo. Afinal, um dos desafios é tentar cada vez mais se aproximar das características da carne original em fatores como gosto, textura, cheiro e até nos líquidos que ela solta. Mas o que mais chama a atenção é que o todo-poderoso mercado de carnes animais já notou o potencial do setor plant-based – e não está se deixando passar para trás.

Em abril deste ano, a gigante brasileira JBS comprou a Vivera, a terceira maior produtora de alimentos plant-based da Europa, atuando em mais de 25 países. O negócio saiu por 341 milhões de euros (R$ 2 bilhões). Foi mais um passo da companhia no sentido de esverdear seus produtos. A Seara, marca da JBS, já tinha uma linha assim, chamada Incrível, que consiste em hambúrgueres, almôndegas e até “iscas de peixe” feitas de vegetais. 

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A Marfrig, outro peso-pesado do mundo frigorífico, se uniu em maio com a americana ADM para inaugurar a joint venture PlantPlus Foods, que comercializa produtos do ramo nas Américas. Já a BRF ainda começa a explorar o setor com seus produtos plant-based próprios, dentro da marca Sadia.

Tanto investimento entrando, combinado ao surgimento de novos players no mercado, levou a um fenômeno interessante: o preço desses produtos, antes pouco acessíveis, começou a cair. Nos EUA, meio quilo de carne moída vegetal da Beyond Meat custa US$ 5,70. A carne de origem animal, por sua vez, sofreu um aumento de 3,3% do ano passado para cá – e custa hoje entre US$ 4 e US$ 6, segundo a Secretaria de Estatísticas Trabalhistas dos EUA.

Os flexitarianos

Expandir o público do setor, diga-se, é ao mesmo tempo um  desafio e uma oportunidade para as foodtechs. Isso porque, ao contrário do que se  possa imaginar, os vegetarianos e os veganos não são nem de longe os maiores consumidores de produtos plant-based. Pelo contrário: nos EUA, só 11% dos compradores dessas alternativas cortaram totalmente a carne de suas dietas.

É uma boa notícia para os negócios: apesar do número de pessoas que se declaram vegetarianas estar crescendo no Brasil (o total saltou de 8% em 2012 para 14% em 2018, segundo o dado mais recente do Ibope), esse público permanece um nicho pequeno.

O grosso do mercado consumidor do setor plant-based é formado pelos chamados “flexitarianos”: pessoas que gostam de carne, mas querem consumir menos proteína animal. Elas procuram soluções rápidas e confortáveis, que mantenham a experiência do produto original. 

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“A principal motivação do consumidor desse tipo de produto é o cuidado com a saúde. Depois, aparecem outros motivos, como a preocupação com o meio ambiente”, explica Raquel Casselli, gerente de engajamento corporativo do Good Food Institute Brasil.

É realmente mais saudável?

“Depende. Se você comparar com os ingredientes vegetais orgânicos em saladas, é menos nutritivo. Mas se comparar com o hambúrguer processado que as pessoas já consomem, é sim um produto de maior qualidade”, diz Alessandra Luglio, nutricionista e defensora de uma dieta plant-based. Como as empresas do ramo sabem que seu público é antenado nas questões de saúde, já trabalham para manter seus processados com menos gorduras saturadas, sem conservantes e sem corantes artificiais – utilizando beterraba no lugar, por exemplo.

E no Brasil?

Uma pesquisa do GFI em parceria com o Ibope detectou que 39% dos flexitarianos no Brasil buscam substituir os produtos animais pelos vegetais pelo menos três vezes por semana. Entre os motivos que esses consumidores levam em consideração na hora de comprar proteínas vegetais, ter uma quantidade menor de gordura é o principal, citado por 43%.

O setor, de qualquer forma, ainda é incipiente por aqui. Mas é consenso que pode e deve crescer muito. A primeira grande foodtech brasileira do ramo surgiu em 2019, com Marcos Leta, fundador da marca de sucos naturais Do Bem. Em 2016, sua empresa foi comprada pela Ambev, e o empreendedor decidiu apostar no mercado plant-based. Após dois anos de pesquisa tanto lá fora como por aqui, surgiu a Fazenda Futuro, em maio de 2019, com a marca Futuro Burger.

“Toda a ideia começou da seguinte tese: o Brasil é um dos maiores produtores de vegetais do mundo e um dos grandes exportadores de carne animal”, conta Leta. “Então, se a gente pegar os nossos vegetais, adicionar tecnologia de ponta e usar a logística e a estrutura que foram usadas por anos pela indústria da carne para vender esses produtos congelados, a gente pode ter de fato um hub de produção mundial de plant-based no Brasil.”

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Parece estar funcionando: hoje, a empresa está presente em 24 países, a maioria na Europa, e se prepara para estrear no mercado americano, o mais competitivo da área.

23% de todo o mercado mundial de carnes pode ser plant-based em 2035.

Quem também aposta no crescimento do setor por aqui é o brasileiro André Menezes, que era gerente da Country Foods, braço da BRF em Singapura, quando percebeu o potencial do setor plant-based. “Eu ficava chocado como cada ano era ruim para a indústria de carne, havia uma crise diferente a cada seis meses. Isso serviu para me mostrar que o mercado era insustentável”, conta.

André decidiu deixar seu cargo de liderança na gigante de carnes para fundar a startup Next Gen em 2020; seu negócio recebeu um total de US$ 30 milhões em investimentos. Em março deste ano, lançou seu primeiro produto: o Tindle, um frango à base de plantas vendido para restaurantes em Singapura, Hong Kong e Macau. 

A Ásia também desponta como um mercado promissor. Pesa o fator cultural – hambúrgueres, nuggets e outras carnes processadas não são tão protagonistas por lá como no Ocidente. Por conta disso, os consumidores orientais estariam mais dispostos a trocar produtos de origem animal por análogos vegetais. No mundo, a China é o país com maior porcentagem de sua população disposta a fazer essa migração: 73%, contra 42% da média mundial e 47% do Brasil, segundo a Ipsos.

A ideia da Next Gen agora é expandir os negócios para Europa, EUA e, principalmente, Brasil – que, segundo André, “tem tudo para se tornar uma das grandes potências mundiais no setor”.

Por aqui, ao contrário do que acontece nos EUA, o setor ainda enfrenta um desafio: o preço. Além dos poucos players no ramo, o câmbio acaba afetando o valor que os consumidores têm que desembolsar nos supermercados para levar proteínas alternativas. “Alguns desses produtos utilizam a soja, que é nacional e com preço bastante competitivo. Mas outros são à base de ervilha, que é um produto importado, sem falar em muitos dos outros ingredientes como óleos, gorduras, aromas, corantes, que também são importados”, explica Raquel, do GFI.

Foi pensando nisso que o instituto lançou recentemente o Projeto Biomas, que vai financiar pesquisas para explorar o uso de ingredientes genuinamente brasileiros na indústria plant-based. Guaraná, cupuaçu, baru e pequi são alguns dos candidatos para fornecer proteínas e gorduras vegetais às receitas veganas.

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As sementes de guaraná são candidatas genuinamente brasileiras para integrar a indústria plant-based: elas possuem cerca de 15% de proteína e 40% de fibras. (Felipe Del Rio/VOCÊ S/A)

Por bem ou por mal

Desafios à parte, há quem aposte que o setor vai crescer não somente porque as pessoas estão mais preocupadas com o meio ambiente e com a saúde, mas simplesmente porque talvez não haja outra alternativa. É consenso que o modelo de produção de alimentos como está hoje é insustentável: ele já é responsável por mais de 20% das emissões dos gases de efeito estufa e 90% do consumo de água; 80% de todas as terras de plantio no mundo são voltadas para manter a pecuária.

Em 2050, com a população mundial beirando os 10 bilhões de pessoas, estima-se que as emissões de gases de efeito estufa ligadas à produção de proteína animal devem aumentar em 46%, e a demanda por terras, em 49%. Tudo indica que isso não é viável. 

É por esses motivos que o Credit Suisse projeta um crescimento avassalador para o setor plant-based: o mercado poderá atingir US$ 1,4 trilhão em 2050 – valor parecido com o mercado de carnes de verdade hoje. É que, de acordo com o banco europeu, vai ser inevitável transicionar a produção para algo mais racional. E a instituição alerta: agora é a hora – quem sair na frente vai ter vantagem.

É realmente mais sustentável?

Sim. Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU, consumir menos carne é uma das medidas mais urgentes para mitigar o aquecimento global. Estimativas apontam que hambúrgueres feitos de planta têm impactos ambientais na emissão de gases estufa e no consumo de água até 90% menores do que os hambúrgueres tradicionais.

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